Aí, vinilesquizofílicos! Hoje, o passeio do esquizo é uma bolacha crioula de arrepiar os amantes da música inquietante, exaltar os que respeitam o homem que mudou a estratégia de produção musical no Brasil e satisfazer os colecionadores das joias raras do Viva o Vinil!
Mais uma vez, esse Esquizofia apresenta uma relíquia da arqueologia discográfica da Associação Filosofia Itinerante (Afin) da qual ele é um vetor-virtual. Trata-se da Edição Especial gravada pela Discos Marcus Pereira, em 1982, Tributo a Marcus Pereira. Não podia deixar de ser uma Edição Especial. Disco que traz obras de Josias Silva Sobrinho, Cartola, Paulo Vanzolini, José Maria Giroldo, Carlos Paraná, Adauto Santos, Leci Brandão, adaptação de O Menino feita por Dercio Marques, Chico Maranhão, João do Vale, Helena Gonzaga, Rossini Tavares de Lima, Leo Karan e Gilberto Karan só podia ser uma Edição Especial.
E mais, apresentação do eminente e resistente jornalista, escritor, amicíssimo de Marcus Pereira, e também boêmio, porque socialista não é de ferro, Audálio Dantas. Um homem com uma história política rica nos meandros do Brasil. E mais do mais, em sua apresentação, ele faz um esboço histórico do Jogral. Jogral, criado junto com Carlos Paraná, “bar e assembleia permanente de amigos”. E mais do mais, do mais, traça as linhas da criação da Discos Marcus Pereira.
Deixemos de coisas. Vamos ao Audálio Dantas!
MANDA VER, AUDÁLIO DANTAS!
“Uma sensação muito clara de enriquecimento de quem conseguiu fazer treze pontos no jogo mais importante da vida, que é o da relação Humana”.
Quem disse isso foi Marcus Pereira, por causa da alegria que sentiu no dia em que ganhou um violão de estimação, presente de Carlos Paraná, seu parceiro de canções e inventor do “Jogral”, bar e assembleia permanente de amigos.
Marcus Pereira foi o co-inventor e sócio do “Jogral”, um bar tão verdadeiro que podia ser equiparado ao mais honesto dos botequins deste país. Na verdade, o “Jogral”, bem comparado, era um botequim que fazia algumas concessões: tinha lé seus uísques e outras bebidas finas. Mas não desprezava a cachaça, da qual alguns fregueses, como Paulo Vanzolini, doutor em bichos e sambas, tomava generosas talagadas. Com gelo. No mais, era assembleia permanente, a roda de amigos, de gente que se queria. E música.
A música, da boa e brasileira, era a presença mais forte no “Jogral”. Tanto, que o nome do bar virou selo de disco e foi parar numa gravação histórica – “Paulo Vanzolini, onze sambas e uma capoeira” – a primeira de uma série que de tão boa, terminou por dar origem a uma empresa hoje incorporada ao patrimônio cultural brasileiro – “Discos Marcus Pereira”. Este primeiro disco, de 1967, trazia a marca “Jogral” e dava a dimensão do próprio bar, que reunia os melhores interpretes da música popular brasileira (a rigor, nenhum dos nosso músicos importantes, de Cartola a Chico Buarque, deixou de passar pelo “Jogral”, a serviço ou em missão de boemia e amizadae).
Outro disco com a marca do “Jogral” sairia em 1968, “Flauta, Cavaquinho e Violão. Um disco de choro, corinho brasileiro, Carinhos, Tico-Tico no Fubá, Brejeiro, André do Sapato Novo, Apanhei-te Cavaquinho. Os interpretes, gente de casa, Manezinho da Flauta, Adauto Santos, Geraldo Cunha, Benedito Costa, Fritz. E desse jeito um barra, um ilustre botequim ia tecendo a sua participação na história de uma produtora de discos.
Marcus Pereira navegava no sonho de produzir muitos discos de música brasileira de qualidade. No “Jogral”, seu barco de rirmos e afetos, ele foi, aos poucos, abrindo o caminho de sua produtora, tarefa repartida com Carlos Paraná, sócio de bar e de sonhos.
Do bar, Marcus Pereira era sócio minoritário. Sua participação, dizia, era “afetiva, artística, boêmia e desse capital nós recebíamos dividendos astronômicos”. O resto era garantido pela “Marcus Pereira Publicidade”, uma agência de sucesso que logo daria lugar a uma produtora de discos. Marcus justificaria mais tarde: “Eu não gostava do que fazia, em sã consciência é muito difícil gostar de ser cúmplice de interesses que vivem a estimular, ao delírio, o consumo numa sociedade onde apenas a minoria tem condições de consumir, inclusive as coisas fundamentais da vida”.
Estas palavras, este modo de ver o mundo definem Marcus Pereira, a quem este disco, com o selo dignificou, presta a devida homenagem. Um disco com música brasileira da que Marcus mais gostava, interpretada por artistas que ele lançou, relançou ou simplesmente admirou.
Por enquanto, fica esta homenagem. O resto, o devido, virá no dia em que se escrever um novo capítulo da história da música popular brasileira, na qual deverá parecer, iluminado, o nome de Marcus Pereira, pastor da noite, arrebanhador de ritmos brasileiros, norte, sul, leste, oeste. Esse trabalho, o de arrebanhar ritmos, ele fez com tanto amor e competência, que, dizem por aí, pelos bares da vida, nos jograis que resistem, que o Marcus, como já aconteceu com Carlos Paraná, virou música”.
Audálio Dantas
FICHA TÉCNICA
“Faz um ano, neste fevereiro de 82, que Marcus Pereira nos deixou. Lá se foi ele, convocado, quem sabe, pelo Carlos Paraná, para a fundação do “Jogral” do Céu. Por certo eles estão juntos, curtindo os momentos maravilhosos que passaram aqui deixando um altíssimo saldo positivo em favor da música e do músico brasileiro.
Marcus Pereira se foi e ficou um vazio enorme entre nós que o queríamos tanto. Procuramos, então, reunir as músicas que ele mais gostava e alguns amigos a quem ele deu a mão, gravando o primeiro disco. Saiu esta seleção de vários estágios, de várias épocas de sua gravadora, a Discos Marcus Pereira, muito mais um estado de espírito que uma gravadora convencional”.