Archive for Dezembro, 2020

PREVISÕES DE MÃE DAYMARA PARA O NO DE 2021

Dezembro 31, 2020

PRODUÇÃO AFINSOPHIA.ORG

Todo fim de ano os membros do site Afinsophia.org e do Blog Esquizofia comparecem à casa de uma Mãe ou um Pai de Santo para para entrevistá-los e, assim, ouvir suas previsões referentes ao ano entrante. O ano alcunhado tradicionalmente de novo, visto que a palavra novo leva para entendimento de fatos e feitos benéficos, não só para cada pessoa em si, mas, também, para toda a sociedade. Embora saibamos que todo indivíduo é ele mesmo em si e a sociedade, como já foi afirmado pelo revolucionário filósofo Marx.

Entretanto, este ano, em função da imposição da pandemia, nós não realizamos a entrevista no face a face, como sempre fazemos. Diretamente, sentindo o cheiro da casa, o cheiro do café, o sabor da inigualável caninha, o bom e velho charuto, quase sempre cubano, o pastel recheado com jaraqui frito, banana frita, tapioca, cachorro latindo, gato dormindo nos atabaques, crianças brincando, bolo de fubá, manjar dos deuses. Nada disso foi possível, mas tão somente pela imaginação, posto que tivemos que recorrer a entrevista através da simulação da presença: a live. A desrealização do real como o duplo infantilizado, onde o outro desaparece fundando a gestalt do imperceptível. A ilusão-nostálgica do duplo. O fim do espelho de Lacan.

Porém, graças a nossa ignorância, a simulação teletecnológica tão defendida pelo doublê de filósofo, Pierre Lévy, foi impedida de se transformar em psicodelismo computador-visível. Não foi possível ser projetado como aplicativo live. Houve um agente providencial que não permitiu a transposição da gravação. Desta forma, salvo pelo filósofo Jean Baudrillard, transcrevemos toda a entrevista aqui no Afinsophia.org e o no Esquizofia.

A ENTREVISTA COM MÃE DAYMARA

AFINSOPHIA/ESQUIZOFIA (Todos alegres) – Mãe Daymara, com sua permissão, gostaríamos de oferecer esta entrevista-celestial para nossa querida-amiga Mãe Emília que se movimenta agora na caosmose-celestial junto com outras mães e pais, e que tem um nome construído com profícuos trabalhos junto à comunidade de Manaus.

MÃE DAYMARA (Emocionadíssima) – Claro! Esta histórica entrevista tem que ser oferecida com toda glória à Emília, minha honrada e inesquecível companheira. Trabalhamos muitas vezes juntas.

A/E – Honradamente, vamos começar a entrevista-histórica (Pausa). Tudo bem, Mãe Daymara?

MÃE DAYMARA (Gargalhando) – Não!

A/E (Surpresos) – Não!!

MD – Como tudo pode se encontrar bem com toda essa miséria no mundo. E no caso do Brasil, quase 15 milhões de desempregado, além da pandemia que já matou, só no Brasil, quase duzentos mil brasileiros. A barra está pesadíssima.

A/E – Desculpe Mãe Daymara! Fomos mal.

MD (Sorrindo) – Vou desculpar, mas não aceito que o pessoal da Associação Filosofia Itinerante (AFIN) use os mesmos clichês semióticos das aberrações. E aprendam de uma vez, para não errar mais: a desculpa não passa pelo sistema nervoso central. É mistificação, como diz o filósofo que vocês seguem, Nietzsche.

A/E – Fomos otários. Mas a senhora afirma que a barra está pesadíssima. Nos diga: em 2021, vai melhorar ou piorar?

MD – Depende.

A/E – Depende de quê?

MD – No caso do Brasil, que é a nossa responsabilidade, depende das atitudes da sociedade brasileira. Partir para a luta em todos os seguimentos: sociedade civil, Congresso Nacional, STF, movimentos sociais, igrejas progressistas, mídias democráticas, todas as vozes. Criar um novo agenciamento coletivo de enunciação produtor de novas formas existenciais de viver sem os quais o Brasil não sobrevive.

A/E – Falando em Congresso Nacional. Quem vai levar a eleição na Câmara? A turma do Bolsonaro ou o bloco contrário?

MD (Sorrindo) – Não existe turma do Bolsonaro. Falar desta forma é valoriza quem não tem qualquer relevância política. Os reacionários, retrógrados, antidemocratas sempre foram a maioria no Congresso Nacional e o Bolsonaro está servindo para a ambição deles. O próprio bloco contrário está contaminado por esses reacionários.

A/E – Mas a senhora não pode nem indicar uma pista de quem ganha?

MD – Posso. Pela minha vontade, ganha o bloco que faz parte a esquerda, mas temos que contar com a imoralidade-política dos outros. Mas, vamos levar essa. Que não é tão nossa. Vide os acordos.

A/E – Uma pergunta que interessa a maioria dos brasileiros: vai ter vacina para todos? E, completando: quando começa?

MD – A pergunta foi boa, já que um grande número de aberrações, seguindo o líder, afirma que não vai tomar e ainda diz que Deus não vai permitir serem contaminados. A vacinação começa pelos meados de fevereiro ou antes.

A/E – Com todo negacionismo do inquilino do Palácio do Planalto?

MD – O negacionismo não tem qualquer potência é apenas uma palavra esvaziada de ação. Por isso, não passa de superstição. O que produz o mundo é a potência criativa do Ser que se move como virtual-mutante do novo. A vacina faz parte do conactus da vida: a perseveração do viver. A vacina é a continuação da vida.

A/E – E o impeachment vai sair?

MD – É possível. Se o bloco de esquerda ganhar vai ser mais fácil. Mas a sociedade não precisa esperar o Congresso Nacional. Ela tem que não mais suportar as atitudes antidemocratas do inquilino. Tem que gritar uma basta! Se convencer definitivamente que para alguém ser presidente de uma República como o Brasil, tem que ser dotados dos atributos, princípios, predicados, valores superiores. Entender que não é o cargo que vai transformar qualquer um em uma autoridade para ser respeitada e ouvida. É preciso, também, muito panelaço todo o dia. A filósofa Hannah Arendt já afirmou claramente.

A/E (Batendo palmas ) – O que gosto na Mãe Daymara são esses profundos saques filosóficos. Claro que sabemos que ela além de filósofa é antropóloga, escritora, cinegrafista, atriz, poetisa, compositora, cantora, grande sambista, pintora, analista-política  e ainda joga futebol. E falando em futebol: o futebol brasileiro vai melhorar:

MD – Não. Vai continuar com os mesmo pernas de pau com jogadores e cartolas bajulando o inquilino. Mas eu tenho uma boa notícia para vocês. Para vocês não, para nós. O time do Manaus vai subir.

A/E (Palmas) – Falando em time do Manaus, e a cidade de Manaus como vai ficar?

MD (Sorrindo) – A mesma não-cidade. Trocaram um prefeito pelo mesmo. E com dois nomes mitificados. E como vocês sabem, mitologia não combina com política. O bíblico encontra-se envolvido com os mesmo personagens da realeza-fálica. Exemplo bem próximo: a indicação do ex-deputado Pauderney Avelino para a Secretaria de Educação do Município. O que é que Pauderney entende por Educação, já que passou todo seu tempo parlamentar defendendo causas antidemocratas como membro de um partido reacionário, um partido de patrões.

A/E – Quer dizer que Manaus está pebada?

MD – Não. Tem o devir-povo que não se submete às imposições irracionais das chamadas autoridades. Têm os reais movimentos sociais, tem os trabalhadores não pelegados.

A/E – A senhora perspectiva algum partido de esquerda entrando nesse movimento de criação da Cidade de Manaus, a original? Por exemplo o PT?

MD (Gargalhando) – O PT de Manaus é claramente de direita. Não viu a discursividade do candidato Zé Ricardo. Um marketing igualmente reacionário. Nada de ousadia. Referente ao povo como sujeito-histórico democrático, o PT é como a Universidade Federal do Amazonas: reificada e alienada em uma modelização esquizofrenogênica territorializada por seus segmentos burocráticos-institucionais-delirante não é traspassada por fluxos-mutantes e quantas-desterritorializantes. É preciso sinceridade: Manaus reflete muito a Universidade. Não devemos esquecer que a maioria dos profissionais da não-cidade foi modelada e organizada lá.   

A/E – Mas dizem que Manaus é atrasada, nunca muda, elege sues próprios inimigos, porque sofreu um forte trabalho enfeitiçante de macumba: enterraram uma carcaça de mula embaixo do Teatro Amazonas.

MD (Dando uma estrondosa gargalhas) – Que é isso, companheiros e companheiras? De macumba eu conheço. Esta história de carcaça de mula é usada por todo governante incompetente e corrupto para se defender e agir ilegalmente com o dinheiro . O diálogo é esse: “Prefeito, Manaus não avança. não sai do atraso”, pergunta o povão. “É a carcaça de mula!”. “E por que as autoridades não desenterram a carcaça da mula que tanto impede o desenvolvimento e o progresso de Manaus?”. “É impossível: para desenterrar a carcaça da mula nos teria que derrubar o Teatro Amazonas, e isso é um atentado a história da cidade, o orgulho dos moradores, e os franceses responsáveis pelo templo artístico, não iam gostar”. E tem mais: os animais não têm nada ver com a moral dita humana. Isso é antropomorfismo: atribuir sentido humanos aos animais. Incompetência é incompetência. Se uma mula tivesse que se enterrar jamais seria em Manaus. Se enterraria em sua terra, junto com seus companheiros.

A/E – E a segunda turma do STF vai julgar a liminar de Lula?

MD – Não.

A/E (Surpresos) – Não!

MD – Vai julgar a parcialidade de Moro.

A/E – E o que vai acontecer?

MD – Lula vai ter seu direitos políticos resgatados e Moro desmascarado sofrendo vários processos, chegando ao fim da linha de sua ilusão-fálica de ser um eminente jurista.

A/E – E a Globo vai informar ao povo que seu mito não era nem humano-juridicamente para ser tratado como mito?

MD – Vai. E vai fazer o que sempre faz com as mercadorias que usa: vai jogar no lixo-midiático.

A/E – E na decisão da Copa Brasil, quem vai ganhar Palmeiras ou Grêmio?

MD – Nenhum dos dois: todos dois são bolsonaristas.

A/E – E qual vai ser o destino das fake news?

MD – Vai diminuir a força de enganação do incauto. As eleições municipais já mostraram que elas não estão com toda bola. Não adiantou: as esquerdas se fortaleceram.

A/E – Falando em eleições, como vai ser administração do Edimilson, do PSOL em Belém?

MD – Boa. Ele tem os princípios básicos para se ser governante. Tem uma inteligente acima da média, é dotado de sensibilidade necessária ao novo e uma ética coletiva comprometida com o Bem Comum. Tudo que falta em todos governantes reacionários das direitas e ultra-direitas. E por que não dizer: os nazifascistas.

A/E – Não poderia faltar a pergunta narcísica: E quanto o Afinsophia.org e o Esquizofia, quais são as previsões? 

MD – Nenhuma!

A/E (Surpresos) – Nenhuma! Então, vamos acabar?

MD – Vocês não se metem a ser filósofos? Então, vocês sabem que as previsões são realizadas para as coisas, ideias, pessoas que atuam ou não atuam no tempo pulsado. O tempo modelizado pela semiótica dominante. Assim, como o espaço e a matéria de expressão como objetividade territorializada. Vocês são movimento, devir-mutante. Ninguém pode futurar um movimento. O que Marx tão sabiam. O que vai acontecer com vocês é produto do agenciamento coletivo estético que revelará novas formas de sentir, ver, ouvi e pensar. O que vocês já realizam pelas virtualidades poiéticas. 

A/E – Que toque, hein, meu. E nós ainda imaginamos que somos os tais. Agora, nesse finalzinho Mãe Daymara, não dava para fazer uma performance musical?

MD – Só se for uma samba. Pode?

A/E – A senhora é uma deusa! A senhora pode tudo!

MD – Então, vamos lá:

“Não deixe o samba morrer

Não deixe o samba acabar

O morro foi feito de samba

De samba pra gente sambar.

Quando eu não puder

Pisar mais na avenida…” 

INSCRIÇÕES PARA O CONCURSO LITERÁRIO ‘TE CONTO EM CONTOS’

Dezembro 30, 2020

BALZAC – O ESCRITOR DA BURGUESIA

Dezembro 30, 2020

Por João José de Melo Franco 2020.

Honoré de Balzac - Knoow

 
Gustave Flaubert, já muito acostumado aos louros literários por seu “Madame Bovary” (1857), certa vez afirmou que Honoré de Balzac escrevia mal (“Que homem teria sido Balzac se soubesse escrever!”). A crítica é mal fundamentada, uma vez que Flaubert tem por base apenas a si mesmo, um escritor cheio de pruridos de estilo, onde a sintaxe, o vocabulário e o enredo eram trabalhados e retrabalhados à exaustão, ou seja, aquilo que em Flaubert é uma qualidade, em Balzac a mesma qualidade se transformaria em afetação. Pois o estilo de Balzac é uma invenção de Balzac, uma invenção posta em prática para atingir seus objetivos literários, sociais e econômicos, tudo ao mesmo tempo, e ele tinha pressa!

Flaubert levou cinco anos para concluir “Madame Bovary”; cinco anos para Balzac significavam uma eternidade. Ele trabalhava de forma assoberbada, apressadamente. A Literatura para Balzac era não apenas a arte à qual se destinara a cumprir, mas também o seu modo de ganhar dinheiro (passou a vida adquirindo imensas dívidas e fugindo de credores). Em sua fase mais produtiva, em cinco anos, escreveu mais romances e novelas do que Flaubert escreveu a vida toda. Em que se pese que Flaubert foi e é um grande escritor, e fez contribuições decisivas para a Literatura (sua influência está presente até os dias atuais), não quer dizer que Balzac não o foi e o é. Aliás, o autor de “Madame Bovary” foi bastante influenciado pelo próprio Balzac e até mesmo lhe serviu de modelo (“A mulher de trinta anos” – 1835). Em defesa de Flaubert, também podemos dizer que ele não foi o único a criticar Balzac e abordar a obra balzaquiana de forma superficial, sem penetrar a fundo na “Comédia humana”.

De qualquer modo, não estamos aqui querendo sobrepor quantidade à qualidade e Flaubert é por si só um grande escritor. Mas fato é que o autor da “Comédia humana”, essa imensa e pretenciosa invenção literária, para além de seus quase noventa romances e novelas, e suas mais de duas mil e quinhentas personagens inter-relacionadas e aparecerão em mais de um livro, contém, não uma, mas várias obras-primas. E isto só será conhecido por aqueles que penetrarem mais fundo na “Comédia humana”, não se contentando com a leitura de um ou dois romances. Entre esses leitores destacam-se escritores do calibre de Marcel Proust, Émile Zola, Charles Dickens, DostoyevskyHenry JamesMachado de AssisMonteiro Lobato, Ítalo Calvino e muitos mais. E não foi por acaso que Balzac tornou-se o escritor preferido de Karl Marx. E Engels, em uma carta, declara à sua destinatária que aprendera com Balzac mais do que com “todos os historiadores professos, economistas e estatísticos do período juntos.”. Já Otto Maria Carpeaux, nas páginas que dedicou a Balzac na sua magnífica “História da literatura ocidental”, sentenciou: “A história do romance como gênero literário divide-se em duas épocas: antes e depois de Balzac. Com ele, até o termo mudou de sentido. Antes de Balzac, “romance” fora a relação de uma história extraordinária, “romanesca”, fora do comum. Depois, será o espelho do nosso mundo, dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos.”.

Embora muito do “homem” Balzac se imiscua com as personagens de sua obra (Balzac era um católico conservador e adepto da Monarquia do “Antigo Regime”), no seu caso, a obra supera o autor. Homem de muitos desejos, Balzac a tudo se lançava com uma paixão voraz, desde conquistas amorosas, incluindo baronesas e marquesas, até empreendimentos e negócios mirabolantes, sempre terminados em insucessos, fora seu desejo de reconhecimento literário e também da sua genialidade. Contudo, ao se atirar à escrita, seu olhar arguto e de viés sociológico, o lançava a um furioso e minucioso escrutinar da vida como era vivida na primeira metade do século XIX, com a ascensão da burguesia, que teria a partir daí o “culto do dinheiro” como sua principal característica, hoje tão comum e tão banalizado. Sim, escritor da burguesia, e também o seu carrasco, sendo que é este o fato que o coloca na Literatura Ocidental como o “pai do Realismo” e como “pai do romance moderno”. Ler Balzac em sua época significava defrontar-se com verdades até então quase nunca abordadas nos romances, como, por exemplo, ser o casamento não o final feliz das histórias, mas bem o seu contrário, ser o “contrato” de casamento o começo das histórias e estas muitas vezes acabarem num bueiro nojento; ou ainda, o fato de se ter, ou não, uma nota de “vinte francos” no bolso, determinar o começo da desgraça ou da felicidade. Olhando por este caminho, acabaremos concordando com o autor, e o declararemos um “gênio”! Assim também pensava W. Somerset Mougham, que dizia ser Balzac o único escritor a quem atribuiria o epíteto de gênio, e que se tivesse que indicar um livro dele a quem nunca o tivesse lido, indicaria “O pai Goriot”.

Eis aí uma das obras-primas de Balzac, “O pai Goriot”, romance publicado em 1834, inicialmente como folhetim, em quatro tiragens seguidas da “Revue de Paris”, e depois em formato de livro, em 1835 (a história se passa em 1819, no período da Restauração, sob o reinado de Luís XVIII). Foi um enorme e escandaloso sucesso literário de Balzac, no qual, tomando uma pensão parisiense como epicentro do enredo, e utilizando um recurso de estilo que é quase como uma marca registrada em muitos de seus romances, vai lentamente nos introduzindo no lugar em que viremos a conhecer as principais personagens. Logo nos primeiros parágrafos de “O pai Goriot”, nos acena o autor com uma descrição que traz em seu bojo o que ali haverá de se passar:

“… Um parisiense que por lá se perdesse veria apenas pensões burguesas ou instituições, miséria ou tédio, velhice que morre, alegre mocidade aprisionada, forçada a trabalhar. Nenhum bairro de Paris é mais horrível e, digamos de passagem, mais desconhecido. A rue Neuve-Sainte-Geneviève, sobretudo, é como uma moldura de bronze, a única que convém a esta narrativa, para a qual o espírito nunca estaria demasiado preparado por cores escuras e ideias graves, assim como, de degrau em degrau, a luz vai diminuindo e a voz do guia se tornando mais débil enquanto o viajante desce às Catacumbas. Comparação exata! Quem afirmará o que é mais horrendo de ver, corações empedernidos ou crânios vazios?”.

E logo em seguida nos lança para dentro do lugar:

“… A fachada da pensão dá para um jardinzinho, de modo que fica em ângulo reto sobre a rue Neuve-Sainte-Geneviève, de onde aparece em todo o comprimento. Ao longo dessa fachada, entre a casa e o pequeno jardim, corre uma calha de pedra, de uma toesa de largura, diante da qual há uma aleia coberta de areia e orlada de gerânios, louros-rosa e romãzeiras, plantados em grandes vasos de louça azul e branca. Entra-se nessa alameda por uma portinha, encimada por uma tabuleta na qual se lê:

CASA VAUQUER

Pensão burguesa para os dois sexos e outros
.”.

Homens e mulheres burgueses está claro. Resta saber os “outros” moradores e frequentadores da pensão. Em primeiro plano está o pai Goriot do título, como é chamado por todos, comerciante de sucesso, abriu mão de sua fortuna para casar bem as duas amadas filhas, que o abandonarão nos seus momentos mais difíceis (Quem hoje não conhece uma história parecida?). Ainda no primeiro plano do enredo, encontramos Eugène de Rastignac, jovem estudante de Direito, de origem nobre porém decadente e, principalmente, pobre, no qual a família investiu tudo o que tinha na esperança de que ele viesse a alcançar sucesso financeiro; Rastignac ainda é ingênuo e puro, mas está a caminho de conseguir um bom passe para penetrar na alta sociedade de Paris, tornar-se-á amante de Delphine (casada com o Barão de Nucingen, banqueiro inescrupuloso), que é uma das filhas ingratas do pai Goriot; com o decorrer dos anos, o nome “Rastignac” tornou-se sinônimo de arrivista, na França, um homem capaz de tudo para atingir seus fins, um escalador social, um tipo de lobo em pele de cordeiro, e que, por ser tão comum nos dias de hoje, poderíamos publicar aqui uma lista de nomes bastante conhecidos. Não muito distante do primeiro plano, encontraremos Vautrin, um corruptor e contraventor nato, um homem misterioso, com muitos nomes, quase uma encarnação satânica, que pratica o bem e o mau com o mesmo prazer, tem envolvimento com a Polícia mas também com o mundo bandido dos criminosos e assassinos, e que hoje poderíamos, salvo a enorme inteligência dessa personagem, compará-lo com políticos locais ou milicianos que trafegam nas bordas do Poder.

Pronto! O lauto jantar já pode ser servido! E a partir daí poderemos experimentar um prazer de ler quase palatável, capaz de rivalizar com aquilo que a gastronomia francesa tem de melhor para nos oferecer. Contudo, embora essas personagens nos sejam muito familiares, não podemos dizer que a obra de Balzac ainda é amplamente atual e que não envelheceu. Sim, envelheceu, como a máquina a vapor de Watt também envelheceu, mas sua razão e significado não. Olhando para as personagens de seus melhores romances e novelas, percebemos nelas não só características que nos são familiares, como nelas também encontramos os antepassados e os mestres dos seres humanos com os quais compartilhamos os dias atuais, nas pequenas e nas grandes cidades, nas ruas, nas casas lotéricas, nas casas de penhores, nos botecos e restaurantes, nas festas e saraus, nos meios de comunicação, nas capas de revistas e jornais, na TV e nas redes sociais. Balzac afirmava categoricamente que suas personagens eram absolutamente reais e que suas histórias eram a pura verdade. E não estamos falando apenas de “O Pai Goriot”, mas também de “Eugenia Grandet”, de “O lírio do Vale”, de “Ursula Mirouët”, de “Ilusões Perdidas”, de “Esplendores e misérias das cortesãs”… Mas real, ou não, verdade, ou não, talvez não sejam de fato importantes. Importante mesmo é poder penetrar nos romances e novelas de Balzac, poder voltar no tempo e logo e então sentir este tempo ali capturado voltar a se mover, e se nos entregamos a esse mover-se do tempo, quase que sentimos os cheiros dos ambientes e aspiramos o pó que paira no ar: creio que é isso que, em Literatura, chamamos de Arte. E por ser Arte, talvez nela sempre estaremos salvos… do presente? e também daquilo que o futuro, em nossos tempos sombrios, na política e na saúde pública, nos proporcionará ou não?

León Goslan, escritor e dramaturgo, amigo de Balzac, conta que, em uma conversa com Vidocq sobre o que é ou não a realidade (Vidocq é o homem verdadeiro que foi o inspirador de Vautrin), Balzac teria dito o seguinte:

“— Sim, sr. Vidocq. Olhe: a verdadeira realidade é este belo pêssego de Montreuil. Aquele que o senhor chamaria real brota naturalmente na floresta, num pé bravo. Pois bem, esse não vale nada, é pequeno, ácido, amargo, impossível de se comer. Eis porém o pêssego real, o que estou segurando, que foi cultivado durante cem anos, que se obteve por certa poda à esquerda ou à direita, por certa transplantação num terreno seco ou leve, por certo enxerto; o pêssego, afinal, que se come, que perfuma a boca e o coração. Este pêssego delicioso fomos nós que o fizemos: é o único real. O meu processo é o mesmo. Obtenho a realidade nos meus romances como Montreuil obtém a realidade nos seus pêssegos. Sou jardineiro em livros.”.

Se verdadeira, e gosto de pensar que sim, mas pouco importa, pois que é muito provável, podemos ver nessa conversa um pouco da Arte salvadora praticada por Balzac. E talvez só nela encontremos por hora a resposta para nossas dúvidas.

Para o leitor interessado, a internet disponibiliza hoje muitos livros gratuitos de Honoré de Balzac, a maioria em francês, inglês e espanhol. Mas em uma busca bem refinada, posso afirmar que o leitor poderá até mesmo encontrar vários livros da “Comédia Humana” em português, e na edição da editora Globo, de 1954, organizada pelo incansável e insubstituível Paulo Rónai (a última edição é de 1992), que contou com a colaboração de cerca de vinte excelentes tradutores e que nos fornece uma verdadeira festa de notas explicativas que, ao invés de tornar a leitura cansativa, torna-a mais apreciável. Essa edição é considerada pelos especialistas franceses a melhor já publicada fora da França, superando em qualidade todas as demais edições estrangeiras. Balzac levou vinte anos para escrever a sua “Comédia Humana”, e Paulo Rónai trabalhou por quinze anos em sua organização editorial no Brasil, o que por si só também já é algo assombroso. Aliás, Balzac não merece menor atenção! E Paulo Rónai também!

João José de Melo Franco é poeta, contista e editor

IZAÍAS ALMADA: MINHAS AVENTURAS NO CINEMA (II)

Dezembro 29, 2020

Foi o início de uma nova atividade para mim, a de roteirista, que continua até os dias de hoje.Por Izaias Almada -29/12/2020.

Minhas aventuras no cinema (II)

por Izaías Almada

Embora eu considere a minha estreia em cinema ao participar como assistente de direção de Moisés Kendler no seu episódio de “Os Marginais”, não posso me esquecer da pontinha feita num filme que se tornou famoso e grande sucesso do Cinema Novo, realizado em 1966 pelo diretor Domingos de Oliveira: “Todas as Mulheres do Mundo”.

Paulo José, o protagonista, com quem trabalhei no Teatro de Arena, indicou-me para fazer uma pequena cena que se passava dentro de um elevador e que eu, jovem e inexperiente, contracenava com Leyla Diniz, a estrela do filme.

As aventuras de um jovem jornalista (Paulo José) com várias mulheres no Rio de Janeiro e que, segundo o próprio Domingos de Oliveira era autobiográfica e lembrava o seu relacionamento com Leyla Diniz.

O filme, uma comédia, é mencionado pela crítica como um dos 100 melhores filmes brasileiros até os dias de hoje e, tenho quase a certeza que isso se deve à minha pequena cena com a protagonista (rsrsrs).

Brincadeiras à parte foi uma sensação diferente como intérprete, pois eu jamais tinha enfrentado uma câmera de cinema, o que viria a acontecer alguns anos depois, mas não em frente a ela, mas do lado de trás, quando tive a oportunidade de realizar ao redor de pelo menos 300 comerciais para cinema e televisão entre os anos de 1977 e 1993, carreira iniciada na agência McCann-Erickson e continuada na produtora Movi@Art, onde fui sócio de Paulo Dantas e Luis Eduardo Campelo Filho  filmando em vários estados brasileiros e em países como Uruguai, Equador, Portugal e Itália.Leia também:  Minhas aventuras no cinema (I), por Izaías Almada

Essa foi uma fase maravilhosa de aprendizado das técnicas cinematográficas até porque trabalhei ao lado e junto com alguns dos melhores diretores de fotografia no Brasil na época como Lauro Escorel, Cesar Charlone, Kimiito Kato, Walter Soares, Joel Lopes, Dib Lutfi, Marcelo Primavera, Lazzarini, João Abel Aboin (Portugal) que, em muitos aspectos foram os responsáveis pela qualidade dos filmes e sua aprovação junto aos clientes.

Já como freelancer e vivendo em Portugal, conheci durante as filmagens da peça teatral “Cemitério de Automóveis”, levada àquele país por Ruth Escobar, o realizador Luís Filipe Rocha que me convidou para escrever com ele o roteiro de “Amor e Dedinhos de Pé”, título curioso para o romance homônimo do escritor de Macau Henrique de Senna Fernandes.

O elenco contava com a participação do ator português Joaquim de Almeida, da espanhola Ana Torrent, do francês Jean-Pierre Cassel e do italiano Omero Antonucci, numa coprodução portuguesa, espanhola e francesa. Também participou Pilar Bardem, mãe do ator Javier Bardem.

Foi o início de uma nova atividade para mim, a de roteirista, que continua até os dias de hoje.

Em seguida, ainda com Luís Filipe Rocha, fizemos a adaptação de outro romance, agora do escritor e ensaísta português Jorge de Senna, “Sinais de Fogo”, que veio para o Brasil com a família para escapar do fascismo salazarista que infelicitou Portugal durante anos.

“Sinais de Fogo” procura dar uma visão da influência do fascismo espanhol dos anos 30 no vizinho Portugal.

(CONTINUA)

PEDRO LUÍS REALIZA OFICINA SOBRE COMPOSIÇÃO MUSICAL

Dezembro 28, 2020

Início / Cultura

As inscrições estão abertas no Instituto Estação das Letras. Os participantes poderão enviar uma canção e ganharão, como bônus, sugestões de aperfeiçoamentoPor Julinho Bittencourt 28 dez 2020.

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Foto: Divulgação/Jorge Bispo

O cantor, compositor e instrumentista Pedro Luís, um dos fundadores do Monobloco, está na programação de férias do Instituto Estação das Letras com a oficina “A inspiração vem de onde? Composição musical e autoral”. A atividade é direcionada para compositoras, compositores e letristas em qualquer nível de desenvolvimento.

A oficina será virtual e vai abordar a composição musical, criação autoral, parceria autoral, composição sob encomenda, inspiração e transpiração. E passará pelo Carnaval atípico de 2021. Os encontros acontecerão nos dias 11, 18, 25/01 e 01/02, segundas-feiras, das 19h às 20h30.

 O objetivo da Oficina é trabalhar com as experiências de Pedro Luis como compositor, que começam de maneira solitária e empírica e com tempo ganham temperos técnicos e se desdobram em diversos tipos de parceria.

“Minha expectativa é de que, através das reflexões que a própria demanda do curso imporá, eu possa despertar na audiência o desejo de estabelecer os seus próprios métodos e processos, tanto de inspiração quanto de aperfeiçoamento e conclusão na criação de canções”, explica Pedro.

A programação traz ainda uma surpresa. Fora do tempo das aulas, o compositor vai estar disponível para um encontro virtual privado de aproximadamente dez minutos com cada aluno. A ideia é sugerir caminhos para o aperfeiçoamento da canção.

Veja mais informações no site do Instituto Estação das Letras

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Julinho Bittencourt

Jornalista, editor de Cultura da Fórum, cantor, compositor e violeiro com vários discos gravados, torcedor do Peixe, autor de peças e trilhas de teatro, ateu e devoto de São Gonçalo – o santo violeiro.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: SAMBAS E AFINS – PARA OUVIR NA QUARENTENA (III)

Dezembro 27, 2020

No tempo de Noel, os malandros eram figuras habituais, entre os quais ele contava amigos; e muitos deles, como ele mesmo, eram sambistas.Por Walnice Nogueira Galvão -27/12/2020.

Jessé Ribeiro

SAMBAS E AFINS – para ouvir na quarentena (III)

por Walnice Nogueira Galvão 

A famosa polêmica: malandro x trabalhador

Lenço no pescoço (Wilson Batista)
Rapaz folgado (Noel Rosa)
Mocinho da Vila (Wilson Batista)
Feitiço da Vila (Noel Rosa)
Conversa fiada (Wilson Batista)
Palpite infeliz (Noel Rosa)
Terra de cego (Wilson Batista)
Frankenstein da Vila (Wilson Batista)PUBLICIDADE  

No tempo de Noel, os malandros eram figuras habituais, entre os quais ele contava amigos; e muitos deles, como ele mesmo, eram sambistas.

Como era o caso de Wilson Batista, que compôs Lenço no pescoço em 1933, apresentando-se assim: “Meu chapéu de lado/ tamanco arrastando/ lenço no pescoço/ navalha no bolso/ eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ em ser tão vadio”.

Esse foi o estopim de uma célebre polêmica, em que ele e Noel Rosa se engalfinharam, dando origem a excelentes sambas, com réplicas e tréplicas.

Em Rapaz folgado, logo em seguida, Noel, boêmio notívago que freqüentava as mesmas rodas que Wilson Batista, avança uma advertência, pondo reparo até nas impropriedades de linguagem: “Deixa de arrastar o teu tamanco/ pois tamanco nunca foi sandália…” (Com tamanco se pisa duro fazendo barulho no chão – experimentem arrastar um tamanco!) E prossegue, admoestando: “Malandro é palavra derrotista/ que só serve pra tirar/ todo o valor do sambista”. Fica clara a tentativa de tornar respeitável o sambista, e com ele o samba, já que até então seu lugar era a marginalidade social.

Wilson Batista abespinhou-se e retrucou com Mocinho da Vila, epíteto pejorativo com que mimoseia o adversário, que era de Vila Isabel, reduto da pequena burguesia branca: ou seja, não pertencia nem ao morro nem aos rincões negros do Rio, portanto não tinha direito de fazer samba. Por sua vez, admoesta-o: “… Se não quiser perder o nome/ cuide de seu microfone/ e deixe quem é malandro em paz”, pois não deve “falar de malandro quem é otário”.

Noel devolveu-lhe “Feitiço da Vila” (1934), um de seus maiores sambas, em que defende seu bairro e seu talento: “Em Vila Isabel/ quem é bacharel/ não tem medo de bamba…”. Continuando e concluindo: “São Paulo dá café/Minas dá leite/Vila Isabel dá samba”. Com estes versos aproveita para inserir a questão na famosa e histórica divisão de poder na República Velha, em que o chamado Eixo Café-com-Leite comandava a política e elegia presidentes.

Depois, é a vez de Wilson Batista, com “Conversa fiada”: “É conversa fiada dizer /que o samba na Vila tem feitiço”. Este não é dos mais inspirados: limita-se a contradizer afirmação por afirmação de “Feitiço da Vila”. Ainda manda os moradores da Vila darem duas voltas no cadeado, insinuando que não é uma vizinhança segura. E termina pelo peremptório “Assassinaram o samba”.

É até covardia, mas Noel contrapõe “Palpite infeliz” (1935), em que faz o elogio dos bairros negros e favelas do Rio, mas igualmente de Vila Isabel: “Quem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também”.

Wilson apela ainda com mais dois sambas, “Terra de cego” e “Frankenstein da Vila”. Neste último, realmente perdeu as estribeiras e  visou à jugular, ao zombar do aleijão facial de Noel, que o desfigurava; mas o ofendido não mais respondeu. Dizem que depois dessa troca de amabilidades o malandro e o boêmio fizeram as pazes, tornando-se amigos.

Com os termos desta polêmica, os dois compositores estavam expressando o que se passava no samba ao redor deles. É justamente então que o malandro, protagonista principal do samba, começa a ser desestabilizado, surgindo a figura do trabalhador, esteio da política de Getúlio Vargas. Noel – branco e não favelado – é o pivô da transferência de classe do samba. Do mesmo modo, o samba em geral vai adquirindo respeitabilidade e ainda nessa década descerá do morro, quando as escolas de samba ganharem o direito de desfilar no carnaval no centro da cidade, passo decisivo em sua legitimação.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

CARTA MAIOR CINEMA: PAI CORAGEM

Dezembro 26, 2020

Pai Coragem

No documentário ‘Sem Descanso’, um bárbaro assassinato serve de mote para discutir os fatores éticos e étnicos envolvidos na violência policial

Por Carlos Alberto Mattos 12/2020.

 

 
A partir do caso de um rapaz morto pela polícia na periferia de Salvador em 2014, o diretor Bernard Attal traça um dossiê de vários aspectos envolvidos na questão da violência policial. Não há grandes novidades em relação a outros filmes recentes sobre o tema, especialmente Não Matem Nossos Filhos!, de Susanna Lira, À Queima Roupa, de Theresa Jessouroun, e Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho. Ainda assim, o filme se impõe pela particularidade de enfocar um Pai Coragem, quando, no Brasil, esse papel tem sido mais comum entre as mães.

Jurandy Santana criou seu filho Geovane sozinho. Um dia, o viu sair de moto e não voltar mais. A busca por delegacias e hospitais sendo em vão, ele enveredou por uma investigação pessoal e contou com o apoio investigativo do jornal Correio. Não temeu a probabilidade de se tornar figura incômoda para uma polícia violenta como a baiana. Por sua perseverança, acabou-se descobrindo que Geovane, aos 22 anos, fora morto e esquartejado nas dependências de uma instalação policial, tendo os pedaços de seu corpo deixados em duas localidades remotas diferentes.

Sem Descanso descreve um triângulo, saindo de Salvador rumo ao estado americano de Missouri, onde o jovem negro Michael Brown foi assassinado por um policial na mesma semana que Geovane. Por fim, retorna ao Brasil e abre o compasso para outros casos semelhantes.

Nos dois países, o cineasta francês radicado no Brasil (e casado com uma baiana) recolhe falas de ativistas e estudiosos sobre as circunstâncias éticas e étnicas envolvidas. O fato de Geovane ter sido um assaltante contumaz não justifica seu “desaparecimento”, nem a extrema brutalidade cometida contra ele. A propósito, causa horror ver o discurso monstruoso do deputado Túlio Isac, líder do PSDB, defendendo a morte de bandidos e chamando de “canalhas” os defensores de direitos humanos.

A discussão se estende para os fatores que levam a sociedade a ser leniente com o assassinato de negros e o Brasil a não ter uma polícia preparada para ser guardiã em vez de guerreira.

O filme se beneficia de um formato simples e objetivo, contando com a colaboração de Jurandy na autoencenação de seu périplo obstinado. Um piano dolente na primeira metade procura sublinhar sem necessidade o sentimento de luto da família, entrevistada já em 2015. A emoção contida do pai, dos avós e da ex-namorada do rapaz já seriam o bastante para nos conectar com mais essa tragédia brasileira.

Sem Descanso está nas plataformas VOD do Canal Brasil, Now, Vivo e Oi.


https://youtu.be/wRN22j68EGA

CINEMA EM CASA: A MAIOR DIVERSÃO DE FIM DE ANO

Dezembro 25, 2020

Silvio Tendler e o britânico Ken Loach conversando sobre documentários e cinema realista no Festival de Brasília virtual e as sugestões de reprises que fecham 2020 no ‘streaming’

Por Léa Maria Aarão Reis 12/2020.

(Arte/Carta Maior)

Créditos da foto: (Arte/Carta Maior)

 
Cinema é a maior diversão foi o mantra cunhado no passado por um empresário carioca, exibidor de filmes e dono de uma grande cadeia de cinemas no Rio de Janeiro.

Neste fim de ano de um novo e temível mundo instaurado pela covi-19 pode-se acrescentar que cinema, se não for a maior é uma das principais diversões dentro de casa. A magia de assistir a um filme na telona de um cinema cedeu lugar – feliz e infelizmente – ao conforto de escolher o cartaz da preferência de cada um, no horário desejado e refestelado(a) numa poltrona.

Carta Maior então elaborou uma pequena relação de filmes a (re)ver nas plataformas digitais durante o recesso de fim de ano, que foram comentados na página, em 2020.
Não se trata de uma lista de ‘melhores filmes’ de um ano atípico e duro, quase inviável para o cinema brasileiro – criação, produção, exibição, conservação e arquivamento e financiamento de filmes – num ambiente hostil a qualquer manifestação de cultura que soma à pandemia e às restrições de mobilidade da população a censura, o autoritarismo e o violento aparelhamento ideológico e religioso sem precedente na história do país e próprios de um estado de exceção – até pior, às vezes, porque mais capcioso, hipócrita e sinuoso que as ditaduras escancaradas.

Não fosse a dedicação, a criatividade e a resiliência dos profissionais do áudio-visual, o ano seria ainda mais sombrio para o cinema nacional.

Mas num esforço notável, o já tradicional Festival de Cinema de Brasília, criado há 55 anos, desta vez em versão virtual, foi produzido com a curadoria do documentarista de maior bilheteria do cinema brasileiro, Silvio Tendler que convidou o cineasta britânico Ken Loach para participar de um debate imperdível.

Enquanto isso, Tendler prepara a sua trilogia Um quebra-cabeça chamado Brasil que começará a ser exibida em 2021. A Bolsa ou a vida é o primeiro título. Trata do falso e canalha dilema vendido à população brasileira pelo (des)governo atual: reza que a saúde é menos importante que a economia. O segundo da trilogia é uma vigorosa defesa do SUS: A saúde tem cura. E o fechopós-pandemia, O futuro é nosso.

Já Loach, o mais importante cineasta vivo e em atividade para milhões de cinéfilos e espectadores de todas as partes, nessa conversa com Tendler colocou algumas observações fundamentais. “Ouvir Ken Loach é um alento para o momento que vivemos no Brasil e no planeta, e é bom saber que ainda existe vida inteligente no mundo”, disse o diretor brasileiro. “Eu, Daniel Blake, é um dos melhores filmes a que já assistí na minha vida. Loach é gênio”.

A obra dos docs clássicos de Tendler está aberta no Youtube para quem desejar (re)visitá-la: Os Anos JK, Jango, Dedo na ferida, Militares da democracia, O veneno está na mesa, Marighella, Encontro com Milton Santos, entre outros.

Sobre Loach, aqui, abaixo, algumas das suas intervenções durante o Festival de Brasília:

“Não queremos apenas mostrar uma pessoa desempregada sofrendo, e sim questionar o porquê desta pessoa estar desempregada”.

”Apesar do trabalho realista e do documentário, que de alguma forma mostram a realidade”, diz ele, há uma diferença entre os dois: “Nós montamos três conjuntos de câmeras e rodamos a cena quatro ou cinco vezes em cada uma delas até alcançarmos o resultado desejado. Em documentário não se faz isso. As técnicas são muito diferentes, mas o senso de autenticidade e a intenção são parecidas”, explica o vencedor da Palma de Ouro de Cannes duas vezes.

“Nós vemos uma extrema direita que se diz a voz do povo, mas na verdade ela fala pela classe dominante”. Loach sugere Karl Marx como uma boa leitura para os tempos atuais. “Não dá para entender o mundo e a história sem ler um pouco de Marx. O sistema tem que ser do público e para o público e deve seguir os interesses do público e não uma fonte de lucro para grandes empresas”. Sobre o SUS: ”O Sistema Unificado de Saúde (SUS) brasileiro é baseado no National Health Service (NHS) britânico, modelo de sucesso de saúde pública para o mundo inteiro”.

Loach propõe o socialismo como uma única possibilidade: “Nunca passamos por uma época como a que estamos vivendo, em que o planeta corre o risco de se tornar inabitável. A única maneira de resolver este problema é por meio de um trabalho coletivo no qual as pessoas utilizem os recursos do mundo de forma sustentável”.

Ele se diz ocupado em ”sobrevier a esta pandemia”, e não sabe bem o que planejar para o futuro. Mas ” uma possibilidade é fazer um filme apontando a questão social deste momento de crise sanitária”.

Loach, de 84 anos, comenta que se sente como ”um carro estacionado numa garagem há um ano; e ainda não sei se vou ligar o motor”, ele brinca. Mas promete e garante que não pretende parar de fazer cinema.

Para entreter-nos e nos acompanhar nos próximos dias, que, esperamos, expirem o mais cedo possível, aqui está o cinema como a maior diversão. Os filmes são estréias recentes ou reprises, muitos roteiros políticos, documentários cada vez mais frequentes, uma animação e música.

Abaixo, as sugestões cinematográficas no streaming.

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Bacurau

Melhor filme de 2020 na categoria estrangeira pela New York Film Critics Awards, considerada a prévia do Oscar. | bit.ly/3h4DNhj | bit.ly/37xfk13
No Google Play, Youtube, Now, Telecine

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Cena de 'O dilema das redes' (Divulgação)

O dilema das redes

bit.ly/3pafH7P | bit.ly/37BWtC2

Na Netflix

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Você não estava aqui


bit.ly/3nCcDB0Em Youtube, Google Play,Telecine Play, Now

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(Divulgação)

AmarElo

bit.ly/3p1U3mh

Na Netflix

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(Divulgação)

Os sete de Chicago
bit.ly/34MiJaL

Na Netflix

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Encantado – O Brasil em desencanto

bit.ly/2WyykWz

No Amazon Prime Video

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(Divulgação)

Os agentes do caos

bit.ly/36I5IQQ

HBO Go

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(Divulgação)

Aos Olhos de Ernesto

bit.ly/3pe38bp

No Canal Brasil dia 23, às 21h30 e reapresentações no domingo, dia 27/12, às 10h50; segunda, dia 28/12, às 18h; e terça, dia 29/12, às 15h25; Também no Now

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Miles Davis, o inventor do cool
bit.ly/2Km8LWq

No Youtube

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Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil

bit.ly/3h63DBI

Na Globo Play

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(Reprodução)

O Conto das Três Irmãs
bit.ly/2WwdK9l

No NOW

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(Reprodução)

Miss Simone


bit.ly/34vJXCb 

Na Netflix

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Os Olhos de Cabul

bit.ly/2WypwA4

No Youtube, Google Play e NOW

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A Partida

bit.ly/2LXr0SF

No NOW, Vivo e Looke

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Cena de 'Piazzolla - os anos do tubarão' (Reprodução)

Piazzolla, os anos do tubarão
bit.ly/3p2a2ka

No HBO dentro do NOW

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(Divulgação)

Mank

bit.ly/3att3rN

Na Netflix

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Observações

1. Alguns filmes são retirados de plataformas sem aviso prévio. Por este motivo sempre que possível informamos opções.

2. Para quem quer ver ou rever mais filmes brasileiros a sugestão é vasculhar nas nestas plataformas: Spcine Play, Canal Brasil Play, Vídeo nas Aldeias, no Afroflix, Embaúba, Petra Belas Artes à la Carte, Cinemateca Brasileira, Olhar de Cinema, Google Play, Vivo, Looke, Now, Globo Play, Apple, Netflix, Amazon e HBO.

PORTA DOS FUNDOS COM DUVIVIER: JESUS HÉTERO

Dezembro 24, 2020

BLACK-LIST 2020: DEZ PERSONALIDADES DAS REDES SOCIAIS QUE VOCÊ NÃO PODE VIRAR O ANO SEM CONHECER

Dezembro 24, 2020

 Elas por Elas

De Silvio Almeida no Youtube a Kaique Brito no TikTok. A diversidade de conteúdo antirracista ultrapassou o debate político no sentido estrito e ganhou corpo na literatura, na música, nas artes e até nas finanças 12/2020.

Ana Clara, Agência Todas

O ano de 2020 foi marcado pelos levantes antirracistas que começaram a partir de George Floyd, nos Estados Unidos, e se espalharam pelo mundo, inclusive no Brasil. Aqui ainda enfrentamos a violenta morte de João Alberto, que foi espancado e morto por seguranças no supermercado Carrefour — gerando uma onda de protestos em várias cidades.

Mas não parou por aí. O debate racial permeou as redes sociais não apenas em conteúdos diretamente relacionados à política no sentido mais estrito, mas também alçou voo em diversos campos como a literatura, humor, música, tik-toks — tratando do combate ao racismo direta ou indiretamente. Uma diversidade de conteúdos invadiu a internet, explorando e ampliando as abordagens para além da “caixinha militantês” onde são geralmente colocados.

Preparamos uma Black-List 2020 de dez top influenciadores e influenciadoras para aproveitar o recesso e curtir bons conteúdos.

Kaique Brito @kaiquebritor

Soteropolitano de 16 anos domina o Tik-Tok e estourou na linguagem jovem e despojada da ferramenta. Ele tem 119 mil seguidores no Instagram, 163 no TikTok e mais de 2 milhões e meio de curtidas. Com criações de vídeo em cima das falas inóspitas do presidente, o influencer produz conteúdos geniais com humor fino e sarcástico, além de dialogar com grandes nomes da cultura pop jovem como Maísa, Whindersson Nunes, entre outros.

Nath Finanças @nathfinancas

Rainha da educação financeira para baixa renda, ela se destacou por fazer uma abordagem mais realista do mundo financeiro para jovens trabalhadores e trabalhadoras da periferia. Com 291 mil seguidores no Instagram e 430 mil no Twitter, ela figurou na lista de “detratores do governo” por trazer à tona a proposta inicial do governo Bolsonaro de apenas 200 reais de auxílio emergencial. Longe das ilusões do empreendedorismo que exalta a retirada de direitos, Nath busca inserir e dialogar sobre emprego, renda, finanças e direitos trabalhistas na internet de um jeito simples e fácil de entender. Nesse fim de ano, cada funcionário dela pôde escolher um presente de até 500 reais a ser pago pela empresa, o recesso vai até 11 de janeiro e créditos e méritos são dados a todes.

Silvio Almeida @silvioalmeida

O professor Silvio Almeida é advogado, filósofo e professor universitário. Autor dos livros “ Racismo Estrutural ” (Polén, 2019) ,”Sartre: Direito e Política” (Boitempo, 2016) e “O Direito no Jovem Lukács: A Filosofia do Direito em História e Consciência” (Alfa-Ômega, 2006).

Nome de peso no ramo acadêmico, mas o destaque dele para 2020 é a criação de um canal no Youtube com o programa “Entrelinhas”, que fala de assuntos densos por meio do afeto. Não faz nem dois meses que o programa está no ar e já estreou em um incrível bate-papo com Mano Brown. Com muita desenvoltura e leveza, o professor conduz o programa que já contou também com o músico Emicida. O professor ainda não deixa de fora temas importantes para o país como a China, o Coronavírus e reflexões filosóficas sobre identidade e universalidade, a jornada do herói e muito mais.

Jacy Lima @thejacy

Ela é advogada, mas o que você vai encontrar no perfil dela é um papo sincerão sobre sexualidade como nunca viu. Com um jeito debochado e muito próprio de tratar sobre o tema, ela fala sobre relacionamento abusivo, práticas sexuais e com o quadro “Que babado é esse?”, ela conta histórias hilárias de seguidoras, sempre abordando o direito ao prazer mútuo e consensual em primeiro lugar.  Esse ano, ela foi destaque no jornal O Globo e já soma mais de 140 mil seguidores no Instagram. É uma ótima pedida para se divertir e se informar.

Júlia Rocha @cantorajuliarocha

Cantora, compositora, médica do SUS, mãe, doula, aprendiz de padeira,militante antirracista ,vegana, ecossocialista e colunista do UOL, é assim que se apresenta a também influencer Júlia Rocha. Conhecida por compartilhar seus causos e aventuras no atendimento da saúde pública pelo twitter, esse ano, ela lançou o livro “Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS”. Com 65 mil seguidores no Instagram e 42 mil no twitter, ela aborda um espectro amplo de assunto que vão desde a defesa do SUS, direito das mulheres, pautas antirracistas e de movimentos culturais.

Chavoso da USP

Thiago Torres tem 20 anos, é estudante de Ciências Sociais na USP, nasceu e cresceu na Zona Norte de São Paulo, youtuber e palestrante. O título de seu canal remete ao principal objetivo de sua empreitada nas redes: dialogar com a periferia sobre cultura, política, economia, sociologia, segurança e sociedade no geral — buscando tirar a reflexão acadêmica dos estofados da academia e trazer o protagonismo dos trabalhadores e trabalhadoras da periferia na construção social brasileira. Dentre os temas abordados em seus vídeos, estão “Pobre de direita”, “Jornalismo Policial: por que você deveria parar de assistir”,  e “Esquerda, precisamos falar sobre religião”.

Thamirys Borsan @thamirysborsan

Com 116 mil seguidores no Instagram, Thamirys é humorista e aposta na produção de vídeos para internet que tocam em temas essencialmente antirracistas. Ela utiliza de linguagem debochada e vídeos mais simples, mas que refletem a essência do debate racial, principalmente nas periferias das grandes cidades. Esse ano, ela conseguiu alçar voo e participou do TEDx São Paulo para contar sua história.

Djamila Ribeiro @djamilaribeiro1

Com mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, a filósofa não é novata nas redes sociais, mas mais uma vez cumpriu seu papel de demarcar o debate racial dentro e fora da internet. Voz ativa ao longo do ano no combate ao racismo, em novembro, ela foi a vencedora do Prêmio Jabuti, na categoria “Ciências Humanas”, com seu livro Pequeno Manual Antirracista, da editora Companhia das Letras.

As Baías (As Bahias e Cozinha Mineira) > @asbaias

Elas foram as primeiras mulheres trans a serem indicadas para o Grammy Latino e de quebra saíram na capa da Vogue virtual esse ano. A banda disputou na categoria melhor álbum de pop contemporâneo em língua portuguesa com a produção “Enquanto Estamos Distantes”.O trio musical brasileiro possui fortes influências de Gal Costa e do Clube da Esquina, e tem como mote na música identificar as formas de expressão das mulheres. É uma ótima pedida para ouvir enquanto a festa em família (sem aglomeração, por favor) descamba para as piadas do pavê.

Galo e o Breque dos Apps @galodelutaoficial

Paulo Galo foi a liderança do movimento que realizou a greve dos entregadores no meio do ano, que ficou conhecida como “Breque dos Apps”. Ele também administra a página @entregadoresantifascistas que seguem em luta pela pauta de direitos trabalhistas e  condições dignas para trabalhadores e trabalhadoras de aplicativo. Se você ainda não segue, perde a chance de se vincular a um dos grandes acontecimentos da mobilização de classe que aconteceu no país em 2020.COMBATE AO RACISMOELAS POR ELASINTERNETREDES SOCIAISSECRETARIA NACIONAL DE MULHERES DO PT