BLOG BOITEMPO: FEMINILIDADE TÓXICA EM “GAME OF THRONES”, POR SLAVOJ ZIZEK

do Blog da Boitempo

Por Slavoj Žižek.

 

* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.

A última temporada de Game of Thrones ensejou um grande alarde público, que culminou em uma petição (assinada por quase um milhão de espectadores indignados) exigindo que se desqualificasse a temporada inteira e regravasse uma nova. A fúria que marcou debate é, por si só, indício de que há bastante em jogo, em termos de ideologia.

A insatisfação girou em torno de dois pontos principais: enredo ruim (sob pressão de encerrar rapidamente a série, a complexidade da narrativa ficou prejudicada) e psicologia ruim (a transformação de Daenerys em Rainha Louca não se justifica em termos da trajetória da personagem). Uma das poucas vozes inteligentes no debate foi a do escritor Stephen King, que assinalou que a insatisfação não teria sido provocada pelo final ruim, mas pela própria existência de um final – em nossa era de séries, que a princípio continuam indefinidamente, a própria ideia de um fechamento narrativo torna-se intolerável. É verdade que, no célere desfecho da série, impera uma estranha lógica – mas trata-se de uma lógica que viola não tanto a verossimilhança da psicologia, mas as próprias pressuposições narrativas de uma série televisiva. Afinal, a última temporada resume-se aos preparativos para uma batalha, o pesar e destruição que se seguem à batalha, e o próprio combatente diante de toda essa falta de sentido – algo muito mais realístico para mim do que os habituais enredos melodramáticos góticos.

O universo de Game of Thrones (assim como o de O senhor dos anéis) é espiritualizado mas desprovido de Deus: há forças sobrenaturais, mas elas fazem parte da natureza, e não há deuses mais elevados tampouco sacerdotes as servindo. No interior desse quadro, o desenho da oitava temporada é profundamente consistente: ela encena três lutas consecutivas. A primeira é travada entre a humanidade e seus Outros inumanos (representados pelo Exército da Noite do Norte, liderado pelo Rei da Noite). Em seguida, a disputa se dá entre os dois principais grupos de humanos (os malvados Lannister e a coalizão contra eles liderada por Daenerys e pelos Stark). Por fim, tem-se o conflito interno entre Daenerys e os Stark. É por isso que as batalhas da oitava temporada seguem um caminho lógico que parte de uma oposição externa para chegar à cisão interna: a derrota do inumano Exército da Noite, a derrota dos Lannister e a destruição de King’s Landing, até chegar no último embate entre os Stark e Daenerys – em última instância entre a “boa” e tradicional nobreza (representada pelos Stark), que protege lealmente seus sujeitos das garras de tiranos maus, e a figura de Daenerys, como uma líder forte de novo tipo, uma espécie de bonapartista progressista atuando em prol dos menos privilegiados. O que está em jogo no conflito final é, para resumir de maneira simples, o seguinte: a revolta contra a tirania deveria se dar no marco de uma mera luta pelo retorno à versão antiga, mais bondosa, da mesma ordem hierárquica, ou deveria evoluir no sentido de uma busca por uma nova ordem necessária?

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Os espectadores insatisfeitos têm um problema com esse último embate – não é de se espantar, visto que ela combina a rejeição de uma transformação radical com um velho tema antifeminista verificado nas obras de Hegel, Schelling e Wagner. Em sua Fenomenologia do Espírito, Hegel introduz sua famosa noção da feminilidade como “a eterna ironia da comunidade”: a mulher “transforma por suas intrigas o fim universal do Governo em um fim-privado, converte sua atividade universal no produto de algum indivíduo particular, e perverte a propriedade universal do Estado em patrimônio e adorno da família”1 Essas linhas se encaixam perfeitamente com a figura de Ortrud, da ópera Lohengrin, de Richard Wagner: para ele, não há nada mais horrível e repugnante do que uma mulher que intervém na vida política, motivada por um desejo de poder. Diferentemente do que ocorreria com a ambição masculina, a mulher, incapaz que é de apreender a dimensão universal da política estatal, almejaria o poder a fim de promover seus próprios interesses familiares estreitos – ou pior, seus caprichos pessoais. Como não lembrar da passagem de F. W. J. Schelling segundo a qual “o princípio que funciona e nos sustenta com sua ineficácia é o mesmo que nos consumiria e destruiria com sua eficácia”?2 – o poder que, quando mantido em seu lugar adequado, pode ser benigno e pacificador converte-se no seu oposto radical, na fúria mais destrutiva, tão logo incide num patamar mais alto, patamar que não é o dele. A mesma feminilidade que, dentro do círculo fechado da vida familiar, configura o próprio poder do amor protetor transforma-se em frenesi obsceno quando se manifesta no patamar dos assuntos públicos e do Estado. O ponto mais baixo do diálogo é o momento em que Daenerys diz a Jon Snow que se ele não consegue amá-la enquanto rainha, que reinaria o medo – o arquétipo embaraçosamente vulgar da mulher sexualmente insatisfeita que explode em fúria destrutiva.

Mas mordamos agora nossa maça azeda: o que dizer das explosões assassinas de Daenerys? A chacina impiedosa de milhares de pessoas comuns em King’s Landing poderia realmente ser justificada como um passo necessário para a liberdade universal? Trata-se de algo de fato imperdoável – mas nesse ponto, é preciso lembrarmos de que o enredo foi escrito por dois homens. A figura Daenerys como rainha tresloucada é rigorosamente uma fantasia masculina (os críticos acertaram ao apontar que sua descida à loucura não se justificava psicologicamente). A cena em que ela, tomada por um olhar de fúria e loucura, sobrevoa a cidade em seu dragão incendiando casas e pessoas é simplesmente a expressão da ideologia patriarcal e seu medo de uma mulher politicamente forte.

O destino final das protagonistas mulheres em Game of Thrones se encaixa nessas coordenadas. É central a oposição entre Cersei e Daenerys, as duas mulheres ligadas ao poder, e a mensagem do conflito delas é claro: ainda que a boa vença, o poder corrompe a mulher. Arya (que salvou todos eles quando matou, sozinha, o Rei da Noite) também desaparece, embarcando em uma viagem a oeste do Oeste (como se para colonizar a América). A que permanece (como rainha do reino autônomo do Norte) é Sansa, um tipo de mulher amada pelo capitalismo contemporâneo: ela reúne delicadeza e compreensão femininas com uma boa dose de intriga, e assim se encaixa plenamente nas novas relações de poder. Essa marginalização das mulheres é um momento chave da lição liberal-conservadora geral do último episódio: as revoluções precisam dar errado, elas ensejam novas tiranias.

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mesmo não poderia ser dito de Batman: o cavaleiro das trevas ressurge, o último filme da trilogia do Batman dirigida por Christopher Nolan? Embora Bane seja o vilão oficial, há indícios de que ele, muito mais do que o próprio Batman, configura o autêntico herói do filme, distorcido como seu vilão: ele está disposto a sacrificar sua vida pelo seu amor, pronto para colocar tudo em risco por aquilo que ele entende por injustiça, e esse fato básico é ofuscado por sinais superficiais e francamente ridículos de maldade destrutiva.3 Também no filme Pantera Negranão seria o personagem de Killmonger o verdadeiro herói? Ele prefere morrer livre do que ser curado e sobreviver na falsa abundância de Wakanda – o forte impacto ético das palavras finais de Killmonger imediatamente estragam a ideia de que ele seria um vilão simples…4 Mas, voltemos ao final de Game of thrones. A lição liberal-conservadora transparece mais claramente nas seguintes palavras ditas por Jon Snow a Daenerys:

“Eu nunca imaginei que os dragões existiriam de novo; ninguém imaginava. As pessoas que te seguem sabem que você fez algo impossível acontecer. Talvez isso as ajude a acreditar que você pode fazer com que outras coisas impossíveis ocorram: construir um mundo diferente da merda que eles sempre conheceram. Mas se você os usa [os dragões] para derreter castelos e queimar cidades, você não é nada diferente. É só mais do mesmo.”

Assim, Jon mata por amor (salvando de si mesma a mulher amaldiçoada, conforme a velha fórmula chauvinista) o único agente social da série que realmente lutou por algo novo, por um mundo novo que daria um fim às velhas injustiças. Então não é de se espantar que o último episódio da temporada foi bem-recebido: a justiça prevaleceu – mas que tipo de justiça? Cada pessoa é alocada a seu devido lugar: Daenerys, que perturbou a ordem estabelecida, é morta e levada para longe por seu último dragão. O novo rei é Bran: aleijado, onisciente, que não quer nada – com a evocação da sabedoria insípida segundo a qual os melhores governantes seriam aqueles que não querem o poder. Em um desfecho supremamente politicamente correto, um aleijado governa, agora auxiliado por um anão, e eleito pela nova elite sábia. (Um belo detalhe: o riso que se segue quando um deles propõe uma seleção mais democrática do rei). E é impossível não notar que aqueles que se mostram fieis a Daenerys até o final têm a pele mais escura – o grande comandante militar dela é negro – e são mais do Oriente, ao passo que os novos governantes são claramente todos nórdicos brancos. A rainha radical que queria mais liberdade para todos independentemente de posição social e raça é eliminada, as coisas voltam ao normal, e tempera-se a miséria deles por sabedorias.

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Notas

1 “Essa feminilidade – a eterna ironia da comunidade – muda por suas intrigas o fim universal do Governo em um fim-privado, transforma sua atividade universal em uma obra deste indivíduo determinado, e perverte a propriedade universal do Estado em patrimônio e adorno da família.” G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, trad. Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado (Petrópolis, Vozes, 2003), p. 329.
2 F. W. J. Schelling, Die Weltalter. Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und 1813, ed. Manfred Schroeter, Munich: Biederstein 1946 (reprint 1979), p. 13.
3 Para uma análise mais detida dessa questão no filme Batman: o cavaleiro das trevas ressurge, ver Slavoj Žižek, “Ditadura do proletariado em Gotham City:”, trad. Rogério Bettoni, Blog da Boitempo, 8 ago. 2012. (N. E.)
4 Para uma análise mais detida, ver Slavoj Žižek, “Dois Panteras Negras“, trad. Artur Renzo, Blog da Boitempo, 27 fev. 2018. (N. E.)

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Artur Renzo é editor do Blog da Boitempo, da TV Boitempo e da revista Margem Esquerda. Formado em Filosofia e em Comunicação Social com habilitação em Cinema, traduziu, entre outros, A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Boitempo, 2018), de David Harvey.

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