Archive for Abril, 2019

VALEU, BETH CARVALHO! E VAI VALER SEMPRE COMO A IMORTALIDADE DA VOZ ATIVA

Abril 30, 2019

PRODUÇÃO AFINSOPHIA.ORG

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Todo homem é mortal, diz a filósofa Simone de Beauvoir. Mas existem homens e mulheres que são imortais em razão de suas condições de humanos-ativos. Há homens e mulheres que estão no mundo como meros entulhos: perambulam espectralmente cumprindo apenas o que lhes mostraram como verdades insofismáveis e eles acreditaram. São meros replicantes das subjetividades castradoras impostas pelo sistemas que acreditam serem seus deuses infalíveis. São os que compõem, o que diz o revolucionário psiquiatra, W. Reich, a peste emocional. A peste emocional que neste momento se revela como forma de irracionalidade e embrutecimento no Brasil.

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É no sentido de fazer viver a vida, que Beth Carvalho, se mostra imortal. Não só como compositora, cantora e instrumentista exímia, mas por seu compromisso de fazer passar a vida. Alguém cuja vida é para ativar o pensamento e o pensamento afirmar a vida, como mostra o filósofo da Vontade de Potência, Nietzsche. Beth é a inquietação que a vida pede como movimento transcendente do ser. Não há em Beth nenhum ato que não seja comprometido. Tudo em si transpira política. A política como a vocação singular do ser. Beth é engajamento. Jamais se aliena como a maioria dos pseudos artistas que só reverberam o corpo deletério da dor.

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Beth é a sambista-filósofa que, junto com Beauvoir, mostra que mulher não pode ser esculpida pelo delírio-paranoico-hominista que a quer submissa como escrava do modelo-padrão macho-branco-europeu. Beth sempre canta para além do som e da letra. Beth vai além.

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É por isso que Beth é imortal!    

AQUILES RIQUE REIS: A DONA DO SAMBA

Abril 30, 2019

por Aquiles Rique Reis

A escolha da cantora Fabiana Cozza como personagem central de Dona Ivone Lara – Um sorriso negro – O musical, além de ser uma homenagem mais do que merecida à dona do samba, fundamental para que se soubesse a força de uma mulher sempre à frente de seu tempo, seria um merecido tributo a Dona Ivone, cantora e compositora de personalidade gigantescas.

“Clarinha demais, “clarinha” de menos, “clarinha ao ponto”, assim rolava a polêmica quanto ao tom da pele da ex-futura protagonista.

Diante dos protestos, em meio à troca de argumentos, Fabiana Cozza anunciou: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”. O musical estreou no ano passado com três atrizes no papel de que Cozza abdicou.

Após contextualizar um fato de 2018, voltemos ao presente: Canto da Noite na Boca do Vento (Biscoito Fino) é um álbum de extremo bom gosto que expõe a devoção de Fabiana Cozza por Dona Ivone Lara.

Além de conceber o CD, Fabiana Cozza dividiu com o violonista sete cordas Alexandro Penezzi a escolha do elegante repertório. (Por falar em elegância, escuta só: é de fazer cair o queixo a capa concebida pela genialidade de Elifas Andreato.)

Penezzi fez a direção musical do trabalho e escreveu três arranjos para Douglas Alonso (percussão) e Henrique Araújo (cavaco) tocarem com ele. Os dois, por sua vez, compuseram um arranjo cada, enquanto nove outros são criações coletivas. São poucos instrumentistas, com ótimas atuações, enriquecidas pela mixagem de Lucas Ariel e a masterização de Carlos Freitas.

Com catorze sambas, o CD abre com uma versão (quase) à capella de “Meu Samba É Luz, É Céu, É Mar” (Dona Ivone e Delcio Carvalho) – uma leve e cuidadosa percussão embala a voz poderosa de Cozza. Um arraso!

“Alguém me Avisou” (só de Dona Ivone), vem forte com a participação de Maria Bethânia.

“Adeus, Timidez” (Dona Ivone e Arlindo Cruz). Samba em tom menor, bem construído, no qual Cozza despeja todo o seu sentimento. Péricles participa e faz bonito.

Apenas um samba é inédito, “A Dama Dourada”. De Vidal Assis e Hermínio Bello de Carvalho, foi criado por eles a pedido de Cozza e conta com a brilhante participação do saxofonista Nailor Proveta, num arranjo coletivo que realça a beleza da nova composição.

Saquem só os “sambassos” de Dona Ivone com seus parceiros, cantados por Cozza: Jorge Aragão – “Enredo do Meu Samba”; Mano Décio – “Sem Cavaco Não”; Nei Lopes – “Outra Vez”; Silas de Oliveira e Bacalhau – “Os Cinco Bailes da História do Rio”; Paulo César Pinheiro – “Bodas de Ouro”, dentre outros.

Canto da Noite na Boca do Vento é um legado de bons sambas, ofertados a nós que hoje temos a ventura de ouvi-los – mas é também um farol lumiando os que (ou)virão depois de nós.

É o deleite absoluto de podermos (re)conhecer Dona Ivone Lara através da formidável Fabiana Cozza – duas mulheres negras que transformam o mundo com seus ofícios.

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4

BRASIL DE FATO: NO RIO, POLITILAJE PROMOVE DEBATES POLÍTICOS E ARTE NO VIDIGAL

Abril 30, 2019

SARAU

Quinta edição do evento tem como tema “Favela diz não à Reforma da Previdência”

Redação

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ)

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Iniciativa procura fomentar debates políticos no Vidigal, zona sul do Rio - Créditos: ColetivAção Vidigal
Iniciativa procura fomentar debates políticos no Vidigal, zona sul do Rio / ColetivAção Vidigal

Criado por movimentos da comunidade, o sarau Politilaje vem promovendo uma forma mais acessível de discutir política na favela do Vidigal, localizada da zona sul do Rio. O 5º Sarau Político Cultural Politilaje acontece neste fim de semana e traz como tema a discussão sobre as mudanças nas regras da aposentadoria, com o mote “Favela diz não à Reforma da Previdência”. 

O morador da comunidade William de Paula, mais conhecido como Ninho Vidigal, falou durante entrevista ao programa Brasil de Fato Rio de Janeirosobre a iniciativa. “Durante as nossas andanças Brasil afora, nos movimentos populares, nos movimentos culturais, a gente teve a ideia de instigar e fomentar a discussão política. Agora a gente está com um movimento incontrolável porque as pessoas estão aderindo a esse formato de fazer política, mas não essa política de maneira cartesiana, com palavras difíceis… não. A nossa política é uma política em cima da laje, com poesia, um sarau que a gente coloca o jovem nesse protagonismo, e o político que vem aqui, o parlamentar, o pré-candidato, ele senta e assiste as potencialidades que a favela tem”, conta. 

O sarau sempre discute um tema da atualidade, como a gentrificação e outras propostas do governo que representam ataques aos direitos dos trabalhadores. O mote da vez, “Favela diz não à Reforma da Previdência”, vem como uma crítica à proposta de mudança da seguridade social promovida pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL). “A favela quer entender os reais motivos. E já que os motivos até então apresentados não convencem nenhum morador, então a favela é logicamente convocada a assumir o protagonismo e dizer não à essa reforma que só vai prejudicar a vida da nossa população”, disse Ninho Vidigal, que também é professor de educação física, guia de turismo local, ator e integrante do bando cultural Favelados.

Para ele, o sarau Politilaje invoca o espírito do início de formação e crescimento das favelas no Rio, nas décadas de 1940 a 1960, como ato de resistência e de sobrevivência. O evento acontece neste sábado (4) às 18h, na Praça do Vidigal e contará com a presença de artistas locais, parlamentares que vão explicar a proposta de reforma e suas ameaças à população e jornalistas que vão abordar o papel da mídia neste processo.

Edição: Vivian Virissimo | Redação: Flora Castro | Entrevista: Denise Viola

BRASIL DE FATO: “É CENSURA AOS ARTISTAS NÃO AO BANCO”, DIZ ATRIZ DO COMERCIAL VETADO POR BOLSONARO

Abril 29, 2019

PUBLICIDADE

Campanha publicitária do Banco do Brasil que valorizava diversidade da população brasileira foi tirada do ar

Luciana Console

Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Mellanie Reis participou do comercial do Banco do Brasil - Créditos: Reprodução / Youtube
Mellanie Reis participou do comercial do Banco do Brasil / Reprodução / Youtube

Destinada ao público jovem e caracterizada pela diversidade racial e sexual, a última campanha publicitária do Banco do Brasil (BB) foi retirada de circulação a pedido do presidente Jair Bolsonaro (PSL) há duas semanas. A peça de 30 segundos, que pode ser acessada pelo Youtube, estava no ar na televisão e internet desde o dia 1º de abril. Logo após o veto, o então diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil, Delano Valentim anunciou a saída do cargo. 

A modelo Mellanie Reis, de 23 anos, foi uma das atrizes que participou da campanha, e conta que ficou surpresa quando soube que o vídeo havia sido tirado do ar. Para ela, o preconceito é a única explicação para a atitude do governo.

“Que eu saiba, o nome disso é censura. E, pior ainda, eu enxergo que isso não é uma censura só ao banco, entende? Porque o banco está aí, funcionando e lucrando”, lembra. “A questão é que as pessoas que estão ali, eu e vários outros atores e atrizes que fizeram parte desse comercial, é que na real fomos censurados”.

Reis está convicta de que os “perfis” dos atores é que motivaram o veto ao comercial. “Acredito que, daí para frente, ou até nesses meses que se seguirão, o Banco do Brasil vai soltar uma nova campanha, com outros perfis. De fato, eu acredito que foi isso que incomodou, sabe? Esses perfis… é isso que causa medo”, finaliza. 

A atriz conta que é a primeira vez que isso acontece em sua carreira, que já incluiu peças publicitárias para o governo, como é o caso da campanha“#VamosCombinar Prevenir é Viver o Carnaval”. Realizada para o carnaval de 2018 pelo Ministério da Saúde, o vídeo da campanha também mostra diversidade e incentiva o uso de preservativos masculinos e femininos para prevenir doenças. Ela acredita que o veto pelo governo à campanha do Banco do Brasil “só demonstra que o país está andando para trás”. 

Sobre o motivo da retirada do vídeo, o presidente declarou no último dia 27 que “não quer que dinheiro público seja utilizado para fazer propagandas iguais à do Branco do Brasil”. Em seguida, afirmou que a peça vai contra sua linha de pensamento e insinuou que o vídeo desrespeita a família. A assessoria do banco declarou que a peça foi retirada do ar por “não contemplar todos os perfis brasileiros”

 

Edição: Daniel Giovanaz

CARTA CAPITAL: GRATUIDADE É O QUE MAIS ATRAI O PAULISTANO PARA EVENTOS CULTURAIS

Abril 28, 2019

Pesquisa mostra que 28% dos moradores da capital não frequentaram nenhuma atividade cultural nos últimos 12 meses. Preço é fator decisivo

Tendo o Theatro Municipal, o Masp e a Pinacoteca do Estado como alguns dos principais pontos turísticos, a cidade de São Paulo conta com uma agenda cultural bastante agitada, com opções de entretenimento tanto pagas quanto gratuitas.Não é de hoje que a capital paulista também se tornou palco de eventos internacionais que desembarcam no país, como shows e festivais de música, e, muitas vezes, é a favorita para receber exposições de artes e peças de teatro.

Por outro lado, é grande o número de pessoas que não frequentaram nenhuma dessas atividades culturais na cidade nos últimos 12 meses — 28% dos paulistanos para ser mais específico, conforme mostra a pesquisa “Viver em São Paulo: Cultura”.

O estudo, lançado na semana passada pela Rede Nossa São Paulo e o Ibope Inteligência, ouviu 800 entrevistados com mais de 16 anos das cinco regiões do município no mês de dezembro.

JACKSON NA EXPOSIÇÃO “QUADRINHOS”, QUE ESTÁ EM CARTAZ NO MIS (REPRODUÇÃO)

Para quem frequenta tais eventos, o preço é um fator determinante. “Eu costumo ir a eventos culturais que sejam gratuitos ou que o custo seja baixo. Uns R$ 10 ou R$ 15, por exemplo. Vou a muitos shows no Sesc ou no Centro Cultural São Paulo já que os valores são bem acessíveis”, comenta Jackson Vasconcelos, 32, estudante de comunicação e mídias digitais.

“Também gosto de ir a exposições, sendo o MIS [Museu da Imagem e do Som] a principal opção. Fui em todas as mostras que ocorreram lá desde 2014. Frequento o CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil], onde vejo exposições e peças de teatro. Na estação Luz já fui na Sala São Paulo ver uma orquestra no valor de R$ 10, na época”, segue.

O MIS tem entrada gratuita às terças-feiras. No CCBB, as exposições são grátis e os valores para sessões de cinema ou teatro variam de R$ 2 a R$ 6. Outras opções com entrada “free” são o Masp, também às terças-feiras, a Pinacoteca, aos sábados e domingos, e o Museu Afro Brasil com gratuidade todos os dias.

Na faixa

Ainda de acordo com a pesquisa da Rede Nossa São Paulo, 78% dos paulistanos entrevistados já frequentaram eventos públicos promovidos na cidade em algum ano. A gratuidade é o motivo mais mencionado para a frequência (34% das respostas), seguido por “é divertido” (24%) e “é uma oportunidade de utilizar os espaços públicos” (17%).

“No último ano, eu fui para a virada cultural, virada esportiva, shows de rua e o carnaval paulistano. Os mais recentes foram eventos que convidaram DJs para a abertura de uma nova área da Praça das Artes, no centro”, comenta o jornalista cultural Filipe Maia, 25.

Em contrapartida, 22% dos entrevistados dizem nunca ter participado de nenhum dos eventos promovidos anualmente, seja pela Prefeitura de São Paulo ou não. Aqueles que não frequentam, informam que o motivo é o de não se sentirem seguros (57%) e/ou não gostarem de multidões (51%).

“Multidão é ok, acho até legal que muitas pessoas ocupem o espaço público para se divertir. Agora a insegurança é chato mesmo e é um problema enorme desses eventos”, observa Maia.

Neste ano, mais de 500 blocos foram às ruas no carnaval de São Paulo, no período entre os dias 23 de fevereiro e 10 de março. O público bateu recorde: 12 milhões de foliões.

No próximo mês, nos dias 18 e 19 de maio, ocorre a 15ª edição da Virada Cultural. A programação ainda não foi divulgada, mas a edição do ano passado reuniu cerca de três milhões de pessoas em diferentes pontos da cidade.

“Hoje em dia é bacana ter os blocos de rua, pois o carnaval no sambódromo fica restrito a classe que tem maior poder aquisitivo.”

Quanto a outros eventos gratuitos realizados na capital paulista, ela conta que costuma frequentar as sessões gratuitas do Circuito Spcine (rede de salas de cinema da Prefeitura de São Paulo), no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, na zona leste.

“Eu entro com frequência no site e vejo a programação. Aí encaminho para os alguns grupos que tenho. Quando vejo panfletos no local, sempre pego uma quantidade para entregar nas escolas onde eu trabalhava, na Cidade Tiradentes”, conta.

Em 2018, o Circuito Spcine teve 426 mil espectadores e 9,3 mil sessões. São 20 espaços presentes, sobretudo, em bairros não atendidos pelas salas comercias de cinema. O local com o maior número de espectadores foi justamente o Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, com 40,2 mil pessoas.

➤ Leia também: Campeã em nº de cinemas, Barra Funda tem o trânsito mais letal de SP

“Porém neste ano não estou conseguindo ajudar na divulgação, pois estou trabalhando em Interlagos [zona sul] e ainda não sei onde fica o centro cultural mais próximo. Por ser muito longe, também não tenho muito tempo para ir até o local saber as informações”, diz Tainan, que gasta três horas para chegar ao trabalho.

A pedagoga considera importante a realização destes eventos culturais, mas acredita que a divulgação ainda é pouca. “Há muitas atividades diferentes [na cidade] e isso é pouco divulgado. Somente quem está sempre pelo local acaba sabendo”, conta.

“[Mas] acredito também que muitas pessoas não frequentam e não procuram essas informações por falta de hábito de frequentar esses locais”, complementa.

O futuro

A destinação de recursos para a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) recuou 10% entre 2018 e 2019. Em 2018, o orçamento era de R$ 436,9 milhões; neste ano, caiu para R$ 392,1 milhões.

No novo programa de metas 2019-2020, alterado recentemente pela gestão Bruno Covas (PSDB), há apenas duas menções à Cultura: “Implantar ruas, parques e praças de lazer e cultura” (objetivo estratégico nº 17) e “Revitalizar 44 equipamentos de cultura” (nº 22).

As metas do plano anterior (2017-2018) foram atingidas pela SMC no ano passado, sendo elas: “Aumentar em 15% o público total frequentador dos equipamentos culturais” e “Aumentar em 15% o público frequentador do Sistema Municipal de Bibliotecas”.

CARTA CAPITAL: ARTISTAS PREPARAM ATO PÚBLICO CONTRA BOLSONARO E E POR LULA LIVRE

Abril 28, 2019

O Festival Lula Livre, programado para 2 de junho, torna-se um fato político inédito da esquerda brasileira

O som de um inocente preso pode provocar um tsunami de protestos de milhares de vozes, violões, guitarras, baterias e corações juntos. É essa a ressonância do Festival Lula Livre, que terá sua segunda edição no dia 2 de junho, das 13 às 20 horas, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, com vocação para se firmar como o fórum natural desse grito por liberdade que se tornou infatigável e incontornável. Em tempos bolsonaros, deve ser também o primeiro grito público exclusivo da classe artística pela libertação de Lula da prisão política.

Antes desse haverá o teste de 1º de maio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), também no Anhangabaú e com vocação para os gritos de “Lula Livre”, mas estrelado por artistas sem perfil de luta contra o Estado de exceção, como as feministas sertanejas Maiara & Maraisa e Simone & Simaria. O caso do festival é diferente. Havia sido marcado inicialmente para 5 de maio, mas foi adiado pela proximidade com os shows do Dia do Trabalho. Virá convocado pelo manifesto O Som pela Liberdade, já assinado por pesos-pesados da intelectualidade e da cultura nacional como Anna Muylaert, Antônio Pitanga, Arnaldo Antunes, Boaventura de Souza Santos, Celso Amorim, Chico Buarque, Dilma Rousseff, Eliane Caffé, Emir Sader, Eric Nepomuceno, Fernando Morais, Frei Betto, Gilberto Gil, José Celso Martinez Corrêa, José de Abreu, Juca Ferreira, Leci Brandão, Leonardo Boff, Luiz Carlos Barreto, Marieta Severo, Martinho da Vila, Mino Carta, Osmar Prado, Patrícia Melo, Raduan Nassar, Silvio Tendler, Tata Amaral, Toni Venturi e Yamandu Costa, além do escritor moçambicano Mia Couto.

“Lutar por Lula Livre é abrir mão de privilégios”, diz Ana Cañas

“A prisão de Lula é um símbolo do nosso retrocesso. Viramos o país onde o trabalho não tem mais regulação, o salário mínimo virou lenda e a única liberdade que existe é o aumento da nossa exploração”, afirma o manifesto, disponível na internet. A mudança de data mantém em suspense o elenco definitivo a ser reunido, de que já eram ventilados nomes conhecidos da música brasileira como Chico César, Odair José, Otto e Thaíde, além de novos valores como Aíla, Aláfia, Aline Calixto, Ana Cañas, Emicida, Filipe Catto, Marcelo Jeneci, Mombojó, Tiê e Unidos do Swing.

Nomes de impacto devem engrossar o caldo e estão sendo mantidos em segredo por ora. A estrutura a ser montada é grande, com dois palcos, direção musical de Daniel Ganjaman (que trabalha com o rapper Criolo) e Michele Abu e direção artística de Luiz Fernando Lobo. O Partido dos Trabalhadores (PT) ajuda informalmente na iniciativa voluntária dos artistas, segundo explica seu diretor nacional de cultura, Márcio Tavares: “O evento tem caráter de doação humanitária para uma causa. Todo mundo está se doando. Todo mundo, da equipe de produção aos artistas envolvidos, está trabalhando voluntariamente”.

“LULA É O PRINCIPAL SÍMBOLO DE TUDO QUE ESTÁ SENDO DESTRUÍDO PELO BOLSONARISMO”, DIZ CHICO CÉSAR

O paulistano Ganjaman diz buscar um formato histórico: “A ideia é formar uma superbanda com músicos de várias bandas, para ter representatividade, a banda por si só já ser uma história. Em princípio, eu não queria que fossem os artistas cantando as próprias músicas. Queria passar por um repertório mais amplo, para ser uma coisa de fato inédita e que conte uma história que leve à questão que está sendo levantada”. A baiana Michele Abu deve dirigir os artistas mais alternativos num outro show coletivo. “Estamos cada vez mais sem voz, patrocínio e recursos”, diz ela, na contramão do discurso bolsonarista sobre privilegiar os pequenos produtores de cultura. “O artista que não percebeu o quanto fomos beneficiados pelos governos de Lula e Dilma vai perceber agora.”

O Festival Lula Livre, pela voluntariedade das adesões, pelo afluxo voluntário de amantes da democracia, da legalidade e simpatizantes de Lula, torna-se um fato político inédito da esquerda brasileira neste momento de dilapidação do patrimônio nacional. É importante não só porque encarna a luta contra a injustiça, mas também porque supera um momento de apagamento da classe artística diante do início do governo Bolsonaro e porque enfrenta uma questão-chave dessa investida contra a democracia: a supressão progressiva da liberdade de expressão, o retorno da censura como estratégia da guerra suja do regime bolsonarista.

Lulista contumaz, a cantora e compositora paulistana Ana Cañas interpreta a postura acuada de parte da classe a que pertence: “Aqueles que ficam acuados, no meu humilde entendimento, têm medo das agressões por parte dos que apoiam o atual governo e também da perda de eventuais shows, patrocínios ou marcas que os apoiam. Posicionar-se tem um preço, tem consequências. Tomar essa decisão é pesar para si o que é mais importante na sua vida, fatalmente. Lutar é abrir mão de privilégios”. O momento que a classe cultural atravessa parece ser o descrito pelo músico pernambucano Geraldo Azevedo: “O medo é imprescindível. É através do medo que a gente cria recursos para vencê-lo”.

Diz a cantora e compositora paraense Aíla: “Os tempos estão cheios de ódio e ameaças de morte, isso é o que o atual governo estimula nas pessoas: armas, guerras e massacres, e é claro que isso chega aos artistas e intelectuais que se posicionam também. Eu não calo. Estamos passando por um momento de retrocessos absurdos, não podemos ficar acuados agora. Estamos, infelizmente, só no começo.” O pernambucano Otto concorda: “Não só os artistas, mas a maioria da população votou com medo, acuada, amedrontada por esse modelo de política do terror, da intimidação bélica, da arrogância e da falta de respeito. A imposição do medo está valendo até agora. A classe média e a elite junto com os grandes veículos de comunicação passaram da conta e hoje sofrem com a própria criação. Criaram um monstro de consciência zero, destruidor de tudo, até deles mesmos, irônico se não fosse trágico”.

 

POVO SEM MEDO. PARA ANA CAÑAS, O POSICIONAMENTO POLÍTICO IMPLICA O RISCO DE PERDA DE PATROCÍNIOS.

 

BRASIL DE FATO: FOTÓGRAFA PARAENSE FALA SOBRE O DESAFIO DE RETRATAR POPULAÇÃO AMAZÔNICA

Abril 28, 2019

Evna Moura é do Pará e vê como exploração cultural boa parte dos registros feitos por artistas de fora

Juca Guimarães

Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Artista destina 30% das vendas de suas obras para incentivar as ONGs locais - Créditos: Juca Guimarães/BdF
Artista destina 30% das vendas de suas obras para incentivar as ONGs locais / Juca Guimarães/BdF

Por diversas vezes, a região amazônica, seu povo e sua cultura foram retratados de forma superficial e romantizada por fotógrafos, cineastas e pintores, o que gerou um apagamento da identidade do nortista.

“Muitas vezes confundem a nossa cultura, a nossa comida e o nosso jeito de falar com os do Nordeste. As nossas tradições não são respeitadas e reconhecidas”, diz a fotógrafa paraense Evna Moura, de 33 anos, que está expondo seu trabalho no Armazém do Campo, que fica na Alameda Eduardo Prado, 499, região central da capital paulista.

Evna começou a fotografar por conta das aulas em uma ONG em Belém. Suas primeiras exposições têm como foco as diversas comunidades e povos que formam a população amazônica.

A artista destina 30% da renda das vendas de fotografias para ONGs e projetos sociais da Amazônia. Sua obra também retrata as desigualdades da região, que correm o risco de agravamento devido à política entreguista e anti-ambientalista do governo Jair Bolsonaro.

A condição de vida cada vez mais precária para grande parte da população da Amazônia é o foco do dossiê “Amazônia Brasileira: A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra”, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que é ilustrado com fotos de Evna Moura. Confira trechos da entrevista com a fotógrafa.

Brasil de Fato: Por que você começou a fotografar?

Evna Moura: Venho da ilha do Marajó, de uma cidade chamada Cachoeira do Arari. Sou fruto do projeto social de fotografia e desenho Curro Velho, da Fundação Cultural Tancredo Neves, e isso foi traçando o meu interesse pela fotografia. Depois fui dar aula na mesma instituição e fiz faculdade de Artes Visuais em Belém. Fora as minhas experiências pessoais de produção artística, eu fui me envolvendo com arte-educação. Isso foi traçando o meu currículo como profissional e a minha identidade como artista. Fui descobrindo o que eu queria e o meu interesse em que tipo de fotografia eu queria fazer.

Como foram as suas primeiras exposições?

O começo foi com a identidade amazônica, com comunidades ribeirinhas. Eu vinha de uma universidade pública em Belém, mas, como eu era do interior, havia uma proximidade com essas comunidades. Fotografei a comunidade do Cumbu, que é uma ilha próxima a Belém, durante quatro anos. Eu sempre tive interesse por antropologia visual. Apesar de Cumbu ficar a apenas 15 minutos de Belém, que é a maior cidade do Estado, a comunidade tem um modo de vida muito rústico, que vem da venda do açaí. Depois trabalhei, para o meu mestrado, na ilha de Cotijuba. Muitas das imagens escolhidas para ilustrar o dossiê do Instituto Tricontinental são desse início de processo criativo.

Como se deu a mudança de estética na sua fotografia?

Tem uma relação de me reconhecer como mulher amazônica, esse fortalecimento de identidade. Eu comecei a sair do Pará e a ver a importância e a valorização da cultura local de outras regiões, o que não tem na região Norte. Por exemplo, o Nordeste é muito próximo da discussão do que é a religião afro-brasileira, o que é a identidade negra, e isso é muito fortalecido e é uma coisa conquistada. No Norte não tem essa proximidade. Por isso, eu vim fazer mestrado em São Paulo, para falar dessas questões de especificidades da região Norte. O Brasil não conhece o Brasil. Não tem como um país ser forte social e politicamente se ele não se conhece.

Como é para você fazer esse trabalho de aproximação das culturas?

É preciso lutar por esse espaço de fala aqui. Não é fácil se deslocar de lá e vir para cá. Tem uma diferença cultural, a gente se sente um pouco deslocado, mas estamos aqui, eu e outros artistas, por esse lugar de fala.

Quais os impactos da eleição do Bolsonaro na política e na economia da região amazônica?

Tem vários problemas com a mudança de governo, apesar de muita gente ter votado nele por falta de informação. Um impacto que já é visível acontece nos projetos sociais, que estão acabando. Se antes tinha dez projetos em cada comunidade, hoje tem só um. Isso impacta na comunidade toda, porque são lugares onde não tem lazer, não tem cultura e os jovens estão usando drogas. As comunidades estão virando rotas de tráfico. Os adolescentes estão ficando viciados em cocaína, que é uma coisa que não é natural da região.

Teve algum impacto ambiental?

A agricultura familiar perdeu todo o incentivo. As comunidades estão parando de plantar para ir trabalhar no comércio, nas cidades. Isso tem um impacto direto na saúde. Mudou o tipo de alimentação, e as pessoas estão começando a ter problema com diabetes, porque não tem mais a produção local e estão consumindo mais produtos superprocessados.

Como é o seu engajamento cultural e político?

Há uns cinco anos, eu faço parte de um coletivo de artistas chamado Nós de Aruanda, que são artistas de terreiro do Pará. Estou em uma exposição em Montevidéu, no Uruguai, da Associação FotoAtiva de Belém, que é uma referência da fotografia da Amazônia e existe há mais de 30 anos. Hoje o Pará é um dos principais centros de fotografia no Brasil.

Exposição Evna Moura/ Juca Guimarães BdF

Te incomoda o jeito como artistas de fora retratam a região amazônica?

Eu vejo que tem uma visão totalmente rasa, que as pessoas se apegam muito ao que aparece na televisão, parece que é só violência e disputa territorial. Óbvio que tem isso, mas não é só isso. Elas não conhecem o outro lado, que é a cultura. Eu sinto que tem uma visão de que a nossa cultura é a mesma do Nordeste. Isso passa por uma questão de identidade. A nossa passa por ancestralidade indígena. Uma coisa que me incomoda na visão dos artistas de fora é confundir o místico da Amazônia, a pajelança que está morrendo, com algo menor. Dizem que é engraçado, que é pouco importante. Na Bahia, por exemplo, já foi conquistado um respeito para as questões de religiosidade.

Você acha que estão explorando a imagem da Amazônia nessas exposições de artistas de fora?

Na real, é interessante ter a presença de outras pessoas indo lá, até porque estamos trabalhando por essa proximidade, porém é importante trabalhar a forma de aproximação com essas comunidades, é uma questão básica da antropologia. Nosso trabalho é dificultado por isso. As comunidades são desconfiadas porque já foram exploradas. As pessoas vão lá, ficam na casa deles, fazem as fotos e vão embora. Eles nem sabem para onde foi aquilo e não têm retorno financeiro nenhum. São comunidades que vivem em situação de muita pobreza. Muitos vão lá para fazer só a exploração cultural.

E como é a sua relação com as comunidades onde você fotografa?

Todas as fotos que eu vendo com uma qualidade maior, separo 30% para a comunidade, para a ONG que me acolheu. Nas obras do meu mestrado vai 30% para a ONG de mulheres da Amazônia.

Edição: Cris Rodrigues

BLOG DO CINEMA: DIVERSIDADE NAS TELAS

Abril 26, 2019
 ABRIL DE 2019

A semana está repleta de estreias relevantes nos cinemas. Como não dá para discorrer sobre todas com o devido cuidado, concentremos a atenção em duas: o francês Vidas duplas, de Olivier Assayas, e o brasileiro Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza. Sobre uma terceira, o chinês Amor até as cinzas, de Jia Zhang-ke, escrevi brevemente quando foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado.

Pois bem. Do filme de Assayas, uma sinopse convencional diria que se trata do entrelaçamento da vida privada e profissional de dois casais de amigos parisienses: Léonard Spiegel (Vincent Macaigne), escritor, e Valérie (Nora Hamzawi), assessora de um político progressista; Alain (Guillaume Canet), editor, e Selena (Juliette Binoche), atriz de teatro e televisão. Uma crônica contemporânea de costumes, em suma, tendo como pano de fundo as transformações por que passa o mundo da cultura.

O tema do adultério, central na literatura francesa desde pelo menos o século 18, perpassa de formas diversas toda a narrativa, mas não é só ele que justifica o título do filme. O que o torna ao mesmo tempo encantador e inquietante, a meu ver, é o modo como cada personagem, em algum momento, se revela a antítese de si mesmo, dependendo da situação em que está inserido.

Cabem alguns exemplos para tornar a ideia mais clara. Na primeira conversa, entre o escritor Léonard e o editor Alain, este procura mostrar ao amigo a nova realidade do mercado editorial: livros eletrônicos, produção de e para a internet, audiobooks etc. Soa como um arauto da modernidade diante de um dinossauro da literatura. Em outros momentos, em face de um blogueiro de sucesso ou de uma assessora para mídias digitais, Alain passa a ser o guardião da velha e boa qualidade literária.

Do mesmo modo, Selena, a atriz, se irrita toda vez que alguém diz que ela encarna uma policial numa série televisiva. “Não é policial, é uma agente para situações especiais”, corrige. Mas quando alguém expressa admiração por sua atuação como “agente para situações especiais”, ela retruca: “É só uma policial”.

Espírito de contradição

Esse espírito dialético da contradição, tão característico do melhor pensamento francês e de muito da sua arte, é erigido aqui em método de construção e narração. Nada é dado e aceito de imediato. Tudo é apresentado, questionado e enriquecido por um contraponto verbal ou visual. Os numerosos temas – as relações entre literatura e mercado, arte e indústria, atuação e imagem na política, ficção e realidade – vão se tornando mais ricos e complexos, desenvolvidos como que em círculos concêntricos, ou melhor, em espiral.

Isso se dá não apenas nos diálogos, mas também no plano da encenação e da linguagem visual. Se as primeiras sequências são filmadas como conversas simples, basicamente em campo/contracampo e em poucos locais (um café, um apartamento), aos poucos os ambientes vão se tornando mais amplos e profundos, os movimentos de câmera mais elaborados, ainda que sem jamais perder a fluência e a naturalidade. Não por acaso, termina-se ao ar livre, junto à imensidão do mar.

Profusão de assuntos

É espantoso constatar, ao final, quantos territórios essa obra percorreu em menos de duas horas: da política às relações de gênero, da literatura à tecnologia, das fraturas sociais à busca de uma ética perene, tudo isso sob o rolo compressor da concentração de capital e da onipresença da publicidade.

Há, além de tudo, uma fina e muito moderna autoironia, que parece incluir o próprio filme em seu processo de reflexão crítica e que atinge seu ápice na cena em que alguém sugere que Juliette Binoche talvez possa narrar a versão em audiobook de um livro de Léonard e pede então a intermediação de Selena (a própria Juliette Binoche) para chegar à atriz.

Mesmo sem chegar às alturas de sua obra-prima Horas de verão (2008), Assayas se consolida como autor sintonizado com as tensões de seu tempo e como legítimo herdeiro da Nouvelle Vague – sem o romantismo de Truffaut, nem a radicalidade estética de Godard, mas com a fluência de Chabrol e a inteligência dialética de Rohmer.

Seu próximo filme, Wasp network, atualmente em finalização, é uma adaptação do livro-reportagem Os últimos soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais, sobre agentes secretos infiltrados pelo governo cubano nos Estados Unidos. No elenco, o brasileiro Wagner Moura contracena, entre outros, com Penelope Cruz e Gael García Bernal. A julgar pela excepcional minissérie Carlos, o Chacal, que Assayas fez em 2010, podemos esperar um thriller empolgante.

Aldeia dos mortos

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos conta, em resumo, a história do adolescente krahô Ihjãc, que recebe do pai morto a incumbência de completar seus devidos ritos fúnebres, para que seu espírito possa partir e a aldeia deixe de chorar sua perda.

Ao mesmo tempo, Ihjãc, que tem mulher (Kôtô Krahô) e um filho de colo, recebe da Arara (entidade que tem ascendência sobre a aldeia) o sinal de que deve se tornar um pajé. Mas ele não quer seguir esse destino, e para fugir dele vai passar um tempo na cidade dos brancos, ficando num centro de apoio indígena até ser desalojado.

Não é o caso de contar o que acontece daí em diante, mas sim ressaltar a integridade com que os diretores aderem ao universo retratado, imergindo numa história dos próprios krahôs, que desempenham seu próprio papel falando sua própria língua. Mas sem uma visão idílica de uma civilização supostamente intocada: o interessante está justamente nessa fricção entre o mundo dos índios e o mundo dos brancos, na interpenetração de um pelo outro.

Diante desse belo híbrido de ficção e documentário, narrado de forma enxuta e precisa, mas com um olhar sensível à poesia da natureza, dos corpos e dos gestos, dois filmes vêm à mente, um recente e um mais antigo. O recente é o documentário Ex-pajé, de Luiz Bolognesi, sobre um antigo pajé dos paiter suruí, reduzido hoje a empregado da igrejinha evangélica de sua aldeia. Em Chuva é cantoria, o protagonista é, ao contrário, um possível futuro pajé.

Entre o índio e o branco

O filme mais antigo é Uirá, um índio em busca de Deus (1973), de Gustavo Dahl, ficção escrita por Darcy Ribeiro, em que um índio urubu-kaapor, depois da morte de seu primogênito, sai da aldeia com sua mulher, numa longa andança em busca de Maíra, divindade criadora, e da “terra sem males”. No caminho, entra em choque com a civilização branca, que ele não compreende e que não o compreende.

A despeito de algumas semelhanças entre as trajetórias de Uirá e de Ihjãc, inclusive na cena final quase idêntica, mais significativas são as diferenças: por melhor que fosse a história do primeiro, por mais sinceras as suas intenções, havia de certa forma uma adequação do drama indígena à visão e à dramaturgia dos brancos, a começar pela escolha dos atores principais (Érico Vidal e Ana Maria Magalhães). Chuva é cantoria já é outra visão, como que um passo adiante na imersão na cultura do outro.

O passo seguinte e definitivo é os próprios indígenas filmarem suas histórias, algo que já acontece, embrionariamente, no projeto “Vídeo nas aldeias”, iniciado de modo pioneiro por Vincent Carelli há mais de vinte anos. Falta agora chegar ao circuito exibidor e ao público em geral.

Em tempo: Chuva é cantoria na aldeia dos mortos ganhou vários prêmios internacionais, incluindo o prêmio do júri da mostra Un certain regard do festival de Cannes.


José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André BretonBrasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80Folha conta 100 anos de cinema Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.

 

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GGN: MAYRINKIANAS – O CREPÚSCULO DE GLAUBER ROCHA, POR GERALDO MAYRINK

Abril 26, 2019

O filho, Gustavo, está trabalhando as preciosidades deixadas por Geraldo Mayrinck. Mais de 1.500 textos estão sendo transcritos cuidadosamente.

Jornal GGN – Geraldo Mayrink foi um dos maiores jornalistas que este país já viu e cultivou. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1942 e morreu no final de agosto de 2009, aos 67 anos, em São Paulo. Geraldo iniciou sua carreira na sua cidade, no jornal Binômio. Depois disso foi para Belo Horizonte, onde trabalhou no extinto Diário de Minas.

Então a profissão o levou ao Rio, e lá trabalhou no O Globo e Jornal do Brasil, além da Revista da Rio Gráfica Editora. Deixou seu legado em revistas como Manchete, Veja (e lá foi diretor), IstoÉ, Afinal e Revista da Goodyear. Em São Paulo atuou no Diário do Comércio, no Estadão e no Jornal da Tarde.

Mayrinck tinha um estilo marcante, não se limitava a narrar fatos, mente inquieta, os questionava e os lia além do superficial. Dono e senhor de uma ironia fina, trabalhava a crítica com coerência e bom humor.

O filho, Gustavo, está trabalhando as preciosidades deixadas por Geraldo Mayrinck. Mais de 1.500 textos estão sendo transcritos cuidadosamente. Aqui, explica Gustavo, “a última entrevista de Glauber Rocha e a epopeia de produção de A Idade da Terra, versão (bem) estendida – um “director’s cut” – de uma matéria para a Playboy, de outubro de 1980, com detalhes nunca revelados, notas de bastidores e uma auto-confissão em off. Daria outro filme”.

Leia a seguir.

Mayrinkianas – O Crepúsculo de Glauber Rocha, por Geraldo Mayrinck

Glauber Rocha abriu os olhos. Eram seis horas da manhã no Rio de Janeiro e, ainda meio dormindo no quarto do hotel Sol-Ipanema, folheava um jornal. “Eu vou morrer”, gemeu para si mesmo, bocejando, ao atender ao primeiro telefonema do dia. “Preciso de um milhão”, avisou a quem queria falar com ele do outro lado do fio. Estava quase na hora de sair para trabalhar e já ficavam lhe pedindo uma entrevista antes que o sol nascesse. Ele mesmo, na véspera, havia combinado esse horário, mas tinha esquecido. Que milhão ele queria àquela hora quase de madrugada.

Acabou de acordar, cuidou dos dois filhos pequenos, conversou com a mulher e saiu do hotel, onde vivia com eles há algumas semanas. A manhã de 30 de julho de 1980 estava muito quente e Glauber muito cansado, já cedo. Havia passado nove anos, quase três só em filmagem e montagem, cuidando de A Idade da Terra, e esperava que nas horas seguintes daquele dia a história estivesse liquidada. Preparava-se para a última sessão de montagem do filme, que seria feita no laboratório Líder, em Botafogo. E depois? “Eu vou embora”, disse várias vezes, enquanto olhava o mar, da janela de um táxi. Passou num apartamento onde havia morado antes, para pegar algumas coisas que tinha deixado lá, e seguiu rumo à sede da Embrafilme, no centro, onde iria preencher sua ficha de inscrição no Festival de Veneza, que começaria no mês seguinte. De tarde chegou de táxi ao estúdio em Botafogo para seu último combate com A Idade da Terra.

Não era um momento qualquer. Glauber se trancou na sala de montagem para ajustar o som de um avião com música e finalmente livrar-se do calvário vivido por ele e sua equipe. Este martírio começou quando eles aterrissaram em Salvador para as primeiras filmagens daquele que seria o mais mitológico dos filmes brasileiros desde que Mário Peixoto dirigira Limite, cinquenta anos antes. Glauber estourara orçamentos, brigara com os amigos e estava cada vez mais sozinho. Enlouquecera sua equipe e deixara os técnicos do estúdio à beira de um colapso nervoso. De grande expectativa do cinema brasileiro no dia em que começou a ser filmado, 8 de dezembro de 1977, A Idade da Terra transformara-se em pesadelo dos tecnocratas da Embrafilme, a empresa estatal de cinema, fornecedora de cheques que a produção de Glauber devorava impiedosamente. A verba inicial de 6 milhões de cruzeiros inchara para quase 17 milhões naquele dia do acabamento do filme, e subiria facilmente aos 20 milhões quando as cópias chegassem às salas de cinema. Complicando tudo, ninguém sabia que tipo de filme era Idade da Terra. Os atores davam versões contraditórias, às vezes incompreensíveis, e o presidente da Embrafilme, o diplomata Celso Amorim, que pagava as contas, também não contava do que se tratava na obra a que assistira solitariamente. Amorim e Glauber escapavam sempre que perguntados a respeito. “Só vendo”, diziam, misteriosamente.

Vista, a mais radical façanha artística de Glauber Rocha, o último filme que fez, comporta muitas interpretações. Não havia roteiro no papel e portanto não surgiu um enredo perceptível na tela. Os personagens de A Idade da Terra são metafóricos, como sempre o foram seu criador e outras criaturas anteriores. A mais famosa delas, Antônio das Mortes, “metaforiza”, como diz seu autor, o exército reacionário que destrói mas que descobre a revolução nessa destruição. As novas criações de Glauber “metaforizam” também personalidades tão variadas como Zumbi dos Palmares (o Cristo do sertão interpretado por Antônio Pitanga), Tiradentes (o Cristo urbano representado por Tarcísio Meira), Peri, criatura de José de Alencar (o Cristo índio na pele de Jece Valadão), o capitão Carlos Lamarca (o Cristo guerrilheiro feito por Geraldo del Rey) e o imperador César (Maurício do Valle). Este, ao contrário de crucificar, é crucificado pelos quatro cristos. Fica por conta da imaginação da plateia o que fazem todos estes cristos transitando entre Salvador, a primeira capital do Brasil, Rio de Janeiro, a segunda, e Brasília, a terceira.

É claro que A Idade da Terra já era lenda muito antes de ser filmado. Seria o primeiro — e único — longa-metragem dirigido por Glauber Rocha desde que voltou ao Brasil, em 1976, sob a generalizada suspeita de que estava louco. O sinal dessa loucura seria sua suposta adesão ao governo que o prendera em 1970 e o induzira ao exílio no ano seguinte. Quando foi embora, era quase um santo da revolução, uma espécie de mártir. Quando voltou, era um apóstata que renegava suas origens revolucionariamente santas. Glauber interpretou os dois papéis com a intensidade máxima de seu temperamento barroco. “Se quiser fazer política, vou ser deputado estadual pela ARENA (o partido do governo) na Bahia”, afirmou, em mais uma provocação. A inteligência brasileira arrepiou os cabelos, que naquela época tinha. Glauber foi morar num apartamento pequeno em Ipanema, onde a sala de visita vivia cheia e a cozinha vazia. Começou a falar e a escrever numa intensidade de dar espanto, mesmo para um falastrão e um redator compulsivo como ele. Assim, em pouco tempo a obra oratória e literária de Glauber Rocha começou a ficar tão volumosa que muitos se esqueceram que ele era, antes de tudo, um cineasta. Mas as palavras e textos de Glauber impressionam tanto quanto seus filmes.

Na volta ao Brasil, ele odiou o Rio no estilo furioso que acabou lhe rendendo tantos dissabores ao longo da vida: “É um porto velho decadente, um embarcadouro apodrecido que soçobra num mar de merda”, recitou ele lentamente, melodiosamente até, com pausas e entonações, vestindo cuecas e olhando pela janela de seu quarto de hotel, ao repórter Nirlando Beirão, que o entrevistava para IstoÉ sobre política cultural. Em outras ocasiões, Glauber fuzilou os amigos: “Os cineastas a quem eu dei filmes, mulher, crítica favorável, tudo, me traíram”. Profeta da esquerda, foi pregar num jornal governista, o Correio Braziliense, que lhe pagava comida e hospedagem em troca de artigos. “Sou um homem pobre e doente”, escreveu o mais aclamado cineasta brasileiro de todos os tempos. “Querem acabar comigo”.

Queriam mesmo? Ele tinha certeza. Glauber Rocha voltou ao Brasil para viver um grande filme — o maior de todos, o de sua própria vida. Quando desembarcou, tinha a seu crédito um currículo internacional. Quatro filmes feitos lá fora (dos quais só Cabezas Cortadas, espanhol, passaria nos cinemas brasileiros) e uma disposição inesgotável para a polêmica. Chegou como renegado porque dissera em Roma, em 1974, que o governo do general Ernesto Geisel desembocaria em algum tipo de abertura. Escreveu esta profecia numa carta ao jornalista Zuenir Ventura, que a publicou na revista Visão, provocando uma polêmica sensacional. E como Glauber saberia que Geisel, emparedado numa alma militar e alemã, acabaria mesmo promovendo a sua famosa abertura “lenta, gradual e segura”? Fontes de informação junto ao governo ele certamente não tinha. Em vez disso, esbanjava intuição. Os psicanalistas políticos de esquerda (os de direita não acharam nada) se deleitaram quando Glauber, mais tarde, explicou que sua crença se baseava no fato de que Geisel, como ele, era protestante, além de ter nascido sob o signo de Leão, o que achava um bom presságio. Além do mais, era parecido com cineastas que admirava, o alemão Fritz Lang e o americano John Ford. Ford e Lang dirigiram grandes filmes com um tapa-olho, pois haviam perdido uma vista em acidentes. Era um indício a mais, segundo Glauber: o do olho. Um pode valer mais do que dois. Outro cineasta que idolatrava, o espanhol Luis Buñuel, embora enxergasse normalmente (mas era surdo e por isso não punha música nos seus filmes), tinira os olhos saltados para fora da órbita. Isso, segundo o missivista, lhe daria uma condição especial, a de ver mais e melhor. Glauber também tinha olhos que pareciam se projetar para fora de suas cavidades, cravando-se nas órbitas dos outros. E dono de uma voz poderosa e grave, que não economizava. Se nada disso bastasse, conversava pegando no braço ou ombro de quem o ouvia. Era persuasivo. E impressionante.

Depois que anunciou suas ideias sobre olhos, signos e religião, para se explicar politicamente, Glauber se transformou num dos maiores sacos de pancadas da história cultural recente no Brasil. E da reverência com que o tratavam à piedade foi apenas um passo. “Pobre Glauber! Pobre Glauber”, repicou em manchete fúnebre o semanário esquerdista Movimento. O “pobre Glauber” realmente parecia perdido. No seu apartamento de Ipanema juntou pedaços de negativos que lhe foram dados pelos amigos — ele ainda tinha alguns — e alimentou a esperança de filmar alguma coisa.

Quando o pintor Di Cavalcanti morreu, em outubro de 1976, Glauber leu a notícia no jornal, telefonou para o fotógrafo Mário Carneiro e correu ao escritório do cineasta Nelson Pereira dos Santos para pegar uma câmera emprestada.

Era o primeiro cadáver na sua trajetória. Retirou o véu que cobria o rosto do defunto, gritou com as pessoas contritas no velório e ligou para o poeta Carlos Drummond de Andrade para dizer que Di não havia morrido porque sorrira para ele, estendido no caixão. O filme que nasceu nestas circunstâncias, com 17 minutos de duração, era atordoante a partir do título, Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Última Quimera, Somente a Solidão, esta Pantera, foi sua Companheira Inseparável, tirado de um poema de Augusto dos Anjos. Conhecido depois apenas como Di, o curta-metragem recebeu um prêmio no festival de Cannes mas, no Brasil, saiu logo de circulação por força de um processo aberto pela família do pintor. A Embrafilme comprou a produção por 300 mil cruzeiros e depositou-a na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, onde só pode ser vista mediante condições muito especiais (estudantes, pesquisadores, com pedidos por escrito). Glauber usou o dinheiro da Embrafilme para pagar a equipe e atravessar 3 meses à espera de novo trabalho.

Foi quando um segundo cadáver entrou na sua vida, de forma trágica, numa noite de março de 1977, quando Anecy Rocha, sua irmã, caiu no poço de um elevador. Antigo repórter policial na Bahia, Glauber passou a percorrer a noite do Rio em busca de “pistas” que esclarecessem a morte da irmã, mulher do cineasta Walter Lima Jr., a quem acusou de ser o “assassino”. Escreveu um arrazoado de 9 páginas tentando provar à polícia que se tratava de crime e não de acidente. Transformou-se numa figura patética e dolorida, gritando em vão por todos os cantos: “Eu tenho um cadáver dentro de casa e o próximo será o meu!” Anecy, a adorável atriz de A Grande Cidade e Amuleto de Ogum, seria de certa forma ressuscitada por Glauber no seu romance Riverão Sussuaruna, onde apresenta ao público um terceiro cadáver: o dele mesmo, enquanto cineasta. Riverão deveria ser a estreia de um romancista que se pretendia profissional. Ao cinema que o renegava respondia com um texto de 288 páginas contando a história de um grupo de jagunços que se uniam ao escritor Guimarães Rosa para a luta contra o imperialismo. Rosa mantém relações sexuais com uma mulher do bando e usa seus conhecimentos de médico para fazer um aborto. No final, de arma na mão, adere ao tiroteio contra o estrangeiro Kaster Bracker, que quer roubar urânio brasileiro. A epígrafe do livro, do próprio Rosa, era provocadora: “Minha literatura é para os bois”.

Quando Riverão saiu, porém, Glauber já desistira de ser romancista. Passou adiante seus textos Jango, uma Tragedya e O Testamento da Rainha Louca, para cuidar de A Idade da Terra. A “tragedya”, de setenta páginas, foi entregue numa pasta vermelha ao diretor Luís Carlos Maciel, com uma justificação: “Só você pode encenar isto, porque é gaúcho”. O texto trata da vida do ex-presidente João Goulart no exílio. Maciel agradeceu. Achou que poderia render um grande espetáculo, apesar de dificuldades como as contidas numa cena em que aparecem discutindo quase todos os líderes políticos do mundo. O Testamento, roteiro romanceado de 120 páginas, tem 15 personagens em conflito — um coronel, seus capangas, beatos e um americano que vem aqui comprar terras — e foi entregue a Neville d’Almeida, o diretor de A Dama do Lotação e Os Sete Gatinhos.

Pródigo em abastecer de textos diretores, jornais e editoras, Glauber porém não tinha, para ele mesmo, um script de A Idade da Terra. Quando o cineasta Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, o chamou à sala de reunião, em maio de 1977, querendo um roteiro para estudar o financiamento, Glauber se indignou: “O roteiro que vá à puta que o pariu! Quem faz roteiro é você”, gritou ele para o diretor de Assalto ao Trem Pagador. Acalmado pelos amigos, sentou-se e bateu à máquina 15 laudas sem nexo para dar andamento ao pedido.

Glauber não estava brincando. A Idade da Terra teve tantas versões datilografadas e correspondeu a fases tão diferentes da vida de seu autor, que o filme finalmente mandado ao festival de Veneza nada tem a ver com o resumo apresentado a Roberto Farias nem ao que Glauber já havia oferecido a produtores internacionais 5 anos antes. Em 1972, ano 1 da epopeia que seria seu último filme, Glauber vinha de uma temporada em Cuba e queria usar a palavra “terra” para formar uma trilogia com seus filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967). Produtores ingleses e franceses deram-lhe 10 mil dólares de adiantamento e Glauber viajou para o Chile, onde se encontrou com Norma Bengell e prometeu filmá-la, nua, correndo ao lado de um guerrilheiro na cordilheira dos Andes. De volta à França, apresentou um projeto que custaria 20 milhões de dólares e foi logo rejeitado como “improduzível”. Desiludido, deixou Paris em 1973, a convite de Rodolfo Echeverría, diretor do Banco del Cine mexicano, interessado em financiar o projeto. O México, além de ter criado um cinema tragicômico, cultiva a tradição de abrigar cineastas sem pátria e sem dinheiro. Foi lá que o russo Sergei Eisenstein rodou seu belo, infeliz e inconcluso Que Viva México, entre 1931 e 1932, e o espanhol Buñuel viveu dezoito anos de sua fértil carreira internacional.

Glauber passou um mês excitado com a promessa de Echeverría, até que ouviu por telefone: “A censura proibiu o roteiro”. Irado, deu entrevistas denunciando a “ditadura mexicana” e lhe sugeriram, sutilmente, que fosse embora do país. Irano Garcia Borges, chefe da censura e vilão da história, saiu também dando entrevistas para se explicar: “O filme não tem pé nem cabeça”, disse. Glauber voou para Roma, dirigiu o curta-metragem Claro e estava disposto a esquecer o assunto quando A Idade da Terra voltou a lhe dar coceiras. Desprezou os roteiros anteriores e viajou para Moscou, onde não conhecia ninguém. Do hotel, ligou para a Mosfilm, a empresa estatal de cinema, comunicando que havia chegado. Durante seis dias foi visitado por uma funcionária de nome Natasha, especialista em Machado de Assis, que lhe mostrou as praças e monumentos da cidade. Pediram-lhe referências e ele deu as que achou melhores: “Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, deve ter ouvido falar de mim”. O Cavaleiro da Esperança não apenas ouvira falar como compareceu a uma sessão dupla de Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (de 1969, último filme de Glauber antes do exílio), numa das salas vips da Mosfilm. Prestes foi embora, elogiando, e Glauber voltou ao seu hotel, esperando. Quando o chamaram para conversar pediram, naturalmente, que trouxesse um roteiro. Glauber inventou um roteiro falado, de uma hora, traduzido por Natasha para os burocratas da Mosfilm, que não se impressionaram. Glauber tentou degelá-los com uma comparação audaciosa: “Aconteceu comigo o mesmo que aconteceu com Eisenstein no México!” Houve mais uma exibição de Deus e o Diabo na Mosfilm. Os tecnocratas gostaram outra vez. Mas deixaram claro outra vez que queriam um roteiro — ou isso, ou nada. E aproveitaram para avisar, educadamente, que o inverno estava chegando.

Glauber não se abateu. De Moscou voou para Hollywood, com escala em Paris, onde saltou para desfazer um casamento “que já estava enchendo o saco”. Ele tinha amigos no mundo dos astros e estrelas: Martin Scorsese, o diretor de Taxi Driver, e Francis Ford Coppola, o perdulário que abalara a indústria com os 40 milhões de dólares que havia torrado em Apocalypse Now. Hollywood, seguindo também uma tradição, continuava sorrindo para os estrangeiros. O francês Louis Malle estava lá filmando Pretty Baby e o checo Milos Forman preparava sua versão do musical Hair, depois de seu sucesso com Um Estranho no Ninho. Scorsese começou a circular com Glauber e o apresentou ao presidente da United Artists, Michael Medavoy, que o recebeu com uma saudação do mais puro nonsense. “Vi Terra em Transe. É fantástico. Parece um filme de Antonioni”. Robert de Niro, testemunha desta cena, contou depois que Medavoy parecia sinceramente interessado em Glauber, embora só conhecesse seus filmes de ouvir falar. O presidente da United, no entanto, bateu na mesma tecla que infernizara Glauber em outros países. “Manda o roteiro que eu produzo seu filme”, disse. Glauber ficou passeando pela cidade com a namorada, Connie, enquanto tentava produzir mais um script. Foi jantar na casa de Milos Forman e este o recebeu de braços abertos e veneno na língua: “Quem diria, Glauber Rocha em Hollywood! Você ficou louco? Você é comunista, o que está fazendo aqui?” Terminada a brincadeira, chamou Glauber num canto e sussurrou: “Isto aqui é o paraíso dos diretores socialistas!”

Não era. Medavoy, frustrado com o roteiro que Glauber lhe mandara, foi polido mas sincero: “Seu filme é a favor da revolução socialista e contra o imperialismo. Isso nós não podemos admitir”. No entanto, ponderou, se Glauber estivesse interessado em algum outro tipo de trabalho, faroestes ou filmes de aventuras, coisas assim, movimentadas, voltariam a conversar. Não conversaram mais. Derrotado, Glauber terminou o encontro com uma provocação: “Vocês não financiariam no Brasil com o dinheiro que têm retido lá?” Claro que não. Nove entre dez produtores de Hollywood não financiam filmes de Glauber Rocha. O décimo também não.

Foi quando voltou ao Brasil para descobrir que sua peregrinação estava longe do fim. Tentou antes uma produção mais simples. Em novembro de 1976 entregou à Embrafilme o pedido do financiamento de O Guarani, ao custo de 4,6 milhões de cruzeiros; em abril de 1977 mandou trocar este pedido pelo de A Idade da Terra, avaliado em 8,5 milhões de cruzeiros, mas a empresa queria que ele baixasse o orçamento para 3,6 milhões. Glauber estava em Brasília, escrevendo um artigo para o Correio Braziliense, quando lhe telefonaram do gabinete de Ney Braga, ministro da educação. O ministro parecia emocionado. Chamou Glauber de “grande intelectual” mas como resposta foi encostado na parede: “Vou poder fazer meu filme ou não? Me diga, senão eu saio do Brasil agora e vou para a Bolívia”. Ney Braga prometeu que tomaria providências e em junho Glauber apresentou novo orçamento, de 6 milhões de cruzeiros.

Em setembro, o pedido recebeu parecer favorável mas o dinheiro não apareceu. Segundo Glauber, só havia um caminho: tomar o poder. Assim, numa manhã de outubro, ele chegou ao prédio da Embrafilme, no centro do Rio, avisou ao porteiro que era o novo presidente ali, sentou-se na cadeira de Roberto Farias e, por telefone, começou a convocar os cineastas para “uma reunião importantíssima”. Ligou para Farias e lhe disse: “Olha aqui, Roberto, eu acabei de ocupar a direção da Embrafilme. O senhor está demitido porque está me sacaneando”.

O golpe de outubro passou à história do cinema brasileiro em versões conflitantes. Na de Glauber, todos os personagens falam e gesticulam muito. Na de Farias, apenas discutem. Na de Glauber, Farias chegou à sede da Embrafilme e exclamou: “Eu me demito mesmo! Vou embora daqui! Você voltou ao Brasil para me destruir!” Na de Farias, esta cena é fictícia. Ele se lembra, sim, de Glauber gritando pelos corredores e admite que o invasor tenha mesmo se sentado em sua cadeira, “como muitos outros fizeram”. Mas defende-se dizendo que A Idade da Terra teve um tratamento até certo ponto preferencial, na medida em que exigia mais dinheiro que outros projetos. Além disso, alega, mais de um ano depois, concluídas as filmagens de A Idade da Terra, Glauber mandou-lhe uma carta declarando que “em vinte anos de cinema, pude realizar, pela primeira vez, um filme com liberdade econômica e artística”. Glauber deixou a sala que ocupara avisando que Farias ficara lá, “abaladíssimo”. Neste ponto os dois concordam. Farias se sente “aliviado” por ter deixado a Embrafilme para preparar um filme, Pra Frente, Brasil, padecendo da mesma via crucis na qual Glauber perdeu tempo e paciência: pediu 25 milhões de cruzeiros à estatal e a nova diretoria lhe acenou com apenas 11.

A lentidão burocrática ajudou a alimentar em Glauber a ideia de que estava sendo perseguido. A morte da irmã o atormentava, dia e noite. Ele chegou “ao desespero”, como disse, ao saber que o financiamento havia saído, mas que Roberto Farias viajara para a Europa, pois, segundo lhe disseram, “preferia a morte” a assinar a papelada de A Idade da Terra. Perseguição, morte. Glauber não esquecia que, depois que Anecy caiu no poço do elevador, o próximo cadáver dentro de sua casa seria o dele. Era o que não se cansava de avisar.

(Um parênteses — Glauber Rocha estava de bermudas, sandálias e uma camisa branca desabotoada, deixando ver os vastos pelos do seu peito, quando desceu ao bar do hotel Sol de Ipanema para dar esta entrevista. Era uma noite chuvosa e às 9 horas ele sentou-se ao lado do repórter para falar. Não havia mais ninguém em volta. Glauber tomou um chope, dois copos de água mineral e um café, que sorveu só pela metade. Fumou meio cigarro. Ele tinha problemas intestinais ou uma úlcera, nunca explicou, e por isso bebia quase nada. Mas estava exuberante, como sempre, na disposição para a oratória. Sua voz ecoava pelo salão vazio. Pena que não houvesse plateia. Estava sentado num sofá que terminava na parede. Não poderia sair de lá a não ser que o repórter se levantasse para lhe dar passagem. Quer dizer, era um homem encurralado num beco sem saída.

O repórter gravava a conversa num equipamento novo na época, o microcassete, emprestado por um amigo, e não sabia operar aquilo direito. Quando a primeira fita acabou, no começo da prosa de Glauber, não conseguiu abrir a caixinha da nova fita. Pediu ajuda a um garçom. Uma faca, um garfo, alguma coisa que cortasse o adesivo plástico que protegia a fita. Glauber continuava falando, mesmo sem gravação. O garçom trouxe um facão enorme e o repórter o usou, desastradamente, para esfaquear a embalagem, enquanto avisava ao entrevistado: “Vai falando”. Ele passou a falar menos e quando a fita foi finalmente colocada no lugar o entrevistado estava mudo. Mudo e com a pele amarelo-claro, cor que os amigos sempre identificavam nele em momentos de tensão. Com o gravador de novo ligado, não queria abrir a boca. Seus olhos saltados estavam cravados no facão, deixado na mesa ao lado. Aí falou: “Pede para ele tirar esta faca daqui”. O garçom tirou e a conversa continuou, de novo animada, por mais 4 fitas. Foi só muito tempo depois, com Glauber já morto, que o repórter se deu conta da cena de terror que foi aquela entrevista. Glauber deve ter intuído que finalmente seria morto e o cenário do bar do hotel vazio, com ele espremido contra a parede, era o lugar certo. O assassino, sem testemunhas, seria um jornalista conhecido dele, que já almoçara em sua casa e além disso acompanhara profissionalmente as filmagens de Terra em Transe, encarregado de produzir noticiário para a imprensa. Perfeito. O crime absoluto, sem suspeitos nem testemunhas. Devem ter sido estas as imagens que invadiram a cabeça de Glauber e o deixaram pálido, sem que o repórter percebesse que estava diante de um homem marcado para morrer. Ele se despediu cordialmente e marcou para a manhã seguinte uma nova entrevista, aquela que se abriu com a frase bocejante de sono, “Eu vou morrer”. Morreu exatamente 1 ano e 10 dias depois da conversa de mais de 3 horas no hotel. As microfitas tiveram que ser devolvidas ao seu dono, depois de transcritas. Ele as usou em outras entrevistas e depois jogou fora. Perderam-se para sempre).

Fechado o parênteses, os ex-ministros João Paulo dos Reis Velloso e Petrônio Portella mais uma vez ouviram pelo telefone a voz exaltada de Glauber e prometeram: “Tenha paciência”. A produção, enquanto isso, esquentava os motores. Vários produtores já haviam desistido de se associar a Glauber, temendo pelo pior, até que um dia ele entrou na sede de uma produtora carioca, a CPC (Centro de Produção e Comunicação), numa casinha na Urca, e perguntou: “É aqui a produtora?” Olhou o prédio, as paredes, as portas. Depois, deixou na mesa de Carlos Alberto Diniz e Tizuka Yamasaki, dois dos sócios da CPC, um calhamaço de 400 páginas intitulado “A Idade da Terra”. E comunicou: “Vocês vão produzir o meu filme, entenderam?”

Eles entenderam. A CPC era uma firma nova, tinha a seu crédito a administração de 5 filmes de Nelson Pereira dos Santos e do hit de Hector Babenco, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia. O trabalho com Glauber, decidiram, seria importante para o currículo da empresa. O dinheiro finalmente havia sido depositado e Glauber estava na Bahia, preparando as primeiras locações. A equipe foi formada no Rio, com as despesas já por conta da CPC, mas Glauber continuava alegando por telefone que não encontrara as locações certas e portanto não poderia começar as filmagens. Tizuka, que depois se consagraria como diretora com Gaijin, acabou embarcando para Salvador para começar o que ela hoje chama de “um período de grande sofrimento”.

Glauber não quis vê-la. Disse que estava doente e passou três dias assim, trancado num quarto de hotel. A cada pessoa da equipe que desembarcava em Salvador correspondia o agravamento do estado de saúde do diretor. A produção conseguiu convencer Glauber a se mudar para o hotel onde toda a equipe estava hospedada e onde Tizuka, de plantão, mantinha a porta do seu quarto aberta, vigiando o corredor. “Uma hora Glauber passou, olhou para dentro do meu quarto e não teve jeito senão entrar”, lembra ela. Nada se resolveu ali. Diniz, o diretor de produção, num quarto ao lado, fazia contas e já sabia o que o esperava. Ainda no Rio, quando Glauber passava todos os dias no escritório da CPC para trocar páginas do roteiro por outras, ele avisara: “Em três semanas vamos torrar todo o dinheiro”. Glauber só tinha uma resposta: “Comunica à Embrafilme”. Diniz comunicava e ouvia de Gustavo Dahl, superintendente de comercialização: “É, vamos ver”.

A equipe só se reuniu em Salvador quando Glauber se declarou curado de todas as suas doenças. E foi num clima de entusiasmo que partiram todos para as cenas iniciais de A Idade da Terra, no dia da procissão de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Glauber vestia calção, com uma parte da bunda aparecendo. Jece Valadão, com uma calça de mescla surrada, camisão branco e um cocar de índio na cabeça, estava emocionado. Havia largado tudo no Rio — sua casa, seu prestígio conseguido em mais de sessenta filmes e sua próspera produtora, a Magnus — desde que Glauber o procurara para falar de A Idade da Terra. Foi um encontro literalmente transcendental. Glauber contou a Jece que havia estado na casa de tia Neiva, a espiritualista de Brasília, onde teve “umas visões” de homens andando a cavalo e ouvira um conselho: “Por que não põe Jece Valadão no filme?” Glauber queria que Jece fizesse “um Jesus Cristo apocalíptico” e o obrigou a ler a Bíblia, em vez de um roteiro. E ali, no primeiro dia se filmagem, com a procissão andando e Glauber filmando, Jece tratou de improvisar suas falas até que um congregado mariano chegou até ele e convidou-o em voz baixa para que desse o fora. “Some daqui que você só faz filme pornográfico”, ordenou. Jece murmurou entredentes: “Não saio de jeito nenhum. Meu trabalho é sério. Se fosse pornográfico convidaria sua mãe e sua irmã para contracenarem comigo”. Provocado, foi sendo cada vez menos Jesus Cristo e cada vez mais Jece Valadão. Até que um homem forte, de paletó, encostou-lhe um revólver escondido no bolso e ameaçou-o de morte. Jece, tomado de pavor, ergueu a voz:

— Silvério, você vai me dar um tiro aqui, diante desta testemunha, que é padroeira da Bahia!

A multidão se animou. Jece pegou a deixa e continuou o discurso:

— Porque eles pensam que a santa é deles. A santa não é de ninguém! A santa é do povo!

Glauber estava fascinado. A câmera rodava e Sílvia Alencar, encarregada do som direto, caiu em pranto porque não conseguia gravar bem nem o discurso de Jece nem as ordens de Glauber. Foram todos salvos pela polícia até a sequência seguinte, no Museu de Arte Sacra da Bahia, onde durante três horas Glauber insultou e foi insultado pelo professor Valentin Calderón, diretor do museu, que proibiu a filmagem dentro do prédio. “Fascista! Quando estou na Bahia quem manda sou eu!”, gritava Glauber. “No museu mando eu! Ou ele ou eu!”, esbravejava Calderón para os enviados do governador Roberto Santos, mandados ali em missão pacificadora. Os jornais baianos, e depois de todo o Brasil, relataram o episódio e Glauber não se faz de rogado. Reacendera nele a velha chama e, enquanto filmava, dava entrevistas martelando as cabeças dos que imaginavam ser A Idade da Terra um filme como todos os outros. O de Glauber era determinado “pelo fluxo do inconsciente coletivo e por isso não tem roteiro prévio”. Ligava-se à “psicanálise transversal”, obedecia a uma “montagem nuclear” e era, além de tudo, “o produto estético-ideológico da democracia relativa do presidente Geisel”.

Então, os locais de filmagem começaram a se transformar em campos de batalha. O primeiro a tombar foi José Pinheiro, o “Pintinho”, maquinista respeitado de muitos filmes do cinema novo, calejado pelas câmeras que carrega e pelos cenários que monta. A equipe trocou presentes de natal e Glauber deu a “Pintinho”, que não fuma, uma caixa de charutos. Ouviu desaforos como resposta e mandou demiti-lo. Em Brasília, para onde a equipe se transferiu depois de um mês na Bahia, os motoristas de órgãos do governo que emprestaram seus carros à produção foram proibidos por Glauber de se sentarem para comer nas mesmas mesas da equipe. Estes motoristas seriam, como tantos intelectuais espancados antes por Glauber, agentes da CIA. Pedro de Morais, um dos fotógrafos, ouvia quase todas as noites que era “o pior retratista do mundo”. Johnny Howard, câmera e americano de nascença, caiu doente, gemendo de dor, depois de passar a noite carregando o equipamento de cinemascope para filmar todas as escolas de samba do Rio, terceiro e último local das filmagens. Howard estava sendo boicotado pelos técnicos brasileiros. Segundo ele, passavam gelatinas e vaselinas em suas lentes e as imagens saiam todas borradas. Pediu ao diretor que desse um jeito naquilo (“Ou eu ou eles”, exigiu) e Glauber deu. Disse que gostava muito do trabalho de Howard mas, tendo de escolher entre um profissional colonizador e os colonizados, preferia ficar com os colonizados e que o gringo fosse embora. E ele foi. Glauber acredita que estas coisas acontecem porque o ato de filmar cria problemas político-militares terríveis. “Sou prussiano com os atores”, reconhece. “Não admito indisciplina”.

Deveria estar previsto em algum roteiro, portanto, que ele e Norma Bengell se enfrentariam num duelo mortal. Os sinais disso, fortes como cicatrizes, podiam ser vistos a olho nu na biografia de ambos. Como Glauber, que foi um dos fundadores do cinema novo em 1961, com seu filme Barravento, Norma Bengell inscreveu seu nome nas origens do mesmo cinema novo também em 1961, ao interpretar Os Cafajestes, de Ruy Guerra. Também como Glauber, ela foi presa e exilada nos anos setenta. E, mais uma vez como ele, voltou ao Brasil para retomar a carreira com grande dificuldade e ainda mais sob a suspeita de que enlouquecera — como Glauber teria enlouquecido — pois havia tentado se matar em Paris. A campanha feminista radical que fez aqui, ao voltar, seria um atestado a mais de sua insanidade. Algum roteirista, mesmo o mais piedoso, poderia achar que daria certo este encontro de egos dilacerados? Mas assim foi escrito, e assim foi feito.

Norma chegou à Bahia de carro, aconselhada por Glauber, que prescreveu a viagem por terra para que ela “se encharcasse de Brasil”. Ele lhe prometera um papel no Chile, no qual ficaria nua com a cordilheira dos Andes no fundo e um guerrilheiro ao seu lado. Não deu certo, mas ela ainda se lembrava. “Por que não agora? Era uma esperança”, contou depois. Estava ansiosa por reencontrar “o ser livre solto no ar”, o “poeta que rompe estruturas”, como ainda hoje o chama carinhosamente. Glauber recebeu-a com entusiasmo, mas com poucas palavras. “Você vai ser uma rainha. Lê aí umas mulheres afro-asiáticas”, ele lhe disse. Assim como todos os atores de A Idade da Terra, Norma tinha uma noção muito vaga de seu personagem. Inventou uma certa Afro-Alemoíndia e duas vezes tentou filmar, sem conseguir. O diretor mandou: “Faz aí um sapatão, agente da CIA, qualquer loucura”. Ela decidiu imitar a si mesma. Com a voz sexy dos tempos em que era vedete de Carlos Machado, cantou um frevo de sua autoria: “Como eu queria fazer pra você/ Uma canção de amor/ Onde existissem arcos floridos, mares vermelhos/ Céus coloridos”. Glauber desaprovou e ela partiu para a expressão corporal. Jogou a cabeça para baixo, foi subindo devagar e quando sentiu a câmera quase em cio se gritou:

— Mata!

Glauber ficou possesso. Norma fez então o papel de um índio, que se transformava numa feminista e dava um grito de guerra. Foi despedida. Protestou: “Não quero. Não quero e não vou ser despedida”. Trancou-se no camarim e folheou um livro com fotos de africanos maquilados. Fez trancinhas nos cabelos, com búzios nas pontas, pintou o corpo todo de marrom, teceu uma tanguinha de palha e dependurou colares de Iansã para tapar um pouco os seios. Tizuka animou-a: “Vai lá, você está linda”. Sofreu e gritou: “Querem cortar minha cabeça. Eu vou me matar”. O coro, no centro do palco, também gritava “Ai, meu Deus!” Norma abriu a porta do camarim e entrou no lugar da filmagem. “Ai, meu Deus, digo eu”, pensou.

O diretor não a reconheceu. “Você aí, vem cá”, ordenou.

Havia no palco mulheres fantasiadas de amazonas e ela se dirigiu para um trono enfeitado com penas de pavão e avestruz. Foi quando um outro fenômeno paranormal baixou sobre o filme. Norma ouviu, vinda do meio do coro, uma voz que lhe soprava: “Filma! Filma!” Sentou no trono e começou a emitir sons, captados do além de Iansã. Estes sons guiaram as palavras que ela disse: “Espaço, espero, escuto”. Glauber finalmente reconheceu-a, ficou irritado mas depois chamou-a num canto, para dizer: “Vi o material. A rainha reina outra vez”. Nunca mais se falaram. Norma obrigara Glauber a pôr em prática a sua pregação de que a arte é livre e, portanto, deveria ser livre para todos. Por isso, teria que ser punida. Filmou mais duas sequências e foi demitida de novo. Desta vez aceitou. E no espelho do camarim deixou escrita com batom a lápide de sua passagem pelo filme: “Norma Bengell, 1935-1978”.

Glauber trombou com o elenco inteiro, prussianamente. Tarcísio Meira, que exigiu os diálogos por escrito, ficava desconcertado com a dureza das ordens. Glauber sustenta que esta dureza foi um método para destruir a imagem de galã de Tarcísio e assim captar “a esquizofrenia do personagem”. Maurício do Valle, o assustador Antônio das Mortes de filmes anteriores de Glauber, é um homenzarrão de sensibilidade infantil, capaz de chorar mas também de bater na equipe inteira. “Tive com ele um relacionamento de malandragem”, admite Glauber. Quanto a Antônio Pitanga, velho amigo do diretor, foi tratado com toda a intimidade e aspereza que esta condição lhe dava. Se duvidasse quanto ao seu personagem e sua fala, e demonstrasse isso, Pitanga ouvia primeiro a voz de Glauber ordenando ao fotógrafo “Corta!” e em seguida dirigindo-se e a ele:

— Mas o caralho! Se você não é ator eu te fodo! Seu escroto! Negro burro!

A falta de dinheiro continuava crônica e uma visita aos locais de filmagens feita por Alex Ponti, filho do produtor Carlo, não resultou em nada. Glauber jantou com ele em companhia de Gustavo Dahl e Olivier Perroy, responsável pela Filmar, empresa paulista na qual os Ponti têm interesses. Alex queria propor alguma espécie de acordo sobre a distribuição internacional do filme, mas Glauber repeliu a proposta secamente. Depois, informado por Diniz de que havia apenas cerca de 321 mil cruzeiros em caixa, explodiu: “Porra! Você nem sabe o número certo?” Diante das contas, continuou irritado: “Não me interessam as contas. Me interessa o comportamento!” Diniz foi à casa de Gustavo Dahl e entregou os pontos: “Não dá mais”. Gustavo concordou, mas fez um pedido: “É. Vê lá o que você consegue com ele”.

Por incrível que pareça, as filmagens terminaram. Exatamente, embora com enorme atraso, no dia 6 fevereiro de 1978. A Idade da Terra deveria ter cinco horas de duração e a Embrafilme, que começara com trinta por cento da produção, tornou-se gradativamente dona integral da obra. A equipe, que chegara a ter 37 pessoas, resumiu-se no final a 3: um montador, um administrador e o diretor. Glauber passou os 14 meses seguintes montando os enormes blocos do filme, tentando reduzi-los e dar-lhes uma ordem. Em abril de 1979, Roberto Farias e Gustavo Dahl deixaram a Embrafilme. A nova diretoria providenciou injeções suplementares de dinheiro para que a produção não naufragasse de vez. A amizade com a CPC acabou em gritaria, com Glauber esmurrando mesas e jogando livros para todos os lados. “Eu não posso trabalhar assim com essa calma!”, repetia. Desapareceu de vez da casinha na Urca batendo a porta, bradando já na rua “Relações rompidas! Relações rompidas!” Glauber andava pálido, os cabelos eriçados, os olhos antes saltados, afundados em cansaço.

Celso Amorim, o novo presidente da Embrafilme, costumava visitá-lo na moviola onde fazia seu trabalho de Jó. “O filme até que não saiu tão caro”, dizia Amorim, “pois 20 milhões de cruzeiros a preços internacionais significam menos de 400 mil dólares — um centésimo do custo de Apocalypse Now. Foi o primeiro espectador da versão definitiva, reduzida afinal para duas horas e meia.

Em maio, quase no fim dos trabalhos, o pai de Glauber morreu. Ele ficou outra vez deprimido porque sonhava mostrar-lhe A Idade da Terra. Seu contrato de trabalho agonizava e se sentia mais uma vez abandonado. Precisava cuidar da vida, pensou. Estava com 41 anos, ganhava 50 mil cruzeiros por mês de salário e a família aumentava. Do começo ao fim de A Idade da Terra Glauber teve três filhos, dois deles com sua então mulher, Paula Gaetan, que é a cenógrafa do filme. Temendo um ato terrorista contra ela e as crianças, mudou-se para o hotel em Ipanema. Decidiu: assim que A Idade da Terra ficasse pronto iria com a família para o festival de Veneza e depois passaria outra temporada na Europa. O Brasil, definitivamente, lhe dava desgosto. Dizia em todo lugar que “este país está fodido” e reclamava dos programas de televisão, numa crítica em que cunhou uma de suas inúmeras frases célebres: “A tv não tem linguagem, o único personagem importante das novelas é a porta da sala”.

No estúdio em Botafogo ele era esperado, portanto, com alguma ansiedade para o ato final de A Idade da Terra — a conclusão da odisseia. O meio cinematográfico, que costuma ser especialmente impiedoso com seus gênios, verdadeiros ou falsos, apostava que aquele momento não chegaria jamais. O ambiente lá estava crispado de tensões e ressentimentos. Cineastas estreantes e anônimos sentiam-se no direito de mandar Glauber “à puta que o pariu” quando ele atrasava seu horário de saída da sala de montagem, impedindo que as futuras obras-primas deles entrassem lá para serem acabadas. Arnaldo Jabor, velho amigo, quase foi agredido a pescoções quando disse que “só podia ser brincadeira” a obsessão de Glauber com atentados planejados contra ele. Jabor, que tem dois metros de altura e estava no estúdio dublando seu filme Eu te Amo, rugiu:

— Eu hei de matá-lo com minhas próprias mãos!

Glauber chegou às três horas da tarde, não cumprimentou ninguém e às três e meia trancou-se com o técnico de som, Nelson, para ajustar o tal som de avião misturado com música. Parecia um filme já visto antes. A cena da vida real era absurdamente igual a outras desde o longínquo dezembro de 1977. “Você está louco!”, gritava Nelson. “Assim não é possível! Você quer destruir o estúdio, quebrar os aparelhos!”. Às 5 em ponto Glauber deu os trabalhos por encerrados e saiu da sala, em silêncio, e outra vez não se despediu de ninguém da fila de cineastas e montadores que estavam ali só esperando que fosse embora. Esta nova geração também se manteve quieta diante do dinossauro — jovem ainda, mas pré-histórico — que se afastava. Glauber murmurou que sentia saudade de casa e só queria, naquele momento, estar no hotel, com a mulher e os filhos.

Vestido num terno cinza amarrotado e numa camisa branca desabotoada que deixava os vastos pelos do peito à mostra, comeu uma empada com guaraná no balcão da padaria em frente ao estúdio. Parecia feliz. “Ficou um filme muito bom”, ele disse, palitando os dentes. “Muito bom mesmo”, repetiu na calçada, enquanto acenava para um táxi. Entrou nele e foi para casa.

 

GGN: RAFA CASTRO LANÇA CD ‘FRONTEIRA’ EM SÃO PAULO, DIA 1 DE MAIO

Abril 26, 2019

No show, Rafa Castro é acompanhado por banda que tem como integrantes Igor Pimenta (contrabaixo) e Gabriel Altério (bateria). Show acontecerá no Sesc Vila Mariana.

Jornal GGN – O pianista, compositor e cantor Rafa Castro, mineiro radicado em São Paulo, lançará seu CD ‘Fronteira’, com show no Auditório do Sesc Vila Mariana, dia 1º de maio, com participação especial de Tati Parra.

No show, Rafa Castro é acompanhado por banda que tem como integrantes Igor Pimenta (contrabaixo) e Gabriel Altério (bateria). Nas canções, participação especial de Tati Parra. Rafa mostra músicas próprias, como Casulo, Menino Dançante, Teimosa e Cacos de Vitral, além de composições com novos arranjos de músicas de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Lô Borges e outros.

Rafa comenta sobre as músicas de outros autores que escolheu para o show, dizendo que a ele interessa ‘fazer essa ponte entre o agora e essas músicas que são dos anos 1970 e 80, por exemplo. Elas, realmente são referências para minha criação, tanto na sonoridade, com melodias e harmonias incríveis, que provocam a percepção, quanto pelas letras que me emocionam, sempre que ouço’, conclui.

Sobre o seu CD Fronteira, Rafa diz que é um momento de descobrimento, onde traz a carga afetiva de suas influências. ‘Consegui juntar dois pilares, a ‘música de minas’ e meu trabalho de trilhas sonoras, num resultado que faz sentido para mim. Todos os músicos que participam têm a versatilidade de serem instrumentistas de jazz, ligados à música instrumental e ao mesmo tempo, conhecedores do cancioneiro popular’, diz ele.

O CD, distribuído pela Tratore, tem participações de Mônica Salmaso, Teco Cardoso, Léa Freire, entre outros, mostrando um Rafa em casa, mesmo sendo na capital paulista. O projeto gráfico é de autoria de Lorena Dini, também autora das fotos, que traz as folhas do encarte em forma de ‘cards’, que podem ser montadas aleatoriamente.

Em menos de 10 anos de carreira, Rafa Castro é autor de trilhas sonoras para o cinema, como ‘Cacos de vitral’ e ‘Modorra’, bem como teatro. Em 2011 recebeu o prêmio BDMG, de Belo Horizonte, na categoria ‘Jovem Instrumentista’. E gravou seu primeiro CD solo em 2015, ‘Casulo’, além de ter realizado uma turnê europeia.

O álbum Fronteira apresenta 10 músicas, algumas em parcerias com nomes como Bernando Maranhão, Vinicius Steinbach, Pablo Bertola e Thomaz Panza.

Nascido em São João Nepomuceno (MG), Rafa Castro começou com violão na adolescência. Aos 19 anos, descobriu o piano e confirmou a qual instrumento queria dedicar. Logo depois foi aprovado na Universidade de Música Popular Bituca (Barbacena/MG), onde estudou com figuras ilustres como teórico da música brasileira Ian Guest e o violonista Gilvan de Oliveira, dentre outros.

Serviço:

Rafa Castro (pianista, cantor e compositor)

Lançamento do CD ‘Fronteira’

Banda:  Igor Pimenta (contra-baixo) e Gabriel Altério (bateria)

01/05/19 – quarta – 18h – Livre – Dur.: 70min –.

Rua Pelotas, 141, Vila Mariana, São Paulo.