Archive for Julho, 2018

“DESIGUALDADE TEM RELAÇÃO COM PASSADO ESCRAVOCRATA”, DIZ VENCEDOR DO EISNER

Julho 31, 2018
https://soundcloud.com/radioagenciabdf/mosaico-cultural-desigualdade-tem-relacao-com-passado-escravocrata-diz-vencedor-do-eisner

RESISTÊNCIA

Quadrinista brasileiro ganha prêmio internacional com obra “Cumbe”, sobre a resistência negra

Luciana Console

Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Ouça a matéria:

Capa do quadrinho "Cumbe" - Créditos: Marcelo D`Salete
Capa do quadrinho “Cumbe” / Marcelo D`Salete

Paulistano da Zona Leste, Marcelo D`Salete é ilustrador, autor de histórias em quadrinhos e professor. Graduado em artes plásticas e mestre em história da arte, Marcelo é também, desde o último dia 20, vencedor do Eisner Awards 2018, prêmio estadunidense considerado o “Oscar dos quadrinhos”. 

O prêmio é pela penúltima obra do autor, “Cumbe”, que conta histórias protagonizadas por negros escravizados. D`Salete conta que o interesse por discutir questões sociais começou ainda na infância: 

“Minha trajetória tem muito a ver com, de certo modo, a década de 80, com o surgimento do rap e do hip-hop em São Paulo. Embora fosse muito novo, acompanhava um pouco e percebia com muita curiosidade o interesse e a potência do rap em discutir questões sociais e raciais também. Tudo isso acho que acabou formando meu interesse para trazer essas discussões para o universo dos quadrinhos”. 

Foi também na juventude que Marcelo começou a se interessar por quadrinhos e a paixão acabou direcionando sua formação. As temáticas sociais sempre estiveram presentes em suas obras, mas foi depois de um curso sobre História do Brasil que começaram a surgir as ideias de “Cumbe”. Segundo ele, o Brasil possui uma extensa literatura sobre o tema da escravidão, mas com um porém: 

“Muitas vezes são textos que os meus colegas de infância e adolescência poucos deles conhecem, então eu via que era um tipo de literatura que muitas vezes está circunscrita em certo nicho acadêmico e intelectual, mas que não chega à outras pessoas e a outras áreas”, diz. 

Visão crítica

O desejo de trazer as histórias sobre a diáspora negra do período colonial para uma linguagem mais contemporânea, e levá-las a outros públicos, impulsionou a criação dos quadrinhos recentes do autor. 

graphic novel “Cumbe” foi publicada no Brasil em 2014, pela editora Veneta, e com versão norte americana pela editora Fantagraphics, sob o nome Run for it: Stories of slaves who fought for their freedom. “Cumbe” ganha na categoria “melhor edição americana de material estrangeiro”. Seu mais recente trabalho é “Angola Janga”, sobre o quilombo dos Palmares.

Histórias de resistência também estão presentes no selo independente Zapata Edições, do roteirista Daniel Esteves. Formado em História, Daniel atua na área dos quadrinhos há 20 anos e procurou fazer autopublicações por conta da liberdade de criação. Apesar de não tão intensas no início, as visões críticas sempre tiveram lugar em suas publicações. 

“O selo tenta refletir esse tipo de coisa, lógico que em alguns trabalhos isso vai ficar mais gritante e em outros menos, mas está ali presente. Varia um pouco a intensidade disso, mas questões politicas estão ai sempre presentes”. 

O roteirista conta que o tema ficou mais evidente no selo a partir de 2013, com o primeiro volume da obra “São Paulo dos Mortos”. O caso Pinheirinho, desapropriação de um terreno em São José dos Campos, onde milhares de famílias foram retiradas do local com muita violência, foi o motivador da existência do livro. 

Outro título de destaque do selo é “Por Mais um Dia com Zapata”, obra que mescla ficção com realismo mágico, tendo a Revolução Mexicana e a Guerra de Canudos como pano de fundo. 

Arte e literatura

Em relação ao prêmio do colega, Daniel afirma que tem um grande significado para os rumos dos quadrinhos brasileiros.

“Não é de hoje que os brasileiros trabalham com o mercado norte americano, porém é muito recente o fenômeno dos brasileiros conseguirem levar as suas histórias para o mercado norte-americano”, avalia. 

Segundo D`Salete, o cenário de produção no Brasil está em um bom momento, mas ainda falta politização. 

“A nossa história, na história do Brasil, é uma história que acontece dentro do sistema da escravidão. Até hoje não aboliu [a escravidão] de fato, totalmente, essas diferenças criadas, elaboradas e sustentadas durante muito tempo na época da abolição. É extremamente importante a gente conectar que esse passado, que está diretamente ligado à matança desenfreada de jovens negros na periferia e também à ausência, muitas vezes, de pessoas negras na politica ou acessando certos cargos em empresas ou em profissões”. 

O vencedor do prêmio Eisner ainda ressalta que para romper com este ciclo é importante ações intersetoriais, mas principalmente na arte e na literatura. 

As obras “Cumbe”, de Marcelo D`Salete, e “Por Mais um Dia com Zapata”, de Daniel Esteves, foram realizadas por meio de edital do Programa de Ação Cultural (Proac), do Estado de São Paulo. 

Edição: Juca Guimarães

PORTAL FÓRUM: A CRÔNICA DA INTERVENÇÃO NA VOZ DOS RAPPERS

Julho 30, 2018

A poucos dias da decretação da intervenção militar no Rio de Janeiro, o cantor e compositor Gabriel, o Pensador fez uma homenagem comovente às crianças vítimas da violência no programa Fantástico, da Rede Globo. Acompanhado apenas pelo toque do surdo de João da Serrinha – o toque do surdo solitário é a homenagem suprema do sambista ao luto –, Gabriel relembra as várias crianças mortas por balas perdidas ou, simplesmente, em decorrência da violência pura e simples.

Apesar de ir, como sempre, no limite do que permite a emissora, o compositor consegue, aqui e acolá, além da comoção geral da consequência, esbarrar na causa em temas como a corrupção e os políticos.

Gabriel é um mestre do ofício. Suas rimas são certeiras, corretas e, muitas vezes, comoventes. De origem de classe média alta, consegue tocar de forma direta em temas que são próprios dos excluídos e é, vez ou outra, criticado por isso. A sua voz é sempre bem-vinda. Seu vídeo pode ser visto aqui.

No olho do furacão

Mas, em uma busca um pouco mais apurada, aparecem os artistas que vivem no meio do pesadelo. Os rappers das favelas e guetos, artistas com reconhecimento quase zero da grande imprensa, mas que se espalham em canções, rimas, manifestos, alguns com audiência surpreendente nas redes, apesar de passar batido nos grandes meios.

Ao cantar de maneira quase instantânea, do miolo da parte de dentro do furacão, funcionam como repórteres do dia a dia, da convivência diária com a criminalidade e a violência militar/policial, duas faces de uma mesma moeda repleta de sofrimento, medo e falta de perspectiva.

Intervencionistas

Muitos desses artistas que pululam nas redes sociais e Youtube tecem loas à intervenção e ainda acham pouco. Pedem mais sangue e extermínio, querem que o golpe militar de 64 se repita à enésima potência. A coisa se passa em uma quase intranet, onde pancadões e rappers se manifestam sem papas na língua nem medo. Da mesma maneira que tratam do sexo, gritam também pelo sangue de forma explícita.

Do outro lado da trincheira, em um formato tão ou mais desafeto aà organizações e militâncias quanto os ‘haters’, funcionam os que questionam as causas. Com discurso mais elaborado e comedido, alertam para o óbvio num teatro de horrores onde ninguém parece se entender mais.

Contra a Parede

Um dos exemplos mais pungentes é a do vídeo clipe do grupo Contra a Parede “Intervenção Militar Vs Morador”.

No vídeo, um militar e um morador, os dois negros, se cruzam em uma viela, numa abordagem. Sozinhos, os dois travam um diálogo em que a situação toda se desnuda, a partir das diferenças e, sobretudo, das semelhanças. A troca de acusações, do militar para o morador, termina com a explosão do morador: “Você e os bandidos, que eu tenho com isso?”, para encerrar, diante do soldado, de cabeça baixa: “Te usa sem medo um império governo que nem sabe quem é você! É só um boneco num jogo aberto na linha de frente esperando morrer!”.

O vídeo encerra com o morador seguindo o seu caminho diante do olhar perturbado e perplexo do soldado. A letra de Caico Zulu, rapper e escritor que faz o papel do morador, partiu de uma ideia do produtor do vídeo, Wanderson Chan, do grupo Contra a Parede. Chan contou com exclusividade à Fórum que o vídeo foi produzido a partir de um projeto com os moradores do município de Casimiro de Abreu, a 140 quilômetros do Rio de Janeiro.

“A gente tentou dizer no clipe que o problema não está no morador e nem na polícia. O problema é bem maior que isso. Essas duas partes sempre entram em confronto e nada se resolve. No vídeo, eles tiveram a oportunidade de dialogar, coisa que não acontece de fato. Se pudessem se ouvir, eles iam perceber que o problema não está ali, não está porque um é favelado nem porque o outro é policial. A nossa intenção não foi política, mas sim a de provocar essa reflexão”, disse.

A pureza em acreditar que o diálogo tem o poder de resolver problemas seculares pode parecer ingênua, mas foi ela quem permitiu que a questão tenha sido colocada para um grande número de pessoas desta maneira contundente e direta. Na vida real, nem o soldado abaixaria a cabeça e nem o morador passaria impune ao ‘desrespeito à autoridade’.

Mesmo assim, a vida real, ou o que mais se aproxima dela, é esta, contada pelos rappers e artistas das localidades mais atingidas.

CARTA CAPITAL ENTREVISTA LINIKER: “SOU DONA DO MEU CORPO E DAS COISAS QUE ESCOLHO PARA MIM”

Julho 29, 2018

ÓI EU AQUI, POR ALDIR BLANC

Julho 29, 2018
  
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Por Aldir Blanc

Já não escrevo coluna mensal mas continuo sendo Aldir Blanc. Agora mais do que nunca pelas circunstâncias da barbárie e esculhambação diárias a que somos submetidos.

Comecemos o bala com bala: Gostaria muito de saber o que os comentaristas de economia das redes de TV convencionais e por assinatura estão bebendo. Parei com o goró em 2010, mas quem sabe… Homens sérios e moças com sorrisos amarelos estão sempre enxergando “recuperações” e “crescimentos” inexistentes, a passo de formiguinha…

Bom, vamos então ao crescimento na real: Aumentou, depois de décadas, a mortalidade infantil! Parabéns, Temereca. Esse crescimento verdadeiro traz no bojo a volta pra valer de várias doenças: a febre amarela, a tuberculose, a sífilis, a AIDS, dengue, zika, milhões de crianças na mais completa miséria, trabalho escravo por todo lado, a educação dilacerada graças àquela besta quadrada que preferia frotas de cocô a Paulo Freire, o que as vacas de presépio da CIA pertencentes ao Moribundas Brasil Lodo também apoiaram com a empáfia dos estultos que levam grana de fora para plantar fake news no Facebosta.

Médicos amigos avisam que a extrema incompetência de Alckmin, cãoditato à presidência, com o apoio maciço da canalha, vai custar muitas vidas por não ter conseguido conter a febre amarela. A doença é sazonal e deve voltar com força em todo o país no próximo verão. Será que o centrão vai matar mosquito? Loda-se, Alckmin! Seus cúmplices roubaram durante décadas nos trens metropolitanos de São Paulo, nos rodoanéis (melhor botar no plural porque ignoramos a maioria dos crimes cometidos), até na merenda escolar meteram a mão-grande. Indiciaram uns esbirros mas eles vão, como é praxe. Por que não há presos da Samarco, responsável pela pior tragédia ambiental do país, com 19 mortos (por baixo)? Cadê os vilões de Furnas na cadeia, um escândalo de proporções banestaduais?

Mineirinho, Santo, Careca, Três Dedos, Bolo Fofo, etc, podem se candidatar pra garantia de foro, forro e furo, mas Lula, não. Continuam trambicando Sarna Sarney, Réu-nan, Collor, Lúcio Geddelll Bunker (brô do Chorão), Rameiro Jukenga, centenas de malfeitores só nas duas casas de tolerância do Plabaixo. Também esses “acordos de leniência” têm fedor de tramoia da Lava Jegue. Vagabundos faturam bilhões, dizem o que os farejadores querem, e vão para as mansões, devolvendo a milésima parte do que garfaram. O samurai Fugiro (homenagem aos 19 bilhões de dólares, mandados a paraísos fiscais na esbórnia paranaense, ninguém preso) Tukanomoro não vê que os números tungados não batem com as quantias devolvidas? E tome xaropada “estamos colaborando com os amigos, desculpem, membros do MP, e nos guiando dentro da reforma ética…” Cascata. Vão roubar tudo de novo. Imparcialidade o cacete!

A topo Plus-Size Marunbola continua mentindo sobre suas viagens das Arábias e outras sujeiras. De frente ou de costas, a verdade é que o cara parece um procedimento mal-ajambrado do Dr Bumbum. Lembra muito aquela musiquinha da minhoca: “a boca é do outro lado”…

Está com a banda boa da PF e com o ministro Barroso, um dos raríssimos juízes em que (ainda) levo fé, a lavagem de $$$ feita pelo mudo coronel Lima pra Temereca, via Argeplan, Rodrimar – da zona manjada do porto de Santos até obrar na casa de Maristela. Se der pizza, desisto e vou finalmente pescar.

Uma palavrinha especial para o sinistro da Inçegurân$ia. Perdigotou que o caso Marielle “é complexo” pela ligação entre os mandantes, uma declaração pública de fracasso. Vai começar a zurrar a qualquer momento. Quando era da “defe$a”, vocês lembram?, declarou com a certeza pétrea dos idiotas: “Não há a menor possibilidade de acordo entre a Embraer e a Boeing por motivos estratégicos”. Só que o acordo saiu e pode demitir 21 mil brasileiros. Também bravateou: “O roubo de cargas acabou”. Aumentou em todo o Brasil. Imagino que a cada besteira dessas, o líder Robertov deve sofrer com o fantoche. Outro exemplo da bagunça: o braço direito de Fernadinho Beira-Mar saiu da cadeia pela porta da frente, graças a um “erro judiciário”…

Não se pode esquecer que o regime econômico do presidrácula é livre mercado com tabelamento (risos).

No Rio, sob intervenção fracassada, acumulam-se estatísticas horrendas, enquanto Crivellório ataca a Pedra do Sal, e promete um país evangélico. Vade retro.

Falando no pré-feito do pessoal bunda-de-fora: um amigo muito religioso teve um problema de disfunção erétil. Deve procurar Dona Carmen? Quanto está o câmbio do boquete abençoado?

Já que o conservadorismo está na moda, quando os filhos e netos dos gatunos da tucanagem, dos farristas do centrão, dos movimentos fascistas, dos ruralistas, dos fiesposos, dos inquisidores de Cudomundo, dos empreiteiros, dos banqueiros (meio trilhão de lucro só nos cartões de crédito), perguntarem por que estão morrendo, será justo ouvirem a resposta de um conservador que pelo menos trabalhava duro, o Bardo do Império, Rudyard Kipling:

– Porque nossos pais mentiram.

Rio, 29/VII/2018

Aldir Blanc

CINEMA & IDEOLOGIA, POR MÁRCIA DENSER

Julho 27, 2018

por Marcia Denser

Paulo Emílio Salles Gomes, o nosso grande crítico de cinema, morto em 1977, assinalava na década de 60 que a chanchada brasileira, malgrado o grande sucesso de público, não era propriamente considerada cinema, pois cinema para valer era o que vinha dos Estados Unidos ou da Europa, isto é, seria tudo aquilo que não produzíamos e que valorizávamos de um modo um tanto subalterno. É o que ele chamava “situação colonial do cinema brasileiro”.

Tratava-se de um bem engrenado sistema de alienações que imprimia a “marca cruel do subdesenvolvimento” em todos os que se ocupassem da crítica de cinema no Brasil. Sobretudo o próprio Paulo Emílio. Segundo Roberto Schwarz, este argumento resume com extrema propriedade a situação que o nacionalismo desenvolvimentista queria superar no campo da cultura, pois o divórcio entre aspiração cultural e condições locais é um traço cultural de ex-colônias.

Posteriormente surgiu a consciência de que a exploração de classe no plano interno e as grandes desigualdades na ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era preciso examiná-las em conjunto. Na época, Glauber Rocha formulou sua “estética da fome” onde reinvidica  sim a miséria do Terceiro Mundo mas para lançá-la na cara dos cinéfilos europeus como parte do mundo deles, como um momento significativo do mundo contemporâneo e não apenas outro exotismo próprio de regiões distantes ou sociedades atrasadas.

Contudo ficou claro nos anos 80 que o nacionalismo desenvolvimentista havia se tornado uma idéia vazia, ou seja, uma idéia para a qual não havia dinheiro. A verificação recíproca e crítica entre as culturas tradicional e moderna não ocorreu ou aconteceu nos termos lastimáveis das conveniências do mercado.

Passado o esforço nacional de acumulação, o que se viu foram sacrifícios fantásticos para nada: usinas, ferrovias, edificações fantasma que, a despeito de tudo, não desmoronam com as ilusões ou negociatas que as tiraram do nada. Chamaram-se “pós-catastróficas” essas sociedades que se mobilizaram a fundo para modernizar-se e não conseguiram.

Pós-Glauber, pós-nacionalismos, pós-catástrofe surge “o cinema da retomada” do qual Cidade de Deus tornou-se emblemático, projetando o que ocorreu com o Brasil onde, por exemplo, as piores desumanidades adquirem sinal positivo quando saem na mídia, aliada para romper a barreira da exclusão social.

É interessante notar que à visão glauberiana, ampla, universalista, de todo modo uma visão utópico-modernista, sucede uma visão pós-moderna que privilegia o fragmento. Schwarz observa que no mundo fechado de Cidade de Deus, as esferas superiores do negócio de drogas e de armas, a corrupção política e militar que lhes asseguram espaço, não aparecem, bem como a administração pública e a especulação imobiliária que estão na origem da favela.

Em pauta mais recente tais “ocultamentos” se repetem em variações sutis ou nem tanto, como nos seriados brasileiros Mandrake e Filhos do Carnaval, ambos produzidos pela HBO. O primeiro tentando vender – malgrado a produção sofisticada, a pretensão paródica (totalmente fracassada, diga-se), a retórica dos contracampos e jogos de cena – aquele velho produto exótico e pitoresco, na linha da chanchada pornô-turística, fazendo a absurda e simultanea louvação tanto das belezas quanto das torpezas locais.

O segundo, Filhos do Carnaval, em que pese o drama realístico, que se poderia denominar étnico-familiar (se eu quisesse ser filha-da-puta ou engraçadinha, algo fora de cogitação) por outro lado, também fecha o ângulo, permanecendo em âmbito asfixiante – é o que eu chamo de “filme com claustrofobia” – jamais abrindo a perspectiva sócio-política e conseqüente reflexão – mordendo mais uma vez e eternamente o Brasil pela borda intangível, se é que me entendem.

II – Cinema & Império

Para começar os filmes de Hollywood não defendem os valores mas os interesses dos Estados Unidos, digo, Império. Que não coincidem com os do resto do mundo. Por quê? Tentarei ser didática: os filmes e a televisão americanos são tanto base como superestrutura, são tanto economia como cultura que, junto com alimentos e armamentos, são os principais produtos de exportação norte-americanos.

Mas os Estados Unidos não são apenas um país e uma cultura entre outras, há uma assimetria fundamental nas suas relações com todos os outros países do mundo. O significado dos acordos comerciais da OMC e do NAFTA é que estes são passos fundamentais no esforço americano de solapar as políticas culturais do resto do mundo.

A cultura de massa americana, associada com dinheiro e mercadorias, tem um prestígio que é prejudicial para a produção cultural dos outros países, que é forçada ou a desaparecer, como acontece com a televisão e cinema locais, ou é cooptada e transformada a ponto de se tornar irreconhecível, como no caso da música.

É especialmente importante estabelecer uma distância irônica da retórica da liberdade – não apenas livre comércio, mas liberdade de expressão, de circulação de idéias e de propriedades intelectuais – que acompanha esta política: a liberdade das corporações norte-americanas (e outras) e de seu estado-nação dominante não é a mesma coisa que a nossa liberdade como indivíduos ou cidadãos, nem que a liberdade do nosso país.

Trata-se de um jogo literalmente sem vencedores no qual esta “liberdade corporativa” resulta na destruição da indústria cultural nacional de outras pessoas e países. O sucesso de tais políticas de livre comércio em entretenimentos (implicando em desregulação e desmanche de subsídios e leis de proteção locais) significa a extinção gradual de novas produções artísticas e culturais nacionais em todos os lugares do mundo, do mesmo modo que o livre trânsito do cinema americano no mundo significa o fim dos cinemas nacionais em outros países.

Livre mercado é destruição dos concorrentes. Um “livre mercado” que só existe para os Estados Unidos, uma vez que tal “liberdade” é garantida por um poder bélico ilimitado em cujo cerne está a necessidade de expansão econômica – a lógica do capital só atua no sentido dum impulso irresistível de expansão e aumento de acumulação que não podem ser freados, suspensos ou reformulados, sem causar dano mortal ao próprio sistema.

Assim, deve ficar claro que o triunfo do cinema hollywoodiano não é apenas um triunfo econômico, mas político e formal. O desaparecimento no mundo inteiro dos filmes experimentais dos anos 60 e 70 é também outra morte da Modernidade, na medida em que os cineastas independentes em todo mundo eram guiados por um certo modernismo – ideológico, utópico. Infelizmente é também uma morte do político e uma alegoria do fim da possibilidade de se imaginar alternativas sociais radicalmente diversas do life style americano.

Porque o cinema político dos anos 60 e 70 confirmava a existência dessa possibilidade real ao atestar que a invenção de uma nova estética era equivalente à descoberta de relações sociais e formas de viver no mundo radicalmente novas.

São estas possibilidades – cinematográficas, estéticas, políticas e sociais – que desapareceram do horizonte na medida em que se consolidou o domínio cultural dos Estados Unidos sobre as outras nações.

E confirmando tudo o que acabo de dizer, algures Diogo Mainard escreve que “o cinema brasileiro nem devia existir”. Realmente – o sujeito que não é autor do próprio discurso, virou objeto do discurso do outro: Mainard “é literalmente falado” pela língua do opressor.

(artigo publicado em DesEstórias, Kotter Editorial, 2016)

MOSTRA DE CINEMA NEGRA ACONTECE NESTE FINAL DE SEMANA NO CINEMATECA DE CURITIBA

Julho 27, 2018

OUTRO OLHAR

Longa-metragem "Ela volta na quinta", do realizador André Novais, é o filme de abertura da mostra - Créditos: Divulgação

Com entrada gratuita, evento independente é organizado por estudantes negros da Faculdade de Cinema da cidade

Redação

Brasil de Fato | Curitiba (PR)

Longa-metragem “Ela volta na quinta”, do realizador André Novais, é o filme de abertura da mostra / Divulgação

De hoje a domingo (27, 28 e 29) acontece na Cinemateca de Curitiba a “Mostra de Cinema Negro Brasileiro”. Organizado por estudantes negros de cinema e audiovisual da Faculdade de Artes do Paraná, a mostra propõe uma nova construção de olhares e narrativas.

Conforme contam os organizadores, o projeto surgiu de uma necessidade dos alunos de cinema de acessar um direito simples assegurado desde sempre à branquitude: se ver nas telas. “Nossa identidade é formada a partir do olhar do outro e desde pequenos somos bombardeados com imagens estereotipadas de pessoas negras nas novelas e no cinema”, explica Bea Gerolin.

Ao todo, são mais de 20 filmes, curtas e longas-metragens em várias sessões ao longo da mostra. O grupo mapeou filmes realizados nos últimos anos em contextos vários: construídos nas periferias, universidades e quilombos, dentro e fora de casa, que garantissem direção e protagonismo negro.

“Como no dogma Feijoada, criado em 2001 por Jeferson De, buscamos filmes em que se represente o cidadão comum, que não transforme a pessoa negra nem em herói nem em um sujeito inferior. A necessidade de criar imagens nossas vivendo situações e dramas comuns ainda existe, mesmo anos depois. Nos interessa olhar para esses filmes e ter nosso olhar devolvido, como um espelho que nunca mostrou nossa cara”, reforça.

Mesas de debates

Além das exibições, a mostra também se propõe a debater, pensar e questionar esse cenário. Já na abertura do evento, a mesa com o tema “O que é Cinema Negro?” será guiada pelo curador e crítico de cinema, dentre outros canais, do site Urso de Lata, Heitor Augusto e a cientista social Karol Martins, trazendo um panorama sobre pensamentos e representações propostas e apresentadas pelo Cinema Negro, especialmente o Cinema Brasileiro.

No sábado, o debate será sobre “A representação das mulheres negras no Cinema brasileiro contemporâneo”, sendo conduzido pela produtora e realizadora Ana Esperança, pela atriz e realizadora Dandara de Morais e a roteirista Jaqueline M. Souza, responsável também pelo site Tertúlia Narrativa.

Para fechar, no domingo duas mesas acontecerão: “Como as representações no audiovisual influenciam o imaginário da criança negra?” será puxada pelo professor/psicólogo Cloves Amorim e a pesquisadora do tema Kariny Martins. E, finalizando o evento, “(R)existindo: como é ser negro e estudar cinema?”, com estudantes negros do curso de Cinema da Unespar-Fap.

A mostra é realizada de maneira independente, financiada por uma vaquinha online de 2 mil reais para arcar com as despesas dos convidados das mesas de debate. Toda a produção, curadoria e divulgação está sendo feita pelos estudantes da Faculdade de Artes do Paraná.

Serviço

Quando: 27, 28 e 28 de julho

Local: Cinemateca Curitiba-PR | R. Presidente Carlos Cavalcanti, 1174

Quanto: Gratuito

Confira a programação:

27/07 – Sexta-feira

19h – Mesa de Abertura: “O que é Cinema Negro?” Com: Heitor Augusto e Karol Martins.

20h30 – Filme de abertura: Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira (2015, 1h48)

28/07 – Sábado

17h30 –  Sessão 1

Caixa d’água: Qui-Lombo é Esse?, de Everlane Moraes – (2012, 15min)

Cinema de preto, de Danddara – (2004, 11min)

No espelho do outro, de Kariny Martins – (2018, 16min)

Fantasmas, de André Novais Oliveira – (2010, 11min)

Deus, de Vinícius Silva – (2017, 25min)

Travessia, de Safira Moreira – (2017, 5min)

19h –  Sessão 2

Nada, de Gabriel Martins – (2017, 27min)

Chico, dos Irmãos Carvalho – (2016, 22min)

Bup, de Dandara de Morais – (2018, 7min)

Barbie contra ataca!, de Yan Whately – (2016, 10min)

[Des]prendidas, de Ana Esperança – (2017, 26min)

20h30 – MESA: A representação das mulheres negras no Cinema brasileiro contemporâneo. Com: Ana Esperança, Dandara de Morais e Jaqueline M. Souza.

29/07 – Domingo

16h – Sessão de curtas infantis

A piscina de Caíque, de Raphael Gustavo da Silva (2017, 15min)

A câmera de João, de Tothi Cardoso (2017, 22min)

Lá do alto, de Luciano Vidigal (2017, 8min)

Fábula de Vó Ita, de Joyce Prado e Thallita Oshiro (2016, 5min)

Lápis de Cor, de Larissa Fulana de Tal (2014, 13min)

17h30 – MESA: Como as representações no audiovisual influenciam o imaginário da criança negra? Com: Kariny Martins.

18h30 – Sessão 2

Peripatético, de Jéssica Queiroz – (2017, 15min)

Dentro de si, de Tulio Borges – (2018, 14min)

Pele suja, minha carne, de Bruno Ribeiro – (2016, 15min)

Copiloto, de Andrei Bueno Carvalho – (2018, 17min)

Cinzas, de Larissa Fulana de Tal – (2015, 15min)

Rapsódia para um homem negro, de Gabriel Martins – (2015, 25min)

20h15 – Mesa de encerramento: (R)existindo: como é ser negro e estudar cinema?”, com  estudantes negrxs do curso de Cinema da Unespar-Fap.

Edição: Laís Melo

ERIC CLAPTON PRODUZIU UMA DAS MAIS ANTOLÓGICAS GRAVAÇÕES DE BLUES. POR AUGUSTO DINIZ

Julho 26, 2018

por Augusto Diniz

Outro dia saiu a notícia de que os problemas de saúde de Eric Clapton, 73 anos, talvez o afastem dos palcos. Mas ressalta-se que o cantor e compositor inglês tem uma deferência especial ao blues, o gênero musical surgido nos Estados Unidos intimamente ligado à diáspora africana naquele país.

No ano de 1991, em mais uma série de shows no Royal Albert Hall, imponente casa de espetáculos londrina, ele fez uma gravação antológica com seus músicos favoritos de blues. Há CDs e gravações lançados dos 24 shows realizados por Clapton naquele início de ano no Royal Albert Hall.

Mas uma noite especial dessa série de shows ocorreu no dia 25 de fevereiro de 1991 – nesta data, Eric Clapton reuniu para cantar e tocar de uma só vez no palco os principais músicos de blues da época que ele admirava.

A lista era formada por Buddy Guy (guitarrista e lenda do blues), Albert Collins (brilhante guitarrista falecido 2 anos depois desse show), Robert Cray (guitarrista ícone do blues hoje), Jimmie Vaughan (outro exímio guitarrista e irmão de Stevie Ray Vaughan, conhecido blues player), Johnnie Johnson (falecido, começou a tocar piano com o lendário Muddy Water; conta-se que parou de beber nessa temporada de shows com Clapton, depois de quase sofrer um AVC no palco), Chuck Leavell (mais um brilhante músico tocando teclados), Jerry Portnoy (os solos desse mestre da gaita nesse show são arrepiantes, ao lado dos solos de guitarra), Joey Spampinato (baixo) e Jamie Oldaker (bateria) – esses dois últimos requisitadíssimos músicos norte-americanos.

Esse show foi transmitido ao vivo por uma das rádios da estatal inglesa BBC. Atualmente, o áudio desse específico dia de show está disponível na web aqui.

Destaca-se que as falas do locutor não aparecem nesta versão – cheguei a gravar este show no rádio na versão com a locução. Na época, eu vivia em Londres. Quando trouxe a fita ao Brasil e apresentei a amigos, não havia quem não pedisse cópia – afinal, sem acesso à internet, a gravação era uma raridade por aqui. Certo dia, a minha gravação em fita cassete arrebentou – mas já detinha uma coleção de CDs dos grandes do gênero, como Robert Johnson, Sonny Boy Williamson, Muddy Waters, Albert King, entre outros.

Na ocasião, pedi a um amigo, o Francis, que até hoje vende discos raros em rodas de samba de São Paulo, para reparar a fita e passá-la para um CD – ele ficou também impressionado com o registro.

Essa gravação do Eric Clapton tem alguns clássicos do blues de todos os tempos. Trata-se de um irreparável registro. Desde então passei a respeitar mais esse virtuoso guitarrista. Aquilo que a gente vive pregando no samba de exaltação ao legado, ele fez com maestria no blues, o gênero que toca a alma como o samba.

Imagens

ODAIR JOSÉ E PÚBLICO CANTARÃO JUNTOS PARA LULA “EU VOU TIRAR VOCÊ DESTE LUGAR” NO FESTIVAL LULA LIVRE

Julho 26, 2018

Apelidado de o Bob Dylan da Central do Brasil pela imprensa, Odair José surgiu no cenário musical brasileiro na década de 70 como um furacão.

Compositor de melodias simples e letras diretas, Odair trouxe o cotidiano do povo para dentro da música brasileira. A maior característica de seu trabalho é retratar os conflitos e o amor em sua face mais real, ou seja, da paixão ao sexo.

Em 1972, Odair gravou a música “Eu vou tirar você deste lugar” e com ela aconteceu o grande estouro. Essa foi a canção mais tocada e o disco mais vendido no país naquele ano, se colocando até hoje como um clássico no repertório nacional.

Odair José vem atravessando as décadas e está sendo descoberto pelas novas gerações.

Neste sábado, 28 de julho, presente no Festival Lula Livre, Odair e o público cantarão para Lula “Eu vou tirar você deste lugar”. O show acontecerá nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro.

CENTENÁRIO DE INGMAR BERGMAN

Julho 25, 2018

por Walnice Nogueira Galvão

Um dos maiores diretores de cinema que já houve:  e para muitos o maior, assim superlativamente, como declara Woody Allen no prefácio a Lanterna mágica, a autobiografia de Bergman. Os fãs preferem esquecer as constrangedoras tentativas do prefaciador, que pretendeu imitá-lo, e o desastre em que redundaram.

Guarda parentesco com Strindberg e Ibsen, dramaturgos escandinavos do fim do século XIX, com seus mundos decadentes, dilacerados, sem misericórdia nem redenção. Uma visão sobrecarregada, cruel anatomia da sociedade burguesa  sobre a qual paira a sombra de Kierkegaard, cujas concepções deixaram rastros. Interroga-se a morte, a culpa, a ausência de Deus, o torvelinho da alma humana, a maldade, a fé, a loucura, raramente irrompendo uma nota mais leve.

Conhecidas são suas divas, no cinema e na vida real: as irmãs Harriet e Bibi Andersson, Eva Dahlbeck, Ingrid Thulin, Liv Ullman. No total, deixou 9 filhos, de diferentes mães. Sua tumultuada vida amorosa está candidamente contada por ele próprio na autobiografia e em documentários alheios.

Atrizes e protagonistas são tremendas mulheres marcantes. Uns acham que Bergman é um inigualável pintor de retratos de mulheres, manifestando seu fascínio por elas, que ocupariam um lugar sublime em seu altar pessoal. Outros o acusam de sádico, pois leva a verrumação da alma delas até ao ponto de machucá-las e humilhá-las, inclusive fisicamente (v. Gritos e sussurros, Persona). Seria uma maneira de se vingar do desejo avassalador que sente por elas – e de que elas são, evidentemente, “culpadas” – levando-o a detonar sua própria vida com frequência. É conhecido fenômeno, responsável por muita misoginia. É bem verdade que poucos cineastas levaram ao paroxismo, como ele, o estudo do dilaceramento mútuo que pode ser a relação de um casal, que ele disseca com bisturi implacável.

Filho de um pastor protestante luterano, vem de uma criação estrita e severa, coalhada de castigos corporais, num cotidiano em que perpassam o diabo, o inferno, a culpa, e assim por diante. Ele confessa que odiava o pai e almejava a morte dos irmãos. Uma tal criação, moldando-lhe e deformando-lhe a personalidade, seria exorcizada na obra do artista. Fala muito de demônios, espíritos e seres inomináveis que o atormentam. É de notar o contraste entre, de um lado, a vida pessoal desordenada e, de outro, a vida profissional disciplinada e produtiva.

Tão cedo quanto possível escolheria viver como um recluso na ilha de Farö, onde morreu e foi enterrado.

Este ano, que assinala seu centenário de nascimento, está tomado por celebrações mundo afora. Seu país, a Suécia, decretou 2018 como o “Ano Bergman”. O restante do mundo segue seus passos. No Brasil, aqui em São Paulo, brindam-nos com o Festival Cinesesc, esta casa de projeções na rua Augusta que resiste heroicamente à destruição de todas as maiores salas, sempre pronta a acolher eventos de arte que não visem nem ao lucro nem à moda. Ali se apresenta este mês uma mostra dos filmes mais representativos do cineasta. A não perder tão rara oportunidade.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP 

ANTONIO CÂNDIDO: SOCIALISMO, LIBERDADE E ‘FALTA DE RESPEITO’ ESTUDANTIL

Julho 25, 2018
INTELECTUAL E MILITANTE
Fundação Perseu Abramo faz homenagem a crítico literário, intelectual e militante, que completaria 100 anos nesta terça-feira
por Vitor Nuzzi, da RBA.
TVT / REPRODUÇÃO
Antonio Candido TVT

Definido como ‘homem simples e fraterno, Antonio Candido pautou a vida por princípios absolutamente firmes

São Paulo – Autor, entre outros livros, do clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), pensador, socialista e militante ativo do PT, Antonio Candido recebeu homenagens e reverências em evento promovido pela Fundação Perseu Abramo (FPA) – em parceria com PT, Instituto Lula, TVT e Escola Nacional Florestan Fernandes – na noite desta terça-feira (24), em São Paulo. “Ele insistia que não era um homem da política. Talvez não stricto sensu da atividade partidária, apesar de ser um membro disciplinadíssimo do PT. Mas era um ser político. Sempre vi meu pai como ser político. Naquilo que a politica teve de mais nobre e essencial, ele sempre esteve presente. Foi justamente o sentimento de justiça social que o levou à atuação política”, testemunhou a professora e historiadora Laura de Mello e Souza, uma das três filhas de Candido, que completaria 100 anos ontem – ele morreu em 12 de maio de 2017, aos 98 anos.

Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), aluna e assistente de Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão destacou a participação do professor e intelectual na criação da chamada Esquerda Democrática, grupo formado nos anos 1940, e de sua ação política “não partidária”, além de ter participado ativamente da fundação e formação do PSB e do PT. Citou, entre outros, o livro Teresina etc, que na primeira parte trata de Teresina Carini Rocchi, socialista italiana e amiga da mãe de Candido em Poços de Caldas (MG), onde ele passou a infância e a adolescência, até ir para São Paulo, aos 19 anos. Candido nasceu no Rio de Janeiro.

Ela lembrou da presença diária, como professor, na ocupação dos estudantes da Faculdade de Filosofia, então na Rua Maria Antônia, na região central de São Paulo. Candido integrou a comissão paritária que comandou a ocupação. “Ele se divertia muito com a súbita falta de respeito dos estudantes”, recordou Walnice, lembrando de uma assembleia em que uma estudante não sabia como tratar aquele senhor à mesa, que parecia desafiá-la ao “desrespeito”. Na dúvida, anunciou: “Vai tomar agora a palavra o colega professor”. 

Laura citou outro episódio que provocou risos na plateia que foi à FPA, envolvendo o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que queria o professor e militante na Comissão Justiça e Paz, ao que ele respondeu que não poderia aceitar, por ser ateu. Quando soube da manifestação, Dom Paulo teria dito, segundo Laura: “Ah, o Antonio Candido pensa que é ateu”. 

“Sem ser um crente, era um homem que pautou a vida por princípios absolutamente firmes”, disse a filha, que o definiu como homem “simples e fraterno”, revelando seu gosto por ovo frito. “Extremamente simples, o que torna ainda mais difícil de compreender a ressonância do legado dele, porque nós em casa nunca nos demos conta disso”, acrescentou Laura. Ela ainda ressaltou “a crença política (de Candido) em um mundo melhor”. E ele pôde, como queria, manter sua autonomia até o fim. No dia em que morreu, contou a filha, subiu a pé quatro quarteirões da Rua Pamplona, perto de onde morava, para resolver alguns assuntos.

Assista a reportagem da TVT

Crítico literário

Diretor do Instituto Lula, o ex-ministro Paulo Vannuchi lembrou que Nelson Mandela também nasceu em julho de 1918, o que já recomendaria uma consulta a astrólogos sobre aquele período. Ele teve um primeiro contato com Candido quando tinha 16 anos e participou da Semana Euclidiana (referente a Euclides da Cunha) em São José do Rio Pardo, no interior paulista. Recordando com emoção vários encontros com o professor, Vannuchi afirmou que, além de ser reconhecido como “maior crítico literário do Brasil”, Candido precisa ter mantido e divulgado seu lado de pensador político e militante.

“A frase que ele mais repetiu foi de João Mangabeira (fundador do PSB): socialismo sem liberdade, socialismo não é; liberdade sem socialismo, liberdade não pode ser”, disse Vannuchi. “No PT, ele foi sobretudo articulador da questão da cultura, a política cultural, a política como cultura.”

No evento, foram exibidos vídeos, gravados em Berlim, com declarações da pesquisadora e professora Lígia Chiappini e do escritor e jornalista Flávio Aguiar, colaborador da RBA. “Ele estaria dizendo: liberdade para Lula”, afirmou Lígia. O ex-presidente foi citado várias vezes. Em uma foto, Lula e Candido se cumprimentam.

O sociólogo Ricardo de Azevedo, ex-presidente da FPA, destacou ainda que Candido foi colaborador da fundação desde o início e primeiro presidente do conseho editorial. “Várias de nossas publicações foram ideias e sugestões do Antonio Candido”, lembrou Azevedo, citando a coleção Pensamento Radical, sobre pessoas “que pensaram o Brasil”, como Celso Furtado, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Hollanda.

O coordenador da Escola Nacional Florestan Fernandes, Álvaro Anacleto, contou que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) queria homenageá-lo “em vida”, dando o nome de Antonio Candido à biblioteca do instituto, que já destaca outro pensador e militante petista. Segundo ele, Candido achou melhor não receber a homenagem em vida porque ainda poderia “cometer alguns equívocos”. Mas a biblioteca está lá, além de um pau-brasil plantado por ele, o que, para Anaclato, dá novo significado e continuidade a suas ideias. “O que é uma árvore para nós, senão o plantio de um futuro?”