Archive for Dezembro, 2021

“É CHAPA QUENTE”: A HISTÓRIA DAS AVÓS QUE TÊM TRANSFORMADO A PERIFERIA DE SP POR MEIO DO FUNK

Dezembro 31, 2021
  1. MOSAICO CULTURAL

VOVÓS DO FUNK

Na Cidade Tiradentes, dez mulheres da terceira idade descobriram o poder da música e da união para enfrentar a pandemia

Pedro Stropasolas31 de Dezembro de 2021.

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As Vovós da Tiradentes descobriram o potencial transformador do funk na pandemia – Pedro Stropasolas

Eu sempre digo e repito que para a gente tudo está começando agora

Tudo começou durante a pandemia de covid-19, causada por um vírus que fez da terceira idade o principal alvo. Em meio a este período triste da nossa história, um grupo de avós de Cidade Tiradentes, bairro da Zona Leste de São Paulo, resolveu transformar a dor e as angústias em música. O carro chefe é o funk, guiado pelas letras potentes compostas por MC Vovó Benta.

“Como eu sofri de depressão, de síndrome do pânico, tive covid, muitas pessoas vovós também passaram por isso e não tiveram oportunidade de falar, né?! E a gente ainda teve de pedir ajuda para uma amiga, conversar. Assim surgiu a MC Vovó Benta e as Vovós da Tiradentes”, relembra a avó de três netos Benta Antônia da Silva Moraes dos Santos, de 63 anos. 

Até o momento, já são três músicas gravadas e dez registradas por elas. O boom veio com o hit “É chapa Quente, as Vovós da Tiradentes”, canção gravada em videoclipe pela produtora Puryblack.

“Você passa [na rua] e tem carro tocando as nossas músicas. No ônibus, o cobrador, a galera cumprimenta. A gente já está bem conhecida”, conta a vovó Sandra Nogueira Batista, que tem dez netos.. 

Já a vovó Maria Lúcia mora no bairro desde a criação, quando ainda as ruas eram de barro e não havia nenhum dos muitos conjuntos habitacionais em meio à paisagem. Ela é quem tem mais netos. São 20 ao todo. 

“Eu acho bom, porque é uma maneira de reunir as pessoas. Nós sempre nos reunimos pra alguma coisa, pra ir à praia, a um churrasco”, conta.

Hoje, a música transformadora das avós já ganhou as rádios de países da Europa e da América Latina, como o Paraguai e a Argentina. A última apresentação foi na Radio Dreyeckland, da cidade de Freiburg, na Alemanha.

Bernadete Aparecido Valério da Silva tem 63 anos e é quem faz as batidas dos hits. A avó de três netos considera que o funk é amigável e transformador, especialmente para as crianças do bairro.

“Antigamente, as vovós eram vovós, assim, de ‘olha vamos lá pra casa da vovó comer bolo, fazer bolo de fubá’ . A gente faz umas coisas gostosas para as crianças, mas agora também as crianças vêm, e é chapa quente. Tchu tcha tcha tchu tcha”, pontua.

“Quando nós chegamos aqui há quase quarenta anos, não tinha nada, e hoje é uma cidade maravilhosa, com projetos maravilhosos, com jovens e atores, atletas, músicos, médicos, então tem tudo aqui dentro da nossa cidade. Isso aqui tinha que ser um município”, completa a avó de três netos.

Qualidade de vida 

Mas o sonho dessas dez mulheres ainda não foi completamente realizado. O foco agora é a criação de um espaço de acolhimento para outros avós que vivem na Cidade Tiradentes.

É um pouco do que MC Vovó Benta passa na canção Empoderada. A mensagem é direta: a idade não deve ser um impeditivo para viver e ser feliz.

“Não é porque nós chegamos nos sessenta, setenta, oitenta anos, que acabou. Eu sempre digo e repito que para a gente tudo está começando agora. Então, a gente tem esse empoderamento. A gente fala nas músicas, nas letras, que as vovós precisam de um dia para praticar esportes, para poder ser feliz. A gente quer sair, a gente gosta de tomar uma cerveja, a gente gosta de dançar”, finaliza a vovó. 

Para apoiar o trabalho das Vovós da Tiradentes e a criação de um espaço de acolhimento para elas na comunidade, entre em contato com a MC Vovó Benta no instagram: @mcvovobenta.

Edição: Geisa Marques

CARTA MAIOR CINEMA: A CORAGEM DE SER O QUE SOMOS

Dezembro 30, 2021

‘Suk Suk’ e o brilhante filme ‘O ataque dos cães’ tratam da liberdade, da identidade de gênero e das escolhas amorosas e sexuais

Por Léa Maria Aarão Reis -12/2021.

Suk Suk (Reprodução)

Créditos da foto: Suk Suk (Reprodução)

 
Neste fim de ano dois filmes vindos de culturas diversas chamam a atenção para o espaço que o cinema da grande indústria vem usando para desarticular discursos homofóbicos e de aversão aos grupos LGBT que hoje pertencem a uma realidade bem-vinda, cada vez mais fincada e naturalizada no cotidiano das populações do século 21. Discursos anacrônicos porém perigosos de aficionados de extrema direita, os conservadores e neofascistas esperneiam diante dos novos ares de liberdade e de afirmação radical que não param de bradar: você é quem escolhe o que você quer ser.

Suk Suk- Um amor em Segredo é um deles. Filme vindo de Hong Kong, do diretor Ray Yeung, chegou ao streaming* em setembro, discretamente, e hoje garante um grande número de acessos. O longa-metragem, selecionado para o Festival de Berlim de 2020, aborda uma situação específica no universo gay, mas que na vida trivial, pouco a pouco, vai se estendendo e tomando forma sem causar grandes estranhamentos.

Yeung estudou na Grã-Bretanha e antes de fazer filmes trabalhou como advogado. Quase sempre ele filma a vida de gays asiáticos. Em Suk Suk ele se inspirou no livro História Oral de Homens Gays Idosos em Hong Kong, de Travis Kong, no qual dois senhores se apaixonam. Eles fazem parte desse grupo minoritário que raramente se expõem porque lutam, mais até do que os demais, contra preconceitos.

Suk Suk é a história homoafetiva entre esses dois homens maduros, um pouco de meia idade um pouco idosos, vivendo com suas respectivas famílias sedimentadas. Eles se encontram num parque, se relacionam, e juntos, durante uma temporada, dividem momentos de realização amorosa, sexual e de intensa recompensa emocional; a mesma que lhes faltava até então.

Pak tem cerca de 70 anos, é um motorista de táxi que se recusa a se aposentar para não cair no tédio de uma existência cinzenta ao lado de uma mulher ranzinza e de permanente mau humor. Hoi mora na casa do filho casado, com sua nora e um neto, é divorciado e aposentado aos 65 anos. Em uma tarde, no parque, os dois se conhecem, se reconhecem e iniciam uma história bem mais prazerosa do que suas vidas vividas até então.

Gays idosos quase nunca são representados no cinema. ”Os homens gays mais velhos não puderam desfrutar de tais mudanças hoje efetivas por causa dos valores culturais tradicionais estritos que carregam consigo desde meio século atrás e de laços familiares próximos que foram construídos”, diz Yeung. ”Em geral são homens que parecem reprimidos, tristes e sem coragem de serem eles mesmos.”

https://youtu.be/BZGMVfF9IBU

O segundo filme é sobre a dificuldade de sair do armário num ambiente particularmente hostil e as graves consequências da frustração em expor sua identidade mais autêntica. É baseado no livro The Power of the Dog, do americano Thomas Savage, um gay que nunca se assumiu, e foi publicado em 1967.

Ataque dos Cães** é da afamada diretora neozelandesa Jane Campion que há doze anos não filmava. Com esse trabalho, ela, que já ganhou diversos Oscars e a Palma de Ouro em Cannes, é autora de um dos concorrentes mais cotados para o Oscar de fevereiro do próximo ano.

O belo filme conta a história de Phil (Benedict Cumberbatch, excelente) e George (Jesse Plemons), dois irmãos muito ricos e proprietários da maior fazenda de Montana. O primeiro é brilhante, cruel, um homem gay que esconde sua verdadeira sexualidade sob uma fachada de sujeira, crueldade e violência. O segundo é a suavidade em pessoa. A relação dos dois se torna perturbadora quando George se casa com a viúva local Rose (Kirsten Dunst), uma pianista que imediatamente remete o espectador ao célebre filme O piano, de Campion.

Ataque dos Cães (Netfllix)

Um dos lançamentos atuais mais elogiados e de maior sucesso no streaming, o seu desfecho inesperado é chocante, nesse faroeste dramático que trata de masculinidade e do amor entre dois caubóis. Seus quinze minutos finais dão uma reviravolta impressionante na narrativa.

Enfim: embora os filmes LBGTQ estejam circulando livremente no lado de cá, na China ainda é difícil vê-los nos cinemas. Ainda constituem um tabu. E não esquecer que em Cingapura e na Malásia a homossexualidade ainda é crime.

Por isto, é importante o que Yeung, autor de Suk Suk diz: ” ‘O mundo precisa ver essas histórias. Testemunhar as lutas e conflitos dessas pessoas ajuda a entendê-las melhor. Perceber que não são diferentes e que a necessidade de amor, respeito e liberdade de ser quem queremos ser é universal”.

Dois filmes necessários, cinema de boa qualidade. Mas The power of dog em particular é obrigatório. Ainda há muito o que falar sobre ele.

https://www.youtube.com/embed/ZwXNDdiSAsE

*Suk Suk – Um amor em Segredo está no Now, Google Play, YouTube, Vivo, Sky

**Ataque dos cães, na Netflix

LIVRO: A CULINÁRIA CAIPIRA DA PAULISTÂNIA – RECEITAS DA COZINHA CAIPIRA NO BRASIL

Dezembro 29, 2021
  1. ALIMENTO É SAÚDE

270 RECEITAS

Das hortas de quintal ao milho guarani, livro resgata as raízes da cozinha caipira no Brasil

A Culinária Caipira da Paulistânia mistura o processo de formação da cultura caipira com receitas nunca antes divulgadas

Pedro Stropasolas Dezembro de 2021.

Ouça o áudio:Play02:4404:16MuteDownload

Culinária caipira é retratada em livro escrito por Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos – Estúdio Arado

A culinária caipira é uma culinária de pobres, essencialmente de pobres

Um modo de se alimentar que faz parte da identidade brasileira, mas ficou marginalizado durante muito tempo. Essa é a história contada no livro “A culinária caipira da Paulistânia”, que acabou de ser relançado pela Editora Fósforo.

“A culinária caipira é uma culinária de pobres, essencialmente de pobres. Essa informalidade, digamos assim, essa precariedade, é a base da culinária caipira e por isso mesmo ela foi esquecida, reprimida”, explica o sociólogo Carlos Alberto Dória, um dos autores. 

:: Coentro divide opiniões e é ingrediente chave da ‘culinária de resistência’ do Brasil ::

O escritor conta que durante a pesquisa para a produção do livro ele foi percebendo como, de fato, a culinária caipira Paulistânia não é só coisa de São Paulo. Todo esse conhecimento culinário adentra o Brasil e tem raízes diversas

“Aos poucos eu fui vendo que a abrangência era muito maior do que São Paulo e Minas Gerais. Incluía Goiás, Mato Grosso, etc. E o trabalho foi nessa área, fui vendo o que ela tinha em comum no seu processo de formação, que é a basicamente a penetração dos bandeirantes e a presença forte dos índios Guaranis, resultando em uma sociedade baseada na produção de subsistência em pequenos sítios e tal. Então esse foi o enquadramento geral”, completa.

:: Resistência negra: Ingredientes típicos de África se tornam base da culinária brasileira ::

Quase totalmente baseada na utilização do milho, a culinária caipira tem influência indígena. Exótico, o alimento foi trazido ao Brasil pelo povo guarani, vindo de outros países da América do Sul.

::  Receita: moqueca de ovo do livro de Manoel Querino ::

O ingrediente é uma das estrelas no restaurante do chef Marcelo Corrêa Bastos, que também é coautor do livro. Ele redescobriu sua raiz caipira no processo de escrita da obra.

“É uma cozinha baseada na horta de subsistência, na horta do quintal, nas carnes, a princípio as carnes de caça, depois é assimilado a carne suína e de aves, e principalmente no milho. O milho está em praticamente todas as refeições da dieta caipira ou do ideal da dieta caipira. O milho em suas várias formas, principalmente na forma de farinha de milho”, explica Marcelo.

Edição: Lucas Pará

CENAS DE “NÃO OLHE PARA CIMA” REMETEM A VÍDEO DE NATALIA PASTERNAK DE 2020

Dezembro 28, 2021

A própria cientista apontou as semelhanças entre o vídeo em que aparece indignada com o “humor” e “leveza” utilizados para tratar o negacionismo e cenas protagonizadas por DiCaprio e Jennifer Lawrence na comédia apocalípticaPor Ivan Longo Dez 2021.

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Reprodução

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Muitos vêm dizendo que o filme “Nãoolhe para cima“, nova produção da Netflix, teria sido inspirado no Brasil atual. Não à toa, pois a obra dirigida por Adam McKay retrata de forma irônica o negacionismo científico.

Um exemplo dessa referência, ainda que não proposital, ao país, é um vídeo de 2020 que mostra a microbiologista Natalia Pasternak, em um telejornal, criticando o “humor” e “leveza” muitas vezes utilizados para lidar com a negação à ciência – o que gera mortes.PUBLICIDADE

A semelhança entre a fala da cientista brasileira e uma cena da personagem Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) é tão impressionante que a própria Natalia Pasternak a repercutiu em suas redes sociais.

Enquanto no filme a astrônoma Kate se indigna com o fato das pessoas minimizarem o fato de que um cometa estaria em vias de se chocar com o planeta Terra e extinguir a humanidade, tratando o assunto com humor, Natalia Pasternak tem atitude parecida ao criticar o negacionismo com relação à pandemia do coronavírus.

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Ivan Longo

Jornalista, editor de Política, desde 2014 na revista Fórum. Formado pela Faculdade Cásper Líbero (SP). Twitter @ivanlongo_twitter

AQUILES RIQUE REIS: RAIZ E FOLHA: O CANCIONEIRO

Dezembro 27, 2021

Lançado o primeiro álbum da cantora baiana Kell Santos, intitulado Raiz e folha: O cancioneiro de Zeh Gustavo (independente).

Eu ainda não ouvira a moça cantar, nem sequer havia dela ouvido falar. Claro que a condição de ser seu primeiro disco me atraiu. Respeito e solidariedade me movem em direção às boas surpresas vindas dos iniciantes.

Mas eu conhecia Zeh Gustavo desde quando ele morava no Rio de Janeiro. Ainda não era um cancionista, mas um poeta cujas palavras me sensibilizaram… (Lembro-me que ele batalhava para lançar um livro).

Naquela época (2004), eu frequentava o grupo autodenominado A Sociedade dos Poetas Vivos, que se reunia aos sábados de manhã para trocar ideias. Compareciam o saudoso Zé Rodrix, o jornalista José Nêumanne, o psicoterapeuta Humberto Mariotti e o saudoso poeta Mário Chamie, criador da poesia “Praxis”.

Num sábado qualquer, levando as poesias do Zeh Gustavo debaixo do braço, li uma das poesias para o grupo. Senti que os olhos de Mário Chamie brilharam. E ele falou: “Direto! No ‘olho da mosca!”’ – era como ele costumava saudar o que lhe agradava. “Estes versos são exatamente a minha poesia ‘Praxis’!”. Logo depois a editora Escrituras publicaria a Idade do Zero, do Zeh Gustavo poeta.

Esta lembrança trouxe até mim, para o hoje, Zeh Gustavo cancionista e sambista. Pois foram as suas primeiras canções, concebidas solo ou com parceiros de letra ou de melodia, que a cantora baiana Kell Santos gravou agora. (Para além de poeta, Zeh segue lançando livros e cultivando a música em seu horizonte).

Cada qual no seu canto, Zeh e Kell se radicaram no Rio, entre os morros do Fallet e do Fogueteiro, no bairro de Santa Teresa. A garotada ia lá para ouvir o que de mais novo nascia na música brasileira.

Depois, Kell retornou à Bahia e Zeh fixou-se no Mato Grosso do Sul. Apesar da distância física o trabalho nasceu coletivo, com a voz marcante de Kell, o trabalho autoral do poeta-sambista Zeh Gustavo e os arranjos e a direção musical de Daniel Delavusca.

O instrumental arregimentado lança fogo pelas mãos e a emoção vinga. Com instrumentos hoje presentes nas rodas de samba – cavaquinho, violão de seis e de sete cordas e percussão –, Delavusca deitou e rolou.

Em meio à diversidade da música brasileira, o repertório de emboladas, sambas, frevos e canções de Zeh Gustavo brilham na voz de Kell, que canta expressando sagacidade, afinação e bom-gosto.

Destaque para os sambas “Morrinho da Conceição” (Mário Junior e Zeh Gustavo), com levada de samba de enredo, “Mar Bravio” (ZG), “Raiz e Folha” (ZG), o samba amaxixado “(Des)Embarque” (Marcelo Bizar e ZG), o samba “Vida Nem Volta” (Renan Sardinha e ZG) e a cereja do bolo, uma canção inédita do saudoso Sérgio Ricardo.

Assim, a música brasileira resiste. Pela multiplicidade de seus compositores e intérpretes anônimos ou consagrados, os que se lançam a ela têm o entusiasmo das orgias, peculiaridade dos que confiam na sua própria musicalidade.

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4

LENTES SOBRE A AMAZÔNIA

Dezembro 26, 2021

Filmar a Amazônia é criar representações duradouras de matas, cidades, tribos e culturas que cobrem 61% do território brasileiro. É penetrar na grande reserva de vida de que o país não pode se descuidar. Meu prefácio do livro ”Filmar a Amazônia”, organizado por Gustavo Soranz

Por Carlos Alberto Mattos. 12/21.

 

 
“A Amazônia e seus povos fazem parte de um arquétipo do imaginário em todo o mundo.” A frase é do cineasta Jorge Bodanzky em entrevista para um livro que fizemos juntos sobre sua obra. Esse arquétipo do imaginário diz respeito a muitas coisas: o meio ambiente, os povos originários, as lendas de cidades perdidas, a Natureza exuberante… E também a dizimação das culturas indígenas, os projetos de colonização predatória, o desmatamento, a cobiça internacional.

Tudo isso tem se refletido no cinema que se faz na Amazônia desde que o pioneiro Silvino Santos singrou suas águas e embrenhou-se por suas matas com uma câmera. A Amazônia brasileira tem sido nossa maior reserva não só de biodiversidade, mas também de matéria simbólica e audiovisual. Filmá-la é tão fascinante quanto desafiante. Requer disponibilidade e responsabilidade.

Com frequência, é capturada por um cinema meramente extrativista, que suga suas energias sem deixar nada em troca, ou quando muito um punhado de clichês ecológicos ou etnográficos quaisquer. Este livro trata de algo bem diferente. Aqui estão quatro realizadores (ou duplas) que nutriram – e alguns ainda nutrem – uma relação sustentável e profunda com a região. São convivências de longa duração e que renderam parte considerável de suas respectivas obras. Mais que isso, contribuíram para um melhor conhecimento e conscientização dos problemas e necessidades da Amazônia.

Um traço interessante a destacar é o fato de que três dos seis documentaristas entrevistados por Gustavo Soranz ou Fernanda Bizarria têm alguma ascendência estrangeira ou, no caso de Adrian Cowell, é estrangeiro. Todos os trabalhos de Cowell e grande parcela dos realizados por Jorge Bodanzky foram produzidos por televisões europeias. Isso não deixa de refletir o interesse “de fora” pela Amazônia. Um interesse que, em última instância, pode assumir faces diferentes, da cobiça pura e simples às iniciativas de preservação, passando pela atenção etnográfica e pela denúncia da destruição.

Bodanzky, filho de pais austríacos emigrados para o Brasil na década de 1930, estudou cinema em Ulm na época do Novo Cinema Alemão e foi parar na região amazônica por uma casualidade do trabalho jornalístico. Vincent Carelli, nascido na França e radicado no Brasil, migrou para o cinema a partir do ofício de indigenista, enquanto sua parceira Mari Corrêa iniciou-se no filme etnográfico em Paris. O único com raízes amazônicas é o manauara Aurelio Michiles, bisneto de italiano. Todos, porém, têm a Amazônia como sua pátria de trabalho.

Vale ressaltar as diferenças significativas na forma como cada um deles se aproxima de seus objetos mediante o documentário.

Podemos dizer que Michiles mantém um vínculo de origem com a Amazônia e costuma abordá-la numa perspectiva histórica, humanística e culturalista. Teatro Amazonas privilegiou o aspecto humano da construção daquele marco da cidade de Manaus. O próprio cinema foi contemplado com O Cineasta da Selva, sobre Silvino Santos (filme que desenha uma pequena genealogia do cinema amazonense), Tudo por Amor ao Cinema, perfil do conservador de filmes amazonense Cosme Alves Neto, e Que Viva Glauber, que destacou a passagem de Glauber Rocha pelo Amazonas. O ciclo da borracha aparece em A Árvore da Fortuna e em novo projeto sobre a atuação do cônsul britânico Roger Casement na investigação do uso de mão de obra escrava indígena na extração de borracha no Putumayo, no início do século XX.

A filmografia amazônica de Jorge Bodanzky, por sua vez, tem um caráter expedicionário e aventuresco. É fruto, em boa parte, de sua associação com jornalistas e produtores alemães como Wolf Gauer, Karl Brugger, Gernot Schley e Ortwin Bruckner. Se o clássico Iracema, uma Transa Amazônica (dirigido em dupla com Orlando Senna) chamou a atenção do mundo para as queimadas na floresta e a devastação rodoviária e madeireira, outros tantos documentários seus são insights originais de questões brasileiras como a ocupação econômica da Amazônia, a manutenção e desaparição de culturas indígenas, a imigração externa e interna, e as ações da sociedade civil em pontos remotos do país. De sua colaboração com colegas europeus resulta um original cruzamento do olhar estrangeiro com a perspectiva autóctone que ele próprio acrescenta.

O trabalho de Bodanzky transbordou do cinema para as mídias digitais, sendo dele as primeiras criações institucionais em CD Rom e website sobre a Amazônia. Essa fronteira foi ainda mais expandida com o célebre projeto Navegar Amazônia, que levava a internet e oficinas audiovisuais a povos ribeirinhos não contemplados pela aldeia global.

Nessa perspectiva de formação e comunicação se enquadram também as atividades da ONG Vídeo nas Aldeias, criada por Vincent Carelli e Virgínia Valadão em 1986. A ideia de uma antropologia visual compartilhada é posta em prática em toda a sua amplitude. Por mais de três décadas, grupos indígenas vêm se conhecendo mutuamente e assumindo a produção de suas próprias narrativas com imagem e som. A existência de um cinema indígena hoje no Brasil se deve majoritariamente à ação de Carelli e de sua parceira mais recente, Mari Corrêa, junto a diversas tribos, muitas delas da Amazônia.

Os filmes produzidos nesse âmbito fazem sucesso e angariam simpatia em mostras e festivais no Brasil e no exterior. Resultados desse processo e de seus desdobramentos, surgiram quatro longas-metragens de primeira linha, todos bastante premiados. O próprio Carelli assinou Corumbiara, que recolhia ecos de um massacre de índios ocorrido em 1985, e Martírio, crônica solidária da luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada de suas terras. As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, mesclou ficção e documentário em torno da preparação de um ritual feminino na tribo kuikuro. O Mestre e o Divino, de Tiago Campos Torres, mapeou a longa relação entre o missionário alemão Adalbert Heide e o cineasta xavante Divino Tserewahú. Em todos esses trabalhos desponta uma forte e crescente interação entre índios e não índios.

Num modelo mais clássico, centrado no ponto de vista dos indigenistas e no foco de denúncia, o cinema do inglês (nascido na China) Adrian Cowell (1934-2011) foi pioneiro em levar ao conhecimento do mundo a devastação da Amazônia e as constantes ameaças aos seus povos originários. O antológico A Tribo que se Esconde do Homem, de 1970, já registrava a saga dos irmãos Villas Boas, na década de 1960, para contatar e levar para o Xingu os índios Panará ou Kren-Akarore. A série A Década da Destruição, veiculada na BBC inglesa, acompanhou em várias frentes a destruição da floresta ao longo dos anos 1980 e tornou-se peça-chave do movimento em sua defesa.

Como parte de seu ativismo, Cowell ainda escreveu dois livros sobre índios brasileiros, The Heart of the Forest e The Tribe that Hides from Man, além de um livreto sobre a série A Década da Destruição.

A amizade com Chico Mendes foi um dos elos mais fortes de Cowell com a Amazônia, muito embora suas viagens à região remontem a 1958, quando veio pela primeira vez numa expedição de jovens cineastas. Era fascinante ouvir os relatos do documentarista sobre sua militância contra a especulação depredadora, suas incursões floresta adentro junto aos Villas Boas, Apoena Meirelles, Sidney Possuelo. E muita malária, que atingiu também sua mulher e seu permanente colaborador Vicente Rios.

A parceria de Cowell com o brasileiro Vicente Rios foi uma das mais sólidas do documentarismo mundial. Juntos, em dezenas de filmes e programas de TV, eles fizeram a crônica da colonização, do desmatamento e dos incêndios na floresta. Documentaram as campanhas ambientalistas, a morte de Chico Mendes, a criação das primeiras reservas extrativistas e os primeiros contatos com os índios Uru Eu Wau-Wau. Sempre com o apoio da Universidade Católica de Goiás e a codireção, produção local e fotografia a cargo de Rios.

É uma felicidade que o acervo de experiências desses documentaristas tenha sido recolhido por Gustavo Soranz nas entrevistas que compõem este livro essencial. Aqui eles não só recontam suas aventuras pela Amazônia – e não só lá –, como também refletem sobre o cinema etnográfico, as diferentes atitudes dos cineastas perante as comunidades indígenas, a linguagem do documentário e o contexto político e ambiental da região.

Ler o que esses cineastas disseram pode ser iluminador num momento (o ano de 2020) em que o Brasil está mais uma vez no centro do debate ambientalista por conta da fatal irresponsabilidade do governo Bolsonaro. A “guerra” declarada pelos atuais governantes contra os índios, as ONGs e os mecanismos de defesa da floresta bem mereceria novas e potentes investidas desses gigantes do cinema amazônico.

O livro nos recorda também a importância que tinha a Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, em cuja edição de 2009 eu tive a honra de servir como jurado. O evento, conduzido com paixão por Selda Vale da Costa e a brava equipe do NAVI, era um polo efervescente de exibição e debate de uma produção e de questões fundamentais para o conhecimento profundo do Brasil.

Afinal, filmar a Amazônia é criar representações duradouras de matas, cidades, tribos e culturas que cobrem 61% do território brasileiro. É penetrar na grande reserva de vida de que o país não pode se descuidar.

Filmar a Amazônia
Gustavo Soranz (org.)

Rizoma Audiovisual. Manaus, 2020

CINEMA CARTA MAIOR: RESISTÊNCIA NAS MONTANHAS DO LESOTO

Dezembro 25, 2021

Filme de narrativa mítica, ‘Isso não é um Enterro, é uma Ressurreição’ traz a figura de uma atriz e uma personagem impressionantes

Por Carlos Alberto Mattos 12/2021.

(Divulgação)

Créditos da foto: (Divulgação)

A narrativa é mítica, como deixa claro o narrador de corpo presente contando a história da aldeia de Nazaretha já depois de ter sido inundada para a construção de uma represa. Após um longo prólogo num estranho bar de luzes coloridas, onde o homem toca uma lesiba (instrumento de vibração), conhecemos enfim Mantoa, a mulher mais idosa daquela aldeia de pastores de ovelhas nas montanhas do Lesoto.

Mantoa já havia perdido marido, filha e netos, e acaba de receber a notícia da morte do filho nas minas da África do Sul. O corpo chega para ser enterrado. A partir daí, ela resolve empenhar suas forças em dois objetivos: preparar seu próprio funeral, começando por achar alguém que cave a sua cova, e liderando a resistência da aldeia contra o realocamento. Sua bandeira é não mexer com os mortos que estão enterrados ali.

Nazaretha era conhecida antigamente como Planície das Lamentações, pois servia de cemitério para as vítimas da peste na região. Depois vieram guerras e os mortos foram muitos. Ali estão enterrados os parentes dela e de todos. A nós, essa mulher parece um cruzamento das personagens de Sônia Braga em Aquarius Bacurau, acrescidas de uma camada espiritual. Ela personifica a ligação dos aldeões com a terra.

O diretor Lemohang Jeremiah Mosese nasceu no Lesoto e vive em Berlim desde 2012. Foi poeta e desenhista antes de entrar para o cinema. Diz-se influenciado por A Paixão de Joana d’Arc, de Dreyer. A veterana atriz sul-africana Mary Twala Mhlongo (1939-2020) impressiona com uma performance hierática que lembra algum totem de arte africana. Seus traços duros e marcantes são frequentemente constrastados com fundos de cores fortes (como o azul das paredes e do cortinado de sua casa) ou com as luzes alaranjadas que iluminam os interiores.

As belas paisagens do Lesoto estão sempre presentes, muitas vezes com o céu ocupando a maior parte da tela – o que entendi como um indicativo da prevalência do mundo espiritual sobre o terreno. A trilha atonal do japonês Yu Miyashita ajuda a deslocar o filme de um modelo de dramaturgia tradicional para um campo de relações mais alusivas, sem causas e efeitos muito claros. É bom, portanto, desapegar-se de exigências mais convencionais e deixar-se levar pelo relato fragmentado que parece vir das liberdades da tradição oral.

A produção de Isso Não é um Enterro, é uma Ressurreição (This Is Not a Burial, It’s a Resurrection) teve incentivos determinantes da Bienal de Veneza e do Festival de Roterdã. No de Sundance ganhou um prêmio especial de Visionary Fimmmaking, além de outros de melhor filme e melhor atriz em diversos festivais inernacionais.

>> Isso não é um Enterro, é uma Ressurreição está na plataforma Cinema Virtual

https://www.youtube.com/embed/eLbl8XhpmdQ


PRESÉPIOS E LAPINHAS: CONHEÇA A TRADIÇÃO QUE FORMA O CATOLICISMO POPULAR EM MINAS GERAIS

Dezembro 24, 2021
  1. MOSAICO CULTURAL

NATAL

Confecção de presépios atravessa gerações e está presente em mais de 700 cidades mineiras

Pedro Stropasolas24 de Dezembro de 2021.

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Tradição de confeccionar presépios e lapinhas atravessa gerações em Minas Gerais – Iepha-MG/Divulgação

Nunca fica igual de um ano para o outro. A gente quer sempre montar diferente

Minas Gerais: um estado que guarda com afeição as manifestações que formam o catolicismo popular. A confecção dos presépios é uma destas tradições que se perpetua ao longo de séculos nos municípios mineiros. 

José, Maria, os três reis magos, a estrela, os animais. No período natalino, as representações de devoção ao menino Jesus tomam as calçadas, varandas, o interior e o entorno das igrejas.

“Isso acontece desde Belo Horizonte, que tem diversos presépios, inclusive o do Pipiripau, que é um bem tombado a nível estadual e é um dos maiores presépios do mundo, até cidades do porte de Serra da Saudade, que é o menor município do país em número de habitantes. Tem pouco mais de 800 habitantes”, explica a gestora de patrimônio cultural Simone Ramos.

Hoje, mais de 700 cidades de Minas têm presépios públicos em seus espaços.  A população cadastra suas obras através do envio de fotos ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). O registro gera um roteiro de visitações.  

Conheça ainda: Jogar versos: tradição do Vale do Jequitinhonha gera renda para as mulheres

No município de Lavras, há mais de 40 anos Clarice Maria Pacheco Gomes monta o presépio na Matriz de Santana. “Nunca fica igual de um ano para o outro. A gente quer sempre montar diferente. E sempre fica diferente”, conta a funcionária pública.


Presépios também ocupam os espaços externos das igrejas / Iepha-MG/Divulgação

Na confecção, as artesãs e artesãos produzem os exemplares com uma ampla diversidade de materiais, inclusive naturais. É o caso das figuras antropomórficas em barro das famílias do Vale do Jequitinhonha, na região noroeste. Descendo o estado, em direção a São Paulo, já se encontram outros estilos, como os luminotécnicos. 

É uma manifestação muito musical, muito teatralizada 

“Tem cidades que constroem presépios em praças, em igrejas, mas também tem aqueles presépios mais simples, que são construídos nas casas, com diversos tipos de materiais, e eu acho que é nisso que está a beleza dos presépios e das lapinhas em Minas Gerais”, explica Ana Paula Beloni, gerente do Iepha-MG.

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Toda essa iniciativa de cadastro dos presépios teve início a partir do registro das Folias de Minas como patrimônio cultural imaterial do estado, em 2017. As folias saem em cortejo visitando os presépios no período natalino. O Iepha-MG mapeou mais de 1.800 grupos em atividade no estado de Minas. 

“São manifestações em movimento que saem de casa em casa, as folias de reis vão visitando presépios, e pagando promessas na casa de devotos. É uma manifestação muito musical, muito teatralizada. Geralmente, as manifestações ligadas a natividade elas têm esse caráter de serem performativas”, conclui Beloni.

Edição: Douglas Matos

COMO A RESISTÊNCIA NO HAVAÍ REVIVEU UMA CULTURA À BEIRA DA EXTINÇÃO PROMOVIDA PELOS EUA

Dezembro 23, 2021

COLONIZAÇÃO

Estados Unidos proibiram idioma local de ser falado em público, mas essa língua quase extinta sobreviveu

Eloá OrazemBrasil de Fato | Kauai (Havaí) | 23 de Dezembro de 2021.

Povos nativos do Havaí encontraram diversas formas para lutar contra o desaparecimento – Reprodução – Reprodução

O ativista e autor jamaicano Marcus Garvey acertou em cheio quando escreveu que “um povo sem conhecimento de sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”. A colonização é, portanto, o desmatamento de toda uma população – um processo cruel, que quase extinguiu povos como o do Havaí.

Ao longo dos anos, o pequeno arquipélago banhado pelo Oceano Pacífico foi explorado política, geográfica e economicamente por diferentes grupo de colonizadores, mas os Estados Unidos são seu maior algoz.

O primeiro registro de um estrangeiro a pisar em terras havaianas foi do capitão britânico James Cook, em 1778.

A chegada dos colonos deixou muitas ruínas entre a população local. Historiadores acreditam que quase 700 mil pessoas viviam no Havaí antes de as primeiras embarcações europeias chegarem trazendo guerras e doenças, o que levou à eliminação de quase 90% da população local em menos de cem anos. 

Quando os EUA assumem o controle do território, os povos originários naqueles momento eram compostos por menos de 9 mil indivíduos. Ou seja, haviam experimentado um genocídio. 

No final do século 19, com a presença norte-americana, as ilhas do Havaí sentiram outro golpe duro: a proibição de sua língua em espaços públicos.

Nesse momento, os EUA deram um golpe que destituiu a última monarca havaiana, em 1898, para anexar o arquipélago e fortalecer seus interesses

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Ou seja, não bastasse seu número extremamente reduzido, os donos da terra do Havaí foram proibidos de falar em público a língua havaiana, que é exclusivamente oral.

“Nossas tradições e aprendizados sempre foram passadas de geração a geração por cantos e contos porque a escrita havaiana é uma invenção europeia”, explica ao Brasil de Fato o diretor executivo do Museu de Kauai, Chuck Boy Chock. “Quando nos proibiram de falar a nossa língua, toda a nossa cultura morreu junto – ou pelo menos era essa a intenção”. 

De fato, quando o Havaí se tornou o quinquagésimo e último estado dos Estados Unidos, a língua havaiana estava praticamente extinta. Algumas famílias mantinham, a portas fechadas, o hábito de falar sua língua. A organização dessas famílias, junto com um levante do nacionalismo havaiano, fez frente às imposições estadunidenses.

Por anos, os nativos tentaram aprovar junto ao Departamento de Educação a inclusão do idioma havaiano como língua opcional nas escolas locais. Sem a aprovação federal, a população criou suas próprias escolas independentes, com o único objetivo de ensinar o idioma havaiano. 

O projeto foi tão bem sucedido que o governo não pôde ficar indiferente. Em 1970, a língua havaiana passou a ser reconhecida como idioma oficial, junto com o inglês. Na prática, o inglês é a segunda língua: “as crianças aprendem o nosso idioma dos 3 aos 6 anos, e só então são ensinadas o inglês. Nessa primeira infância, porém, é só havaiano”, diz Chucky. 

Num efeito dominó, o resgate da língua trouxe à tona outros fragmentos da história local. O Museu de Kauai, por exemplo, redescobriu técnicas de construção do período pré-colonial e também reviveu algumas de suas crenças, como a agora mundialmente famosa Hoʻoponopono, uma prática de reconciliação e perdão.

“Essa força está no nosso DNA, é do que somos feitos. Difícil explicar para quem não conhece o Havaí ou a nossa cultura”, continua Chucky, “mas estamos sempre de braços abertos para receber a todos – é o nosso aloha”. 

A palavra usada à exaustão como um simples cumprimento, um mero “olá”, na verdade é mais profundo que isso. Aloha é amor; é respeito. “E não apenas com as pessoas, mas com a terra. Para o povo havaiano, a conexão com a natureza é sagrada”, explica o diretor do museu. 

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Essa luta pacífica do povo havaiano pela soberania de sua cultura é talvez um dos maiores atrativos da região, que junto a suas praias paradisíacas atraem milhões de turistas todos os anos.

Só a pequena ilha de Kauai, que conta menos de 73 mil habitantes, recebe, em média, 30 mil visitantes por dia – e a tendência é que esse volume cresça.

Hoje, a população das ilhas do Havaí soma 1,4 milhão de pessoas, sendo que desse total, de acordo com os dados mais recentes, 690 mil se declararam descendentes dos povos originários.  

Os havaianos veem com entusiasmo e apreensão o assédio dos turistas. Por um lado, gostam de compartilhar suas belezas e ensinamentos, mas lamentam que nem todos os visitantes sejam cuidadosos com o meio ambiente e as tradições locais, e que o dinheiro empurre para longe aqueles que são, de fato, donos da terra. 

Edição: Arturo Hartmann

ESCRITOR GAÚCHO, JOSÉ FALERO: “DE ONDE VENHO NADA É SOZINHO, TUDO É SEMPRE COLETIVO”

Dezembro 22, 2021
  1. CULTURA

ENTREVISTA

Aos 34 anos, escritor gaúcho é autor dos livros Vila Sapo, Os Supridores e Mas em que mundo tu vive?

Katia Marko e Fabiana ReinholzBrasil de Fato | Porto Alegre (RS) | 22 de Dezembro de 2021.

“Essa soma de força, essa coletividade, é o que faz com que as coisas aconteçam pra alguém que vem de onde eu vim” – Foto: Fabiana Reinholz

“Mais do que um ponto geográfico específico num mapa, é um lugar existencial, onde existimos da forma como existimos, e isso acontece em diversos lugares ao mesmo tempo”, escreveu José Falero, sobre a periferia, em seu recente livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?

Trabalhando em seu próximo romance, com título provisório Quase Homem, em que abordará a masculinidade tóxica, de como são forjadas as masculinidades, e o aprofundamento do protagonismo das mulheres, Falero, recentemente homenageado na 35ª Feira do Livro de São Leopoldo, conversou com o Brasil de Fato RS

Finalista do 63º Prêmio Jabuti, troféu que seu amigo Jeferson Tenório ganhou, o escritor foi agraciado em novembro deste ano com o prêmio AGES Livro do Ano 2021, na categoria narrativa longa, e também com o Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 120 Anos, ambos pelo livro Os Supridores, obra que levou uma década até conseguir ser publicado e que já vendeu mais de cinco mil cópias até o momento, com traduções para outros idiomas. 

Ao falar sobre ter sido homenageado na Feira, Falero ressalta que ela não vem só para si, mas para toda uma comunidade. “Eu venho desse lugar que as coisas se não são coletivo elas não são, não tem individualismo, não rola, é muito difícil (…) “Não dá para centralizar as coisas em mim. É uma homenagem para uma comunidade, para toda uma galera, para uma família, para um povo, para uma nação”, afirma. 

Mesmo com o sucesso, o escritor mantém os pés no chão, destacando sempre do lugar de onde veio e está, o bairro Lomba do Pinheiro, um dos mais populosos e pobres de Porto Alegre. Na entrevista, Falero fala dos seus livros, como eles mudaram sua vida, sobre racismo, a questão da masculinidade tóxica entre outros. “A gente tem um papel a cumprir, no sentido de se desconstruir e desconstruir o seu privilégio e entender que as situações são injustas, que os contextos são injustos quando tu olha nessa perspectiva de gênero”, pontua. 


“Foi bastante tempo tentando publicar e não rolava, ninguém me respondia. E é o mesmo livro que agora está sendo reconhecido” / Foto: Fabiana Reinholz

Abaixo a entrevista completa 

Brasil de Fato RS: Eu queria começar sobre essa visibilidade, todo esse reconhecimento que teu trabalho está tendo.

José Falero: Tu sabe que esses dias eu vi uma frase que atribuíram ao Abujamra, só que não era dele, depois eu vou pesquisar, era de um intelectual estrangeiro, esqueci o nome agora, mas mesmo que eu soubesse eu não ia me atrever a pronunciar, porque era um nome esquisito. Essa frase dizia assim, que o sucesso e o fracasso eram a mesma coisa para um artista, porque os dois são impostores. E quando eu vi essa frase, eu pensei que ela descreve, nomeia um sentimento que eu tinha e que eu não conseguia nomear por mim mesmo. 

Muito bom quando acontece isso, quando alguém chega e tem uma expressão perfeita. E eu acredito muito nisso, eu tive muitos fracassos na vida, muitos, muitos mesmo. E se eu acreditasse neles como verdadeiros eu estava fodido. O próprio Supridores eu tentei publicar por muitos anos, e nunca ninguém achou minimamente bom pra publicar, na verdade eles não acharam nem que era digno de uma resposta. E então nunca ninguém respondeu pra mim. 

Quantos anos?

Não sei, quase 10 anos. Foi bastante tempo tentando publicar e não rolava, ninguém me respondia. E é o mesmo livro que agora está sendo reconhecido. Então tu vê, se eu tivesse acreditado naquele fracasso como verdadeiro, era para eu parar de escrever, não tentar mais nada. Mas eu tinha consciência que aquilo ali não era verdade. Só que da mesma forma que aquele fracasso não era verdadeiro, esse sucesso, essa visibilidade, esse reconhecimento também não é verdadeiro, também é um impostor. 

Assim como o meu livro foi negligenciado, nesse exato momento tem muita obra foda que está sendo negligenciada por aí, provavelmente livros muito melhores que os meus, então eu tento sempre manter o pé no chão, pensando nesse sentido assim, fracasso, se ele é um impostor, o sucesso também é. Enfim, é assim que eu tenho tentado encarar as coisas, claro que a gente fica feliz, porque afinal de contas tem toda uma dedicação ali, tem um gasto de energia e de tempo, eu levo muito a sério a minha produção, mas eu tento manter o pé no chão a esse respeito. 

Eu lembro que quando fizemos uma entrevista contigo no início do ano, tu falou que ter um livro escrito não significava que os perrengues tinham acabado. Como é que está hoje a situação, esse reconhecimento, essa visibilidade tem se transformado também em um reconhecimento financeiro? 

Um pouco. Nem é tão recente isso, acho que desde o ano passado está rolando esse reconhecimento financeiro. Eu tenho trabalhado só com a literatura, com as coisas que eu produzo e também com as coisas que tem relação com isso, por quê? Por causa dos livros me chamam para conversa mediada, ou pra palestrar em algum lugar, ou oficina de escrita, então eu vou muito em universidades. 

E aí como Os Supridores, por exemplo, é um livro que dialoga com muitos segmentos da sociedade, então eu acabo indo pra muitos lugares e isso tudo é remunerado. Eu conversei já com juízes, porque é uma história que dialoga com todo o sistema penal, eu conversei com professores universitários do Nordeste, onde tem o maior acervo histórico de registro dos processos trabalhistas. Supridores dialoga também com o universo do trabalho, então eu tenho sido chamado pra muitas coisas que acaba remunerando. Somando tudo isso, eu consigo viver, não de maneira confortável, mas de maneira digna, e sem precisar me dedicar a outra coisa, me dedicando só a isso. 

Só que tem um problema, um dia eu estava conversando com um amigo meu que é escritor também, e aí ele ganha dinheiro também escrevendo, e a gente chegou a algumas conclusões interessantes quando a gente pensa nesse perfil histórico do escritor no Brasil, as pessoas que historicamente publicaram no Brasil. E aí tem aquela célebre pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UNB. Tu vê que é branco, são homens, são classe média que publicam historicamente no Brasil, e esse histórico se reflete até nos personagens. 

É muito diferente quando o dinheiro entra para uma pessoa que tem a mesma origem social que eu, é que nem diz o Racionais, se o dinheiro constar eu não gasto sozinho, nunca é sozinho

Então quando esse perfil de pessoas publica, o mínimo dinheiro que entra é uma coisa, para nós é outra. Porque esse cara, quando ele publica, a primeira coisa na vida dele, ele já tem um apartamento, ele já tem uma casa, ele já tem um carro, ele nem precisa se preocupar com os pais dele porque são aposentados com bons empregos, com bons salários, os irmãos também, toda a família, todo o entorno dele já está bem estabelecido. E o dinheiro mínimo que entra ali pra ele, ele sei lá, guarda. 

Mas é outra coisa para nós quando o dinheiro começa a entrar. Para mim é ‘foda’, porque, tipo, eu tenho os dentes estragados, que eu nunca pude tratar a vida toda, ai agora eu quero tratar os dentes. Aí eu começo fazer terapia porque eu vivi um monte de coisa traumática na minha vida, e nunca pude tratar disso, então começo a fazer terapia. Só que aí eu quero tratar os dentes da minha mãe também, quero terapia para minha mãe. Aí a minha casa está caindo encima de mim. Tem uma série de demandas acumuladas ao longo de toda uma vida, na verdade mais de uma vida, mais de uma geração. E ao mesmo tempo tem toda uma galera ali do meu círculo afetivo, às vezes precisa disso, às vezes precisa de uma assistência aqui, ali, é um primo, é uma tia, e o cara vai contribuindo. Então é muito diferente quando o dinheiro entra para uma pessoa que tem a mesma origem social que eu, é que nem diz o Racionais, se o dinheiro constar eu não gasto sozinho, nunca é sozinho. 

Interessante essa análise. E como é que reverbera isso lá na Lomba do Pinheiro, a questão do teu livro entre os jovens, a galera leu o teu livro? Não só Os Supridores como Vila Sapo também? 

Sim. O Vila Sapo foi outro lance, foi outro contexto. Porque era um livro independente, era uma editora pequena, eu tinha que fazer o corre, eu tinha que botar os livros na mochila e ir atrás das pessoas, era muito mais contato com as pessoas. Ele chegou em muito mais gente das periferias e da minha periferia em particular, meus conhecidos, meus camaradas, justamente porque o movimento era eu. E aí beleza, eu tive esse retorno, foi muito foda, o pessoal pegou o espírito. Eu me lembro de um camarada meu que leu. Na verdade isso aconteceu com algumas pessoas, com bastante gente, de pessoas que não tinham o hábito da leitura, não gostavam de livros, e pegaram um. ‘Bom, porque foi o plok’, eles me chamam de plok, ‘foi o plok que fez, vamos ver qual é que é, o que que ele tá falando aqui’. E aí acabaram lendo até o fim, não porque é bom, não é porque tem uma virtude ali que seja minha de escritor. Mas é porque é uma linguagem que é nossa, não é uma virtude minha, é uma virtude coletiva daquele lugar. E isso contribui para que eles vão até o fim. Eles falavam, o primeiro livro que eu leio inteiro e tal. 

Teve um camarada meu, eu nunca vou esquecer disso, ele disse, quando acabou de ler: ‘Isso aqui qualquer um de nós podia ter feito também. Eu sei falar assim, eu sei que essas coisas acontecem’. E eu, ‘velho, é esse o espírito, é isso aí, qualquer um de vocês podia ter feito’. Exatamente disso que se trata, entendeu? 

Só que Os Supridores, por exemplo, já foi outro contexto, é uma editora grande, eu não cuido da distribuição, não é eu que decido em que pessoas ele vai parar. Mesmo assim, as pessoas vem falar comigo que leram o meu livro e tal, e são pessoas da periferia de grandes centros urbanos, São Paulo, Rio de Janeiro, de vários lugares. É muito legal esse retorno, mas é menos próximo. E mesmo as pessoas da minha periferia, em particular, que conseguiram o livro, conseguiram a revelia de mim, eu nem ficava sabendo, e às vezes a gente só trocava algumas palavras. Então não foi tão próximo como foi a relação com Vila Sapo


“Não quero romantizar a periferia, é claro que tu vai encontrar gente egoísta, individualista lá, mas proporcionalmente é o lugar onde tu mais vai encontrar pessoas solidárias” / Foto: Fabiana Reinholz

Eu assisti o teu encontro com Sérgio Vaz, no Theatro São Pedro, e achei muito emblemático aquele momento. Dois escritores, poetas, que vem da periferia, que tem um trabalho, que trás essa visão das favelas, enfim, naquele espaço, que é um espaço da burguesia. E falando as coisas que vocês falaram lá. Eu me emocionei muitas vezes, tocou profundamente. Como foi pra ti esse encontro? 

Eu vou ser bem franco, eu estava muito nervoso, eu vou te dizer que o ambiente não me intimidou tanto. Eu tive, como todo mundo que tem a mesma origem social que eu, tive muita dificuldade em me sentir à vontade naquele tipo de espaço. Foi um processo, era difícil mesmo para mim. Mas eu acho que eu já me sinto a vontade nesses espaços. 

É como eu disse, de onde eu venho nada é sozinho, tudo é sempre coletivo, eu consigo me sentir a vontade porque tem outras pessoas ali também, entendeu? Tem pessoas negras ali também, tem pessoas da periferia ali que me ajudam a me sentir a vontade, tem toda uma galera que começou esse processo de ocupação antes de mim. Então eu chego ali, tenho um mínimo acolhimento por causa dessas pessoas. E sobretudo naquele dia, que tu viu o perfil das pessoas que estavam lá. Eu queria ver alguém que pensa que Porto Alegre só tem branco, visse aquilo lá, o Theatro São Pedro cheio de pretos, cheio de gente da periferia. Então o ambiente não me intimidou. 

Mas o Sérgio Vaz sim, porque ele é uma figura nacional, uma figura gigante, uma referência pra todos nós. E além disso teve uma outra coisa que eu fiquei pensando, que é o seguinte. Quando eu entrei ali, eu tinha ido no outro, o dia que estava o Xico Sá, e na vez que eu fui estava mais cheio. Eu achei isso muito significativo, justamente pelos assuntos que a gente ia tratar ali, e o perfil das pessoas que estavam ali, e aí isso também me intimidou. 

É uma coisa que já vem tarde, há muito tempo que a gente devia estar ocupando esses espaços todos

Foi uma responsa, porque eu fiquei olhando aquelas pessoas ali e pensei: Essas pessoas merecem que corra tudo bem, que tenha um evento bonito. Porque, geralmente, quando eu vou participar eu tenho, até pra relaxar, eu penso assim: Eu vou tentar ir bem, vou tentar puxar boas conversas, falar boas coisas, porque às vezes não ocorre. Isso é uma das coisas que me leva a escrever inclusive. Porque a escrita tem o tempo todo pra ficar pensando até achar a melhor forma de falar. Mas falando assim, espontaneamente, para mim é difícil, eu nunca acho a melhor coisa para dizer. 

E aí eu penso sempre assim, como forma de relaxar: Bom, eu vou tentar fazer o melhor que eu posso, se não ir tão bem paciência. Mas aquele dia era muito importante que as coisas fossem bem, era muito importante para mim que aquelas pessoas ali pudessem compartilhar com a gente assuntos que são da nossa pertinência. Então tudo isso me deixou muito nervoso, mas acho que foi tudo bem. Na verdade eu não tenho como ter certeza se foi tudo bem, algumas pessoas que estavam lá disseram que foi legal e tal. Mas eu não consigo nem ter noção de tão nervoso que eu estava. 

É uma coisa que já vem tarde, há muito tempo que a gente devia estar ocupando esses espaços todos. 

Eu queria que tu nos falasse o significado de ser homenageado na Feira do Livro de São Leopoldo.

Eu fiquei emocionado, fiquei feliz. Aí é que tá, eu fico frequentemente sem palavras, não é difícil eu ficar sem palavras, e aí com uma homenagem desse tamanho eu não consigo nem achar as melhores palavras para expressar o que eu tô sentindo. Mas uma coisa que me ocorre muito é o seguinte: Eu sempre bato nessa tecla, acabei de bater e vou bater de novo. Eu venho desse lugar que as coisas se não são coletivo elas não são, não tem individualismo, não rola, é muito difícil. 

Tem um verso do Serginho Meriti, que fala sobre isso. Ele diz, se ninguém der a mão a gente fica a pé. É de lá que eu venho. E aí eu acho que esse lugar de onde eu venho as pessoas têm uma tendência para coletividade, para solidariedade, para empatia. 

É claro que eu não quero romantizar a periferia, é claro que tu vai encontrar gente egoísta, individualista lá, mas proporcionalmente é o lugar onde tu mais vai encontrar pessoas solidárias, pessoas que exercitam a empatia, justamente por essa necessidade de se ajudar. Preciso ajudar o cara hoje porque ele me apoiou outro dia, as pessoas não esquecem isso aí. As pessoas estão sempre se apoiando, e as coisas se constroem de maneira coletiva. Então quando uma coisa também se concretiza na vida de alguém lá, isso é uma coisa coletiva, nunca é para um só. Para isso se concretizar teve uma série de gente que somou no rolê, entendeu? 

Eu poderia citar inúmeros nomes aqui de pessoas que me apoiaram lá atrás, desde os meus primos lendo os meus textos quando eu nem publicava, desde a minha mãe me apoiando, minha irmã, minha namorada, a Carine Bace que publicou o meu livro a primeira vez. O próprio Jefferson Tenório, que deu a maior força, divulgou o trabalho. Uma galera, o mano Cascata, que chamou lá pro sarau na Feira do Livro. 

Essa soma de força, essa coletividade, é o que faz com que as coisas aconteçam pra alguém que vem de onde eu vim, e isso tem um significado importante, porque no fim das contas essa homenagem acaba não sendo para mim, acaba sendo uma homenagem para uma galera toda. E eu gosto de ter isso muito claro na cabeça, que não dá pra centralizar as coisas em mim. É uma homenagem para uma comunidade, para toda uma galera, pra uma família, para um povo, para uma nação. 

Tem uma outra coisa que eu fico pensando que é o seguinte, no valor simbólico disso. Eu me lembro que quando eu comecei a escrever, e aí descobriram que eu escrevia, eu virei motivo de chacota no meio dos meus parceiros, eu sempre conto essa história. Quando eu trabalhava na obra, eles tiravam sarro de mim, ‘ah, oh escritor, alcança o martelo lá escritor’. E eu não critico eles, porque a gente não tinha referência. 

Essa soma de força, essa coletividade, é o que faz com que as coisas aconteçam pra alguém que vem de onde eu vim, e isso tem um significado importante

As coisas estão melhorando agora, tem uma pá de gente da periferia produzindo e tal. Mas a verdade é que eu cresci sem conhecer um escritor na minha vida, sem conhecer nada relacionado a cultura. O que eu conhecia era os ‘mano’ correndo atrás do caminhão do lixo, virando concreto no sol do meio dia. A minha mãe, minhas tias, as mais velhas, tudo faxineiras, porteiros. Isso aí era minha realidade, então eu compreendo eles, eu não julgo. Mas acontece que quando essa galera da periferia, esse movimento todo que vem da periferia começa a chegar nos espaços, quando isso acontece, quando acontece uma homenagem que nem essa que está acontecendo aqui em São Leopoldo, talvez agora numa obra alguém, queira escrever, e aí não vai ser motivo de chacota mais. Então tem um valor simbólico isso. 

Qual o teu próximo livro, já está em vista, está pensando em um projeto novo? 

Estou trabalhando no próximo romance que eu quero publicar no final do ano que vem. Inclusive estou meio atrasado, porque eu tenho tido muitos compromissos, tem sido raros os momentos que eu consigo sentar pra escrever. Mas estou trabalhando nele, a ideia é ser um romance de fôlego. Ele tem um nome provisório que é Quase Homem, e a ideia é ser um romance com mais de 600 páginas, um livro grosso. E eu quero abordar algumas coisas. Duas coisas tem a ver com os marcadores de gênero na sociedade, quero trabalhar a masculinidade tóxica, trabalhar como são forjadas as masculinidades das pessoas. E quero aprofundar também a presença das mulheres nos meus textos, que sempre apareceram de maneira secundária e de maneira muito pouco aprofundada nas coisas que eu escrevi. Quero trazer uma subjetividade mais profunda, mais complexa dos personagens femininos nesse novo trabalho, essa é a ideia. 

Ele vai se ambientar na Lomba do Pinheiro, Vila Sapo, Porto Alegre. É lá, de onde eu olho pro mundo, é dali que eu vi tudo acontecer. 


” Há muito tempo que a gente devia estar ocupando esses espaços todos” / Foto: Fabiana Reinholz

Tu acha que o homem está numa encruzilhada? 

Em que sentido?

Todo esse debate da masculinidade tóxica, do feminismo, enfim, que de alguma forma tem colocado o homem numa situação de como lidar com isso, essa nova mulher. E aí tu vê a reação que vem, por exemplo, dessa extrema-direita, do conservadorismo, contra o feminismo e contra as mulheres independentes. Parece que tem uma parcela de homens que ainda não sabe muito como lidar dentro desse novo universo. 

Eu acho que todas essas questões são bastante contemporâneas, são muito recentes inclusive, felizmente dá pra tu traçar um paralelo entre esses marcadores sociais. Isso é muito legal, isso foi inclusive o que me levou a querer escrever esse livro, por quê? Porque tudo que tu pensa para as relações étnico-raciais, por exemplo, serve para as relações de gênero. 

Vou dar um exemplo: quando eu vejo a galera branca da academia, principalmente, mas não só, apropriando-se das coisas que são produzidas pela galera preta da periferia, isso me dá um embrulho no estômago. Eu fico olhando e pensando, esses caras querem falar de candomblé, esses caras querem falar de samba, querem falar de rap? Vai falar de branquitude, vai refletir sobre esses poderes, esses espaços de poder que são perpetuados sempre na mão dessa gente, refletir sobre esses privilégios, sobre esses acessos, que são perpetuados sempre só pra eles, refletir sobre eles, sobre seu lugar de privilégio. É o que eu penso. Só que isso serve também para as relações de gênero, entendeu? 

Ao invés de apontar o dedo pra lá, eu apontar o dedo para cá. De pensar como são forjadas essas masculinidades problemáticas, como se forja essa subjetividade masculina e que na maior parte das vezes é preconceituosa

A coisa mais útil que um homem pode fazer diante disso é assumir um lugar de escuta. Só que perceba, uma escuta atenta, honesta, de coração aberto, e de tentar entender esse processo todo. Só que, veja que interessante, a gente vive um momento agora que tudo é muito perigoso. Qualquer pessoa percebe essa animosidade que tem, quase dá para pegar no ar, qualquer coisa é um problema. 

Tu vê que o que eu acabei de falar é problemático, inclusive, porque isso sugere que o homem não tem nada a fazer. Não, a gente tem um papel a fazer, no sentido de se desconstruir e desconstruir o nosso privilégio e entender que as situações são injustas, que os contextos são injustos quando tu olha nessa perspectiva de gênero. A gente tem trabalho a fazer. Mas o que eu acho que é mais útil é tentar entender, é a escuta, e não o lugar de protagonismo, o lugar de fala, é o lugar de escuta mesmo, e isso é difícil de exercitar. 

Então a mesma coisa que eu estava falando em relação aos brancos, serve para nós, e aí esse livro é sobre todo esse exercício, de eu ao invés de apontar o dedo pra lá, eu apontar o dedo para cá. De pensar como são forjadas essas masculinidades problemáticas, como se forja essa subjetividade masculina e que na maior parte das vezes é preconceituosa. Mesmo que a pessoa não se dê conta que essa subjetividade máscula, enfim, essa masculinidade é tóxica. Mas ela é, e como é que isso se dá ao ponto de a pessoa nem ter consciência de que ela é privilegiada por esse simples fato. Eu quero refletir sobre isso, porque é o que eu esperava que os brancos fizessem também quando eu trouxe esse paralelo entre a questão de gênero e a questão étnico-racial. 

Eu fiz uma live esse ano, e estava uma representante dos quilombos, uma mulher, negra. E aí a gente falando sobre a questão do machismo e da violência contra a mulher. Ela trouxe uma questão que eu nunca tinha refletido sobre isso: o problema é que quem está indo preso são os homens negros da periferia. 

Sim, mas aí é que tá, esse aspecto, ele só mostra o seguinte: às vezes as pessoas me fazem perguntas dentro do campo literário, no caso aqui a gente está conversando do âmbito mais sociológico. Mas dentro do âmbito literário as pessoas me fazem perguntas que tipo eu não tenho como responder dentro daquilo, porque é uma coisa maior, é uma coisa macro que aparece ali também por acaso. 

Agora também está acontecendo isso. Veja, a gente está falando sobre essa desproporção de como o Estado age em relação aos homens negros, como ele age em relação aos homens brancos. Mas acontece é que, sim isso acontece, quem vai preso são.., inclusive isso causa até a falsa impressão, que ajuda inclusive a desumanizar esses homens negros da periferia, que causa essa impressão de que eles é que são violentos com as mulheres. É a periferia e os homens negros que são violentos com as mulheres. Não, é que eles vão presos, essa é a questão, entendeu? 

O cara branco, lá de classe média não vai, ele bate na mulher e fica por isso mesmo. Só que isso só reflete uma coisa, que se apresenta em todos os outros segmentos sociais que tu puder imaginar, tem dados recentes, por exemplo do IBGE. Fizeram uma pesquisa encima desses dados, que vai mostrar que chegou a morrer 8 vezes mais, entre os idosos, mais gente preta na pandemia do que gente branca

A pandemia, que é uma coisa que chega teoricamente, vamos dizer assim, na falta de palavra melhor, uma epidemia democrática, vai pegar todo mundo, não vai escolher ninguém, quem morre é os preto, é sempre assim. Também na área da saúde tu vai ver isso, na área de segurança pública tu vai ver isso, quando tu começa a comparar a renda das pessoas tu vai ver isso. Velho, isso já foi visto em todos os status sociais que tu puder pensar. Tem uma pesquisa que mostra o seguinte, que é só com moradores de rua, que os brancos ganham 3 vezes mais dinheiro de esmola que os pretos. Então até uma pessoa em situação de rua, ela é privilegiada se ela for branca, isso se reflete em todos os aspectos sociais.

Uma vez o Brown estava dizendo, acho que foi no podcast dele, ele disse: velho, quando tu pensa o racismo estrutural, o que que é isso, é isso cara, é a própria sociedade, tira o racismo desmancha, cai tudo, ela está estruturada nisso, e tu vai observar isso em todos os aspectos possíveis. 


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko