Estamos no ano de 1980, no Estúdio Eldorado para confirmar essa relíquia, joia raríssima do cancioneiro brasileiro, bolacha-crioula Geraldo Filme. Podes crer vinilesquizofílico, essa é preciosidade tanto no sentido histórico como no sentido musical. São poucos, como vocês, que podem transar essa pérola-rara que tem valor superior ao rubi.
Quer ter saber sobre Geraldo Filme? Então vamos dá uma chegada em Barra Funda e conversa com Plinio Marcos. Mas, antes do saber Geraldo Filme, vamos ao saber Plínio Marcos. Plínio Marcos é daqueles caras, muito difícil de encontrar em São Paulo de hoje em função de sua autêntica vivência suburbana que lhe servia como estética criadora. É teatrólogo da urbe com suas violências instituídas pelas forças do capitalismo. Artista engajado cujos temas sempre tiveram as cores da sociedade da abundância que marginaliza e pune sadicamente os despossuídos. Escreveu peças que transpirava essa ambiência desigual como o clássico Navalha na Carne, Dois Perdidos Numa Noite Suja, Homens de Papel, Quando as Máquinas Param, Abajur Lilás, etc. Também é articulista, compositor, e jogador de tarô. Algumas dessas peças, como Navalha na Carne, foram transformadas em cinema.
Foi o grande sintetizado filosófico da condição absurda imposta ao povo em um aforismo cruel.
“Nas quebradas do mundaréu. Lá onde o vento faz a curva, o sol se esconde e chuva encosta o lixo”.
Agora, posto esse saber, vamos acompanhar Plínio Marcos que acompanha Geraldo Filme.
O SAMBISTA GERALDÃO DA BARRA FUNDA
O POETA DO POVO BRASILEIRO
“Quando o crioulo elegante, que saía com seu violino nos cordões carnavalescos de São Paulo, parou de tocar seu instrumento, Dona A8gusta não teve tempo para curtir sua mágoa. Foi obrigada a enxugar as lágrimas no avental e dar duro na cozinha de uma pensão para não interromper o sonho que lhe embalava a vida: fazer seu garoto: o Geraldinho, um doutor. Mas, na batalha do dia a dia, o filho de Dona Augusta tinha que dar uma mão.
Enquanto não chegava o tempo da faculdade, ele ia entregando as marmitas lá pelos lados da Barra Funda. Era andar pela Praça Marechal, pela Alameda Glete, pelos Campos Elísios, pelo Largo da Banana, com as marmitas, e escutar samba. Samba pesado, batuque vindo dos terreiros do café no interior do estado. E o Geraldinho, que naquele tempo era conhecido pelo apelido de Negrinho das Marmitas, foi ficando ligado no samba.
Lá no Largo da Banana, as corriolas se juntavam para esperar o caminhão para descarregar. Enquanto não vinha o caminhão, jogavam ‘tiririca’. E o Negrinho das Marmitas foi chegando na roda dos bambas. Foi ficando taludo, apanhou, aprendeu a bater. Fez o nome, Geraldão da Barra Funda. Ficou espaçoso. Já ia para o Bexiga nos bailinhos de porão, onde crioulo de mais de metro e setenta tinha que dançar dobrado em cima da dama pra não bater a cabeça nas vigas do teto. Quando o pagode esquentava, a poeira subia e só se sabia que tinha gente lá dentro pelo ronco da cuíca e pelos gemidos do cavaquinho.
E no Bexiga, o Geraldão foi ganhando divisa, direito de dizer seu samba na Rua Direita, no Largo São Bento e na Sé.. Na Praça da Sé, no pé do velho relógio. Ponto de tira teima dos sambistas do passado. Aí, o sonho da faculdade já era. Mas, o Geraldão da Barra Funda, o Geraldo Filme, se fazia um poeta maior, cantor da sua cidade.
Ele, mais do que ninguém foi preservando nos seus sambas a memória desta cidade que crescia e cresce desordenadamente e que vai sendo descaracterizado a todo momento com a justificativa do progresso. Ele, Geraldão, que conhece São Paulo como a palma da sua mão e que ama São Paulo, tem feito o que pode para registrar o espírito da cidade Ele é um cronista da gente e da cidade que ama. Canta nos seus sambas o Largo da Banana, a Sé, o Bexiga. Chora a morte dos bairros e dos bambas como Pato N’Água. Sua obra é muito importante, não só no aspecto do samba puro da apulicéia. A obra de Geraldo Filme é uma referência para todos os que quiserem saber da história da cidade de São Paulo. Como artista popular, o Geraldo da Barra Funda, tem batalhado para abrir espaços para ele e seus companheiros.
Porém (e sempre tem um porém), só agora, já coroa (52 anos), ele, por feliz iniciativa da Eldorado, tem a chance de mostrar um LP todinho seu (e aproveita para meter um de gente que vem chegando agora, Oswaldo Arouche, Walter Pinto). Que Deus nos ajude para que esses sambas lindos cheguem ao nosso povão. Que os disque-jóqueis, sempre tão envolvidos com a música estrangeira, deem passagem para esse sambista maior: Geraldo Filme, o Geraldão da Barra Funda, legítimo poeta do povo brasileiro”
Plínio Marcos