Archive for Julho, 2023

COM O TEMA ‘ALÔ HARMONIA’, FESTIVAL UNIMÚSICA CELEBRA A CULTURA DO SAMBA E O CARNAVAL

Julho 31, 2023
  1. CULTURA

CULTURA

A programação ocorre entre os dias 3 e 18 de agosto; ingressos já estão disponíveis

Clara Aguiar

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

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A edição abre alas para a comunidade do samba e aposta nas diversas contribuições que os saberes do carnaval têm a oferecer à sociedade – Foto: Maciel Goelzer

Com apresentações da Velha Guarda Musical da Mangueira, Afro-Sul Odomodê, Bambas da Orgia e Imperadores do Samba, o Unimúsica 2023 apresenta “Alô, harmonia!”. A edição deste ano é dedicada aos mestres do Carnaval e busca debater as contribuições da festa popular para a sociedade brasileira. A programação ocorre entre os dias 3 e 18 de agosto, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com shows, oficinas, seminários e rodas de conversas. 

O título escolhido para esta edição faz referência ao clássico bordão do intérprete Carlos Medina (1947-2011), “alô, harmonia!”. De acordo com os organizadores, o desejo do projeto é valorizar a memória viva do Carnaval, em especial o de Porto Alegre. A equipe curatorial do Unimúsica deste ano é formada pela percussionista Alexsandra Amaral, a jornalista Ana Laura Freitas, a etnomusicóloga Luciana Prass, o carnavalesco e figurinista Luiz Augusto Lacerda e o ator e diretor Thiago Pirajira.

Na quinta-feira (17), às 20h, o palco do Salão de Atos da Ufrgs receberá a tradicional e mais premiada escola do carnaval de Porto Alegre: a Imperadores do Samba. Para Luana Costa, primeira mulher a ocupar a presidência da Imperadores, é fundamental que espaços como universidades valorizem a história do Carnaval.

“A gente adentrar um espaço como uma universidade federal, atingir um outro público que não é tão carnavalesco, nos deixa muito felizes. Poder estar levando a nossa cultura e representando bem o nosso legado carnavalesco. Nós da Imperadores nos sentimos muito felizes com a participação nesta edição do Unimúsica porque o Carnaval de Porto Alegre tem uma grande contribuição cultural e social, e, muitas vezes, não somos valorizados como merecemos”, comenta Luana. 


Luana Costa é a primeira mulher a presidir a Imperadores do Samba desde a fundação da escola em 1959 / Foto: Mateus Bruxel

A Imperadores do Samba se apresentará ao lado da escola Bambas da Orgia, a mais antiga da capital gaúcha, fundada em 1940. Honrada, Luana faz menção à veterana: “Estamos felizes também em estar com a irmã Bambas da Orgia, com certeza o público carnavalesco se fará presente também para prestigiar as nossas escolas e o belo show que estamos preparando para apresentar”. 

Já na sexta-feira (18), também às 20h, o espetáculo “Aos Mestres, com carinho” presta homenagem a personalidades marcantes da história do Carnaval de Porto Alegre, como os intérpretes do samba Claudio Barulho, Maria Helena Montier, Onira Pereira, Nilton Pereira e Wilson Ney. 

Toda a programação do Unimúsica 2023: Alô, harmonia! é gratuita. Os ingressos para shows, oficinas e conferências devem ser retirados pelo Sympla, mediante a doação de 1kg de alimento não perecível no dia do evento. Mais informações no site do Departamento de Difusão Cultural da UFRGS.

Programação completa unimúsica 2023: alô, harmonia!

Shows

Velha Guarda Musical da Mangueira 

Dia 3 de agosto, quinta-feira, às 20h – Salão de Atos da Ufrgs (Av. Paulo Gama, 110)

Ingressos gratuitos (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível, a partir de 24 de julho

“Reminiscências”, com Afro-Sul/Odomodê

Dia 4 de agosto, sexta-feira, às 20h – Salão de Atos da Ufrgs (Av. Paulo Gama, 110)

Ingressos gratuitos (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível, a partir de 24 de julho

Bambas da Orgia + Imperadores do Samba

Dia 17 de agosto, quinta-feira, às 20h – Salão de Atos da Ufrgs (Av. Paulo Gama, 110)

Ingressos gratuitos (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível, a partir de 24 de julho

Aos mestres, com carinho

Dia 18 de agosto, sexta-feira, às 20h – Salão de Atos da Ufrgs (Av. Paulo Gama, 110)

Ingressos gratuitos (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível, a partir de 24 de julho

Seminários

Rodas de conversa com representantes do Carnaval de Porto Alegre

“Fôfo” Alessandro Antunes + Vinicius Brito + Edson Vieira + Alexsandra Amaral 

Mediação: Jackson Raymundo

Dia 10 de agosto, quinta-feira, às 10h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333) – Entrada franca

Raquel Nunes + Edy Dutra + Gugu Lacerda + Edyana Deodoro
Mediação: Helena Cattani

Dia 11 de agosto, quinta-feira, às 10h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333) – Entrada franca

Apresentação de trabalhos 

Dias 10 e 11 de agosto, quinta e sexta-feira, às 14h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333) – Entrada franca

Inscreva o resumo de seu trabalho até 31 de julho link para formulário

“Samba e carnaval: encontros e desencontros” – conferência com Nei Lopes
Mediação: Luciana Prass

Dia 10 de agosto, quinta-feira, às 19h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333)

Inscrições gratuitas link para Sympla, mediante doação de 1kg de alimento não perecível

“Uma procissão, vários discursos” – conferência com Milton Cunha
Mediação: Thiago Pirajira

Dia 11 de agosto, sexta-feira, às 19h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333)

Inscrições gratuitas link para Sympla, mediante doação de 1kg de alimento não perecível

Oficinas

Barracão: oficina de adereços carnavalescos com Luiz Augusto Lacerda

Dia 27 de julho, quinta-feira, às 18h – Fundação Médica do Rio Grande do Sul (Rua São Manoel, 638)

Inscrições gratuitas (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível

Bateria do Unimúsica: oficina de percussão com a mestra Alexsandra Amaral 

De 29 de julho a 2 de setembro, aos sábados, das 9h às 12h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333)

Inscrições gratuitas (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível

Encontro com a Velha Guarda Musical da Mangueira: bate-papo + oficina

Mediação: Everton Cardoso 

Dia 3 de agosto, quinta-feira, das 9h às 12h – Centro Cultural da Ufrgs (Rua Eng. Luiz Englert, 333)

Inscrições gratuitas (link para Sympla), mediante doação de 1kg de alimento não perecível

Muamba UFRGS

O programa produzido pela Rádio da Universidade apresenta os seguintes especiais dentro do Unimúsica 2023: 

Documentário “Festa de Batuque”

Dia 3/8, quinta-feira, às 12h10 – transmissão nos AM 1080 e em ufrgs.br/radio

Entrevista com o jornalista Claudio Brito

Dia 5/8, sábado, ao meio-dia – transmissão nos AM 1080 e em ufrgs.br/radio

Para lembrar Carlos Medina

Dia 12/8, sábado, ao meio-dia – transmissão nos AM 1080 e em ufrgs.br/radio

Disponibilização simultânea em ufrgs.br/radio, ufrgs.br/muamba e no Spotify.

*A programação está sujeita a alterações. 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko

VÍDEO DA MARANHENSE, ANASTÁCIA LIA CANTANDO DE JOÃO DO VALE PASSANDO POR JOSIAS SOBRINHO, ENTRE OUTROS E OUTRAS

Julho 30, 2023

ANGELA DAVIS E GINA DENT LAMÇAM LIVRO SOBRE ABOLICIONISMO EM PENITENCIÁRIA DE SALVADOR

Julho 29, 2023

ABOLICIONISMO

As escritoras também participaram do lançamento do livro de poemas produzido pelas mulheres encarceradas

Vânia Dias

Brasil de Fato | Salvador (BA) |

 

Da esquerda para direita: Raquel de Souza, tradutora do livro Abolicionismo. Feminismo. Já, Angela Davis, Gina Dent e Denise Carrascosa – Lis Pedreira

O julho na Bahia é das mulheres negras. Quer seja por neste mês ser celebrado o dia internacional da Mulher Negra Latino Americana e Afro Caribenha e o dia nacional de Tereza de Benguela, quer seja para destacar e valorizar os pensamentos e as narrativas negras que conectam feministas negras pelo mundo. É com esse propósito de ampliar os holofotes e de esquentar o debate sobre o abolicionismo feminista que a Bahia recebeu as ativistas norte-americanas Angela Davis e Gina Dent.

Davis e Dent fizeram parte da programação do Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Elas também movimentaram uma tarde histórica no Complexo Penal da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador. No último dia 11, as escritoras fizeram questão de realizar um lançamento do livro Abolicionismo. Feminismo. Já. para mulheres em condição de cárcere. Na oportunidade, essas mulheres, escritoras de si, também lançaram uma coletânea de poesias intitulada Firminas em Fuga.

O livro traz poemas escritos por elas e organizados pela professora Denise Carrascosa, da UFBA. A publicação é editada pelo selo Corpos Indóceis e Mentes Livres, da editora Ogums Toques Negros, com conselho editorial de mulheres negras, escritoras e artistas.

Denise avalia que a possibilidade de fazer esse lançamento coletivo dentro da penitenciária feminina do estado é fundamental para estabelecer uma conexão transnacional do feminismo negro, promovendo um fortalecimento recíproco da luta. “Isso mostra como nós estamos traçando rotas de fuga que são diferentes no mundo afro-diaspórico, mas que em algum momento se intercruzam e se interseccionam”, diz.

“É extraordinário que a gente possa, inclusive juntas, pensar a partir da experiência de encarceramento, aprendendo com mulheres negras que estão encarceradas. Quais são as suas emoções? Os seus sentimentos, os seus medos, as suas esperanças, os seus desafios, os seus projetos expressados através da arte poética?”, questiona. Denise destaca a relevância histórica desse encontro, ao lançar um olhar humanizado e interessado nas subjetividades de mulheres sobreviventes do sistema prisional.


Complexo Penitenciário Lemos Brito foi palco do lançamento dos livros Feminismo. Abolicionismo. Já e do Firminas em Fuga / Lis Pedreira

Nesse mesmo entendimento de atenção para mulheres anônimas, cujas vozes não são ouvidas, Angela Davis reforça o seu propósito de caminhos e de escolhas. “Nós afirmamos que as nossas afinidades e o nosso compromisso está com aquelas pessoas posicionadas bem na base da pirâmide social. Afirmarmos que o nosso feminismo é um feminismo das mulheres da classe trabalhadora, de mulheres negras, mulheres não brancas que estão envolvidas com o movimento ambientalista. Em outras palavras, não diz respeito a mulheres avançando profissionalmente de forma individual. Diz respeito a mudar a sociedade, criar um mundo melhor para todas as pessoas”, declara Davis.

Pensando na conexão com os tempos, com a ancestralidade, o agora e possibilidades de caminhos futuros, Gina alerta que muitas pessoas que têm se denominado abolicionistas nunca visitaram uma prisão. “Quando você faz isso, você percebe que é necessário aceitar certas normas para que possa desenvolver o seu trabalho. Por isso, nós começamos a trabalhar com esse abolicionismo como algo que é orientado para uma época futura e que é baseado em histórias passadas, principalmente na nossa luta contra a instituição escravocrata. Nós, sempre adotamos a estratégia de vivermos em múltiplas formas de tempo”, declara.

Denise reforça a existência do feminismo negro a partir de um conjunto multidiverso de experiências, de lutas de mulheres negras em prol da construção de vidas em liberdade. “Da compra de cartas de alforria, da construção imaginativa de futuros possíveis para outras gerações. Da construção de ambientes de vida que sejam ambientes de saúde mental física, financeira. Essas várias formas de experimentação de outras existências, destinos, atmosferas são modos incontornáveis e gravados na história através dos quais mulheres negras organizadas se constituíram para sobreviver e existir com dignidade”, afirma Carrascosa ao destacar que esses modos estão vivos e se reinventam todos os dias até a contemporaneidade.

Abolicionismo

Motivada pelo novo momento político do Brasil, em coletiva de imprensa, Angela fez questão de iniciar as suas pontuações destacando a atenção com que acompanha as notícias políticas do país nos últimos anos. Ela destaca que independentemente da grande semelhança que existe entre a situação política do Brasil e dos EUA é importante enfatizar que as pessoas brasileiras impediram a reeleição de Bolsonaro, elegendo um candidato progressista.


Angela Davis ao lado de Denise Carrascosa que assina o prefácio da edição brasileira de Abolicionismo. Feminismo. Já / Lis Pedreira

“Nós nos EUA apesar de termos conseguido expulsar o fascismo da Casa Branca, elegemos uma pessoa que não tem desenvolvido as suas funções da maneira como gostaríamos que estivesse desempenhando. Nós gostamos de perceber o Brasil como um país que deu um passo adiante em comparação com os Estados Unidos”, afirma. Davis segue fazendo essa contextualização para tocar o dedo na ferida social e na relação que ela vê entre o racismo e o sistema de segurança pública do mundo.

“A questão da segurança sempre foi um assunto abordado e priorizado pelos partidos de direita, como uma questão principal na maioria dos países. Nós sabemos que nos Estados Unidos esse chamado pelo saber e pela ordem tem sempre sido um chamado racista e tem sido abraçado tanto por democratas quanto por republicanos”, avalia a ativista.

Gina Dent relembra que estiveram na Bahia em 2017 e, nessa nova passagem por terras baianas, fala da urgência da sociedade se incluir e se pensar diante do tema do encarceramento. “O livro lança luz para as formas alternativas de alcançarmos a justiça na sociedade restabelecendo o equilíbrio e reconhecendo os danos e prejuízos causados, sem investir novamente nesse mesmo sistema que causa tanta dor”, declara.

Dent reforça que mesmo em comunidades não brancas e comunidades negras, geralmente, é difícil abordar essas questões sem esses chamados por melhores formas de segurança porque nós somos aqueles e aquelas que mais sofrem com essas questões. “Para construirmos movimentos que nos compreendam de maneira ampla, essa é a tarefa. Nós temos trabalhado por uma perspectiva global, e é isso que trabalhamos toda vez que viemos ao Brasil, porque precisamos pensar em nossas posturas políticas, de forma compartilhada”, afirma.

Ao refletir sobre os primeiros passos na construção de uma sociedade abolicionista e também para pensar como a sociedade e o sistema de justiça se aliam à criminalização, ao racismo e à violência de gênero, Gina aponta a ideologia punitivista como um dos principais entraves. “O problema é que toda vez que algum tipo de situação ou alguns tipos de violência que nos afetam são cometidos, nós queremos mensurar o sucesso da punição a partir do número de anos de encarceramento”, diz.

Em sintonia com pensamento de Gina, Davis reafirma a necessidade de desconstruir a ideia de justiça vingativa. “O feminismo abolicionista está sempre olhando além, para uma época na qual a justiça não precisa ser uma justiça vingativa, para uma época na qual a justiça seja aquela que venha a promover a harmonia e a saúde. Mas nós estamos convivendo com essa justiça vingativa. Esse é o tipo de justiça que existe em praticamente todos os sistemas judiciários do mundo, no momento. E é essa forma de justiça que a maioria das pessoas tem internalizado e que afeta a emoção das pessoas”, acrescenta Angela Davis.

Dent acredita que é papel do feminismo abolicionista apontar os novos caminhos dessa outra justiça. “Nós precisamos aprender a pensar sobre equidade e igualdade dentro de nossos próprios termos. A tarefa do feminismo abolicionista ou do abolicionismo feminista é pensar sobre isso, restabelecendo uma cultura que é baseada em nossos valores culturais tradicionais e construir de tal maneira que nós não estejamos nos espelhando nos valores culturais da sociedade dominante”, afirma.

Davis acredita que o feminismo abolicionista precisa abraçar essas duas formas de justiça, ainda que pareça contraditório. “Precisa pensar e incorporar essas duas formas de justiça. Essa com a qual estamos convivendo atualmente e aquela que percebemos para uma época futura”, defende.

Ao apontar esses caminhos, as pensadoras concordam que é preciso incluir outras formas de justiça. Justiça alternativa, ou como preferem chamar, justiça transformadora, justiça restauradora. “A solução não pode ser uma solução na qual se cause ainda mais dano a essa pessoa que causou danos. Dessa forma, nós resistimos a participar de uma sociedade que só nos convida a fazer parte dela se participarmos desses processos que causam violência e danos”, reforça Gina.

Davis reforça que precisamos refletir sobre o motivo de acreditarmos no punitivismo como a melhor forma de lidar com os danos. “As pessoas precisam compreender porque sentem essa necessidade de penas mais pesadas, mais longas. E isso não significa que nós não possamos refletir sobre como a justiça deve ser desdobrada. Refletir sobre o porquê existe essa necessidade de punir. Nada vai mudar de maneira fundamental. Nada vai ser modificado em termos do caráter, da característica estrutural. É essa a natureza fundamental de contemplarmos aquilo que parece ser de natureza contraditória. É muito importante pensar e apontar para o futuro”, declara.

Abolicionismo. Feminismo. Já.

O livro Abolicionismo. Feminismo. Já. chega ao Brasil com um apelo urgente por um feminismo interseccional, internacionalista e abolicionista. Amplificado pelos protestos mundiais após o assassinato de George Floyd em 2020 por um policial uniformizado, o abolicionismo tem se amplificado, cada vez mais, no debate político. As demandas pela desmilitarização da polícia e pela suspensão da construção de prisões estão no centro do Black Lives Matter, nos Estados Unidos, e de outros movimentos em toda a diáspora africana.

A publicação mostra que abolicionismo e feminismo estão lado a lado na luta por uma causa comum: o fim do estado carcerário, com seu papel fundamental na perpetuação da violência, tanto pública quanto privada, nas prisões e na casa das pessoas. Lançado pela editora Companhia das Letras, com orelha da socióloga baiana Vilma Reis e prefácio da professora Denise Carrascosa, uma referência no país em crítica literária e na luta anti-encarceramento, o livro tem a tradução da também baiana Raquel de Souza, profissional que há bastante tempo apoia a comunicação com Davis, sendo a sua tradutora no Brasil. O livro é de autoria coletiva, e além de Angela Davis e Gina Dent, Erica Meiners e Beth Richie também assinam a publicação.

Denise destaca, no prefácio, a intencionalidade gráfica dos pontos após cada palavra no título Abolicionismo. Feminismo Já. “Os pontos entre as palavras, abolição, feminismo e já, significa que os movimentos pela abolição da escravidão e do escravismo tiveram sempre uma abordagem, uma metodologia, uma configuração feminista e, principalmente, feminista negra, porque nunca prescindiram da organização da projeção política e da imaginação de mulheres negras no sentido de construírem a libertação das pessoas”, declara Carrascosa.

Ela defende que as mulheres negras nunca deixaram de lutar pela abolição de todas as formas de opressão e violência contra as populações negras na diáspora. Então, esse substantivo composto entre os movimentos pela abolição e os movimentos de mulheres pela liberdade, em especial, de mulheres negras, articula-se nessa triangulação com o tempo do já. Um tempo que se organiza desde a época da escravidão até a contemporaneidade.

“É o tempo da urgência. Esse tempo da urgência do combate à violência racista, hétero-patriarcal e capitalista que vai articular a agenda feminista e abolicionista ao longo dos séculos. Então, são os substantivos que valem por si próprios em sua força de construção de Liberdade, mas só conseguem formar um movimento forte genealogicamente a partir do intercruzamento das suas histórias”, afirma a professora.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Gabriela Amorim

EDUARDO PONTIN: A VIAGEM DE ZUCA DA PÉ DE BODE, MESTRE DA SANFONA DE 8 BAIXOS

Julho 28, 2023

Tocador piauiense era exímio instrumentista e artesão da sanfona Pé de Bode. — Mais um artigo da Série Piauí Cultura Regional

Eduardo Pontinjornalggn@gmail.com

Publicado em 

Com cerca de 100 anos, Mestre Zuca da Pé de Bode ainda dominava a arte de seu instrumento

Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (XI)

A viagem de Zuca da Pé de Bode, mestre da sanfona de 8 baixos

por Eduardo Pontin

Nos deixou no dia 25 de julho o grande sanfoneiro piauiense Zuca Tocador, também tratado por Zuca da Pé de Bode (José Moreira da Silva, 1924-2023), do município de Avelino Lopes, Sul do estado, bem perto da divisa com a Bahia. Próximo de inteirar 100 anos de idade, Seu Zuca acompanhou à distância a evolução do Baião, que dos sertões nordestinos conquistou o mundo. Pé de Bode nada mais é que a sanfona de 8 baixos, um dos primeiros modelos existentes deste instrumento. Seu Zuca além de exímio instrumentista era também artesão, pois com as próprias mãos confeccionava a sanfona Pé de Bode. Por isso, era conhecido em sua cidade e em sua região como Mestre Zuca da Pé de Bode.

Segundo o IBGE, a cidade de Avelino Lopes fica localizada no Sudoeste do estado. Terra da minha amiga Cremisia, Embaixadora da Academia Piauiense de Letras em Teresina. Um dos poucos municípios do Brasil onde ainda hoje se cultiva o Lundu, tipo de Batuque que influenciou diretamente na criação do Samba no Rio de Janeiro do início do século XX. Terra também do grande Zuca da Pé de Bode, sanfoneiro e artesão deste instrumento musical que persiste ao tempo e a chamada evolução.

Agenor Abreu, Mestre de Cultura Patrimônio Vivo do Estado do Piauí, igualmente sanfoneiro, exalta a arte de Zuca Tocador em depoimento emocionado:

“Além de tocar esse instrumento muito difícil, também fabricava seu próprio instrumento, eu mesmo tenho uma Pé de Bode fabricada por ele. Esse grande Mestre nunca foi valorizado em sua cidade. Visitei Avelino Lopes alguns anos atrás, falei para as autoridades daquela cidade sobre a importância de manter a arte de tocar a Pé de Bode e mesmo tendo secretaria de cultura no município, Mestre Zuca nunca foi valorizado. O Piauí é que perde porque um saber desse não se aprende em escola. Um abraço Mestre, eu reconheço seu talento”.

– Agenor Abreu, Mestre de Cultura Patrimônio Vivo do Piauí

Mestre Agenor Abreu empunha a sanfona Pé de Bode confeccionada por Zuca Tocador

Embora não alcancem fama para além de sua região, os tocadores de sanfona são pessoas de prestígio no sertão nordestino. Pelo dom que Deus lhes concede, passam a ser reconhecidos pelo restante da população local com o distinto sobrenome de Tocador. E com Seu Zuca não foi diferente, já que poucos o conhecem por seu nome de batismo, mas basta perguntar por Seu Zuca Tocador que todos dão notícia. Uma característica comum aos tocadores de sanfona Pé de Bode é que a maior parte deles é apenas instrumentista, ou seja, não cantam, como era o caso de Seu Zuca.

Pé de Bode é como a sanfona de 8 baixos é apelidada, recebendo também os nomes de harmônica, fole, fole de 8 baixos e monca. A sanfona Pé de Bode foi um dos modelos utilizados pelos primeiros sanfoneiros do Brasil e rapidamente se popularizou, principalmente na região Nordeste.

Zuca Tocador (1º da esq.) ao lado de Anjo Abreu, em encontro de Sanfoneiros Pé de Bode em Avelino Lopes (PI)

Talvez o instrumento musical mais popular do Brasil colonial tenha sido a viola, que por sua vez já vinha substituindo a Rabeca, espécie de violino artesanal. Mas foi provavelmente a partir da imigração alemã nas primeiras décadas do século XIX que o fole invadiu os sertões e conquistou a alma nordestina. Nessa época já havia a função chamada de Baião, ao som de violas, pandeiros e ocasionalmente outros instrumentos percussivos, como gafanhotos (tipo de castanhola artesanal).

Durante muitos anos ainda o Baião prosseguiu sendo executado ao som de violas, mas cada vez mais crescia a predominância da presença da Sanfona Pé de Bode. A explicação para que isso tenha acontecido pode ir além da simples preferência de sonoridade entre uma e outra. Isso porque, naquela época não havia amplificação e os instrumentos eram executados à capela.

A sanfona Pé de Bode tinha maior alcance sonoro que a viola e numa festa repleta de pessoas dançando no terreiro devidamente aguado, o converseiro era grande. Nada como um instrumento que pudesse ser ouvido por todos, mesmo em meio a zoada, gaitadas e algazarras comuns a festas populares. Dessa maneira, muito possivelmente em razão de sua potência sonora, a sanfona foi pouco a pouco deixando a viola para trás e se firmando como instrumento preferido para as funções nordestinas.

Um dos mais célebres tocadores do instrumento de Zuca da Pé de Bode foi Januário José dos Santos do Nascimento (1888-1978), pai de ninguém menos que Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião. Por este motivo, Januário era também chamado de Vovô do Baião.

Januário dos 8 baixos, O Vovô do Baião

Porém, com a evolução do instrumento, os tocadores da sanfona Pé de Bode foram sendo deixados para trás e com Seu Zuca Tocador não foi diferente. Mestre Agenor Abreu explica:

“Depois que apareceu essa palheta, essa sanfona com teclado de piano, aí sanfona de 8 baixos foi desvalorizada. Aí os tocadores de Pé de Bode não tinham espaço, não eram contratados mais pra festa, porque achavam aquela música muito monótona. Com isso talvez o nome de Pé de Bode tenha nascido como um menosprezo, tocador Pé de Bode, tocador Rabo de Cabra, menosprezando. Seu Zuca me contou, as pessoas não valorizavam muito”.

Sempre com muita admiração e respeito, Agenor Abreu incluiu filmagens de Zuca da Pé de Bode em seu DVD “Projeto Candeeiro no Folclore – Piauiensidades” lançado em 2008, valorizando em vida a sua arte. No DVD, Mestre Zuca aparece tocando e ministrando curso sobre como produzir uma sanfona de 8 baixos, a popular Pé de Bode, numa ida a Teresina patrocinada pela Prefeitura da capital piauiense.

Mestre Zuca ministra curso em Teresina para jovens sobre como produzir a sanfona Pé de Bode

Com uma versão da sanfona mais evoluída, nas mãos de Luiz Gonzaga, o Baião Nordestino conquistou o Rio de Janeiro, capital federal de então, o Brasil e o mundo. Mas tudo começou com seu pai, Januário, que com a sua sanfona de 8 Baixos ensinou o filho a arte que ele iria aprimorar para apresentar aos brasileiros toda a riqueza do sertão nordestino.

Por isso, a partida de Zuca da Pé de Bode é uma perda inestimável nesse elo entre o Baião de viola do século XIX, o Baião dos sertões do início do Século XX e o Baião estilizado por Luiz Gonzaga no Rio na década de 1940. Seu Zuca da Pé de Bode era um importante representante do Baião do sertão Nordestino, feito de forma anônima, com repertório composto por cantigas folclóricas regionais.

Baião que não deu luxo e nem fama para a maior parte de seus tocadores, mas que alegrou muitos casamentos e festas nas quebradas do sertão, fazendo muitas pessoas felizes. E fazer os outros felizes talvez fosse o que mais deixava Seu Zuca da Pé de Bode feliz. Quem faz da vida uma grande dança e a encara com música não viaja sozinho, pois está sempre acompanhado da frequência sonora de sua alma. São Pedro já aguou o terreiro e o céu está em festa com Zuca da Pé de Bode, Januário e, claro, Luiz Gonzaga.

Paixão de toda uma vida: Sanfona Pé de Bode produzida por Mestre Zuca

Veja mais sobre: Piauísanfonazuca da pé de bode

AQUILES RIQUE REIS: NÃO HÁ NADA DE NOVO ROLANDO NA MÚSICA… POIS SIM

Julho 27, 2023

Segue uma prova que demonstra exatamente o contrário. Refiro-me a Tetein (independente), o terceiro álbum de Ian Ramil

Aquiles Rique Reisjornalggn@gmail.com

Não há nada de novo rolando… Pois sim!

por Aquiles Rique Reis

Pois é, pessoal, não raro escuto dizerem: “É impressionante como não há nada de novo na música brasileira”. Ora bolas, como assim? Olha só, segue uma prova que demonstra exatamente o contrário. Refiro-me a Tetein (independente), o terceiro álbum de Ian Ramil, ele que é filho de Vitor Ramil e sobrinho de Kleiton e Kledir.

A tampa abre com “Tetein”* (Ian Ramil). A intro traz uma sonoridade diversificada, elaborada a partir de violões de aço, dobro, guitarra, baixo synth, bumbo midi, sininho, unhas de lhamas e programação, a cargo de Ian. Seu canto vem firme e, com a voz dobrada, traz sentimento e o entrega ao ouvinte.

A seguir, “Canção de Chapeuzinho Vermelho” (Braguinha e Francisco Mignone): Nina Ramil canta. O piano soa. Nina cantarola só uma palavra. Ian repete a palavra que sua filha entoou. Nina ri e diz: “Agora é tu…” Nina tem seis aninhos… paira no ar um amor infinito.

“Macho-Rey” (Ian Ramil e Juliana Cortes): o piano toca meio espandogado. Ian declama os versos iniciais. O pop logo chega. Ian Ramil soa com violões de aço, synth, programação, teclado de computador e estalando os dedos. O bumbo de Martin Estevez vem forte. O baixo de Bruno Vargas e o trombone de Julio Rizzo trazem os graves e acentuam o canto que encerra com versos irônicos: “Quem vê não diz que ele se encolhe e chora sempre que a mami lhe diz um não/ Seja homem/ Não”.

E chega “Cantiga de Nina” (Ian Ramil): Nina choramingou, Ian compôs. Com Adolfo Almeida Jr. (fagote), Neuro Jr. (violão 7 cordas), Dessa Ferreira (tamborim e ganzá) e Gutcha Ramil (surdo, cuíca e ganzá), o arranjo é belo. O fagote inicia, o sete acompanha. Delicado, o chorinho começa. Emocionado, Ian canta à capella. O amor rola solto. Entra a percussão, com ela vem um suingue sereno. Nina certamente para de choramingar.

Logo a seguir, “O Mundo É Meu País”** (Ian Ramil e Luiz Gabriel Lopes). Ian canta, enquanto seus violões de aço, synth, beats, ovinho e tambor com chocalho se ajuntam a Bruno Vargas (baixo), Martin Estevez (batera), Pedro Petracco e Mauricio Montardo (piano), Gutcha Ramil (surdo e sementes na panela) e Julio Rizzo (trombones, para os quais Pedro Dom fez arranjo). E são eles, os trombones, quem tocam a intro. Ian canta. Logo depois dobra a voz. O surdo marca o tempo. O piano soa bonito. O baixo se soma ao surdo e o peso eleva a melodia a um patamar contagiante. Um intermezzo orquestral conduz a harmonia. Ian é um grande compositor!

Ian Ramil não teme audácias, vai a elas com talento e as dá ao público com teor e forma lapidares. A partir da programação das cordas (Lauro Maia), tem-se o sentido exato do que quer o arranjo que Pedro Dom escreveu para elas.

Bem, ainda haveria sete faixas a comentar, mas o espaço é curto e aqui fecho a tampa, tirando o chapéu para Ian Ramil – um cara a ser aplaudido de pé pelos amantes da música brasileira.

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4

“Tetein”: https://youtu.be/wuJfMpywp68

FARHA E A MEMÓRIA COLETIVA PALESTINA

Julho 26, 2023

Filme mostra como as histórias da Nakba, o brutal êxodo imposto por Israel em 1948, é revivido pelas novas gerações, através de narrativas orais e da arte. E como forças sionistas exploram a pobreza e obrigam palestinos a delatar seu próprio povo

OUTRASPALAVRAS

HISTÓRIA E MEMÓRIA

por Luciana Garcia de Oliveira

26/07/2023 –

A Palestina é retratada no cinema, na literatura e em muitas exposições. As informações e as histórias geralmente são baseadas nas memórias individuais palestinas, sempre conectadas com uma memória coletiva oficial.

A memória da Nakba é sempre acessada pelo povo palestino, pois além de ser considerada um momento de inferência na história e na identidade palestina, o acesso à Nakba é um meio pelo qual os palestinos, em todo o mundo, tentam fazer justiça aos prejuízos da ocupação do tempo presente. Entretanto, a memória individual deve, necessariamente, coincidir com a memória coletiva como parte intrínseca da história da ocupação da Palestina e, consequentemente, do movimento nacional palestino.

Nesse passo, de acordo com Maurice Halbwalchs (2003) é necessário distinguir dois tipos de memórias, uma memória pessoal e a outra, memória social, ou seja, uma memória autobiográfica e uma memória histórica. Nesse caso, a primeira receberia ajuda da segunda, uma vez que, a história de nossas vidas faz parte da história da humanidade. As memórias da rotina palestina, de antes e depois da Nakba, são fundamentais para a reconstituição da história palestina. É através dessa reconstituição que é possível compreender os impactos da ocupação e do conflito que se tornou permanente.

Contudo, a memória não é pura e absolutamente espontânea. A memória palestina, particularmente, é moldada em uma memória política coletiva que luta diariamente, a qualquer custo, para que não seja esquecida. O esquecimento da Nakba, juntamente à morte dos palestinos que efetivamente testemunharam a catástrofe de 1948, pode significar a perda da identidade palestina, já que a pátria nacional está ameaçada. A memória da Nakba, nesse caso, deve ser transmitida para as novas gerações de palestinos e, sobretudo para uma audiência internacional, através da arte, baseada na história oral e nas pesquisas às fontes primárias.

Enquanto memória nacional palestina, a transmissão da memória da Nakba, sempre que possível, ocultará os testemunhos e as narrativas de fracassos e de traições. Dificilmente teremos acesso a memória de palestinos que conscientemente venderam suas terras para as agências de colonização judaicas e das ações dos colaboradores palestinos durantes os confrontos de 1948.

Os mapas pré-Nakba recriados nos livros didáticos sobre a questão da Palestina tendem a demonstrar uma sociedade palestina unificada, com valores e ideais compartilhados, autossuficiente, sem quaisquer indícios de pobreza, doenças e conflitos. A imagem da Palestina histórica foi idealizada justamente para corresponder à uma imagem nacional, a qual elegeu o camponês palestino como símbolo central da terra natal e apto a reivindicar as perdas territoriais.

Contudo, é constatado que, em 1948, a população palestina não vivia no campo em sua totalidade. De acordo com Rochelle Davis (2007), cerca de 40% da população palestina já vivia nas cidades.

A memória da Nakba foi magistralmente reproduzida no filme Farha, da diretora jordaniana, Darin J. Salan, disponível na plataforma Netflix. O filme é baseado na história verídica de Radieh, uma palestina exilada na Síria, que contou sua história para uma amiga, que contou para a sua filha e, depois, para a sua neta, a diretora Salan. Farha, além de narrar a história de uma testemunha da Nakba, não omitiu ao apresentar a participação desconfortável dos colaboradores palestinos durante os conflitos de 1948.

A protagonista Farha (“alegria”, em árabe), é uma ambiciosa adolescente palestina que sonha estudar em uma cidade grande, longe do vilarejo que nasceu e, principalmente, longe dos planos de casamento de seu pai, um mukhtar (chefe do vilarejo).

Embora Farha seja uma jovem palestina com ideias bastante progressistas, dentro de um contexto altamente conservador e patriarcal, ainda assim, é uma adolescente que teve sua infância interrompida de uma maneira traumática. No momento em que conversava, em uma cadeira de balanço, com sua melhor amiga, Farida, presencia uma forte explosão nos arredores do vilarejo que vivia. A partir de então, a menina se torna uma adulta com instinto de sobrevivência.

Quando os ataques se intensificaram, o pai de Farha tranca sua filha em um depósito de alimentos de dentro de sua residência. Nesse momento em diante, Farha passa a testemunhar a violência real da Nakba palestina, por uma fresta de dentro do depósito. O filme segue com cenas claustrofóbicas e com momentos de muita angústia.

Farha flagra angustiada um massacre de toda uma família palestina, encontrada por soldados judeus com a ajuda de um colaborador palestino encapuzado que ajudava esses soldados a encontrar militantes palestinos e suas armas escondidas. Ocorre que, por um instante, o colaborador encapuzado se dirige ao depósito onde Farha estava escondida. O que indica que este colaborador, muito provavelmente, fosse o tio de Farha, um homem palestino urbano que vestia roupas à moda ocidental, falava inglês e que, no início da trama, encorajava o pai da protagonista a permitir que sua filha estudasse em uma outra cidade, longe de seu vilarejo.

Embora as ações de colaboradores sejam reais na história da Nakba palestina, é importante esclarecer que as traições palestinas eram constantemente exploradas pelos soldados judeus por diversas formas. De acordo com Nada Elia (2023), as ações dos colaboradores não existiriam caso “as forças israelenses não tivessem tão interessadas em explorar os mais vulneráveis, como aqueles que não seguem as normas tradicionais, as regras de gênero, ou aqueles que ultrapassam os limites das expectativas sociais”. Ainda, é imperioso enfatizar que muitos palestinos foram e ainda são forçados a colaborar com Israel, diante de circunstâncias de pobreza extrema, carência de atendimento médico e sob perseguição militar.

O massacre, testemunhado por Farha, segue com o abandono intencional de um bebê que não pára de chorar, enquanto Farha, a todo custo, tentava abrir a porta do depósito trancada pelo lado de fora. A longa cena do choro do bebê causa muita angústia nos telespectadores que assistem ao filme.

Quando Farha, finalmente, consegue sair do depósito o silencio acompanha a visão dramática dos corpos da família assassinada e do bebê que não resistiu sozinho.

O desfecho do filme mostra Farha, com um semblante apático, andando sem rumo em meio às ruínas de seu vilarejo vazio. No filme não se sabe se a menina decide ficar ou partir, ela apenas caminha sem destino, em direção ao desconhecido. Entretanto, de acordo com a vida real de Radieh, a palestina exilada que inspirou a personagem Farha, ela escolheu deixar a Palestina ocupada sozinha, já que o seu pai nunca reapareceu para buscá-la naquele depósito que a trancou.

O destino de Radieh, representada pela Farha, é incerto. Muito provavelmente o sonho de estudar em um colégio regular misto foi adiado até que, a então refugiada, pudesse se acomodar em seu novo lar e reconstruir a sua vida no exílio. Para a nossa sorte a história dessa brava garota palestina foi eternizada no premiado Farha, disponível para que todos possam conhecer. O filme além de belíssimo, traduz, com muita perfeição, o significado e a essência da Nakba.


Referências:

DAVIS, Rochelle. Mapping the Past, Re-creating the homeland – Memories of village places in pre-1948 Palestine. In. SA’DI, Ahmad H. & ABU-LUGHOD, Lila (Org.). Nakba – Palestine, 1948, and the claims of memory. New York: Columbia University Press, 2007.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

ELIA, Nada. Farha and the story of the Palestinian collaborator. Aljazeera, 7 de janeiro de 2023, disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2023/1/7/farha-and-the-story-of-the-palestinian-collaborator.

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LUCIANA GARCIA DE OLIVEIRA

Mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP) e uma das responsáveis pela tradução da coletânea Escritos Judaicos, de Hannah Arendt, publicado pelo selo Amarilys (2016).

GRUPO TEATRAL LEVA MITOS AFROBRASILEIROS SOBRE A VIDA E AS COMUNIDADES PARA OS PALCOS

Julho 25, 2023

  1. CULTURA

ARTE ANCESTRAL

Ideia é popularizar histórias conhecidas por poucas pessoas, mas essenciais para a formação cultural a religiosa do país

Redação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 25 de Julho de 2023 –

A atriz Ayo Bento, em cena do espetáculo OlorumAyé – © Nina Pires

Embora seja o país que mais recebeu pessoas escravizadas do continente africano em toda a história, o Brasil ainda conhece e debate pouco os costumes, tradições e mitos religiosos e culturais que chegaram ao território nacional a partir desta diáspora forçada

Uma iniciativa que envolve arte e educação e nasceu no interior de São Paulo quer mudar essa realidade, inspirada em contadores e contadoras de histórias ancestrais. O grupo Oriki, com origem em Campinas, leva aos palcos os mitos fundadores da espiritualidade afrobrasileira. 

Primeiro projeto da iniciativa, o espetáculo OlorumAyé reúne música, dança e atuação para contar a história da criação do mundo e da humanidade pelos Orixás. Olorum é a entidade suprema que concebeu o universo e Ayé é o planeta terra. 

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A atriz, pesquisadora e arte-educadora Ayo Bento, idealizadora do grupo, afirma que a ideia surgiu da vontade de compartilhar uma experiência de infância: o contato com as histórias ancestrais, com origem ou influência do continente africano. As narrativas contadas pelo pai, segundo a artista, foram essenciais como referências de vida e identidade. 

“Eu sempre tive a cultura Iorubá no meu sangue e sempre honrei muito os meus ancestrais. Sendo uma mulher preta e descendente de pessoas africanas escravizadas, ainda assim, me sinto privilegiada. Porque meu pai sempre contou histórias de pessoas pretas, grandes, reis, rainhas, artistas. Essa vontade de contar histórias pretas começou daí.”

A principal inspiração para o formato do espetáculo está nos Griots, artistas de diversas regiões da África que viajaram e viajam o mundo para espalhar conhecimento por meio da oralidade. Com poesia e música esses grupos falam de espiritualidade, cultura, plantas medicinais, culinária e diversos aspectos cotidianos e sagrados. 

Guardiões e guardiãs da palavra e da cultura viva, os Griots se mantêm há séculos e foram responsáveis por preservar memórias mesmo em períodos de grandes violações dos direitos humanos em nações africanas. 

Ao longo da formação como atriz e educadora, Ayo Bento ampliou os questionamentos sobre a ausência da cultura afrobrasileira, inclusive no ambiente acadêmico. “Por que não vivenciamos os mitos africanos? Por que não estudamos teatro africano dentro da universidade?” Em OlorumAyê, o Grupo Oriki preenche esse vazio também com elementos visuais que remetem ao sagrado das religiões de matriz africana e compõem a contação. 

Para explicar a figura de Exu, por exemplo, estão presentes as cabaças e alguidares, utensílios que carregam as oferendas ao santo. O Orixá abre a comunicação entre a humanidade e o sagrado e, portanto, é o primeiro a ser reverenciado nas festas das crenças afrobrasileiras. No palco do grupo teatral, ele também abre o espetáculo. 

“Foi muito importante para mim, enquanto mulher preta, conhecer essas histórias, saber que elas existem, não ter medo de me assumir preta, honrar a minha negritude e o lugar de onde eu vim. Gostaria de transmitir essas histórias para outras pessoas pretas. Para que elas também possam sentir esse orgulho”, ressalta Ayo Bento. 

O espetáculo OlorumAyé será apresentado no próximo dia 5 de agosto, na histórica Casa de Cultura Tainã, em Campinas, como parte do tradicional Feverestival. O espaço de resistência existe há mais de 30 anos na região e se transformou em símbolo cultural e coletivo. A sessão começa às 16h e tem entrada franca. 

No dia 31 de agosto, o grupo levará a contação de histórias para o CEU Florence, que fica no bairro Jardim Florence, periferia campineira. No local o grupo vai ministrar ainda oficinas de narração, música e dança afro. As atividades também são gratuitas.

Edição: Thalita Pires

CRÍTICA: BARBIE DE GRETA GERWIG EXPÕE COMO O PATRARCADO É PREJUDICIAL À SOCIEDADE

Julho 24, 2023

Com dois filmes indicados ao Oscar, cineasta usa Barbie para confrontar a machosfera. São os homens quem realmente precisam assistir ao filme

24 de julho de 2023 –

Barbie de Greta Gerwing. Reprodução/Warner Bros
Barbie de Greta Gerwing. Reprodução/Warner Bros

Por Harriet Fletcher*

Em The Conversation

O artigo a seguir contém spoilers da Barbie.

Para alguns, a Barbie é a melhor “girl boss” – ela é glamorosa, bem-sucedida e dona de sua própria DreamHouse. Para outros, a Barbie representa um estereótipo feminino ultrapassado – uma “garota loira boba em um mundo de fantasia”, de acordo com o hit de 1997 da Aqua, Barbie Girl.

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Mas Barbie se encaixa perfeitamente no repertório de histórias focadas em mulheres da diretora Greta Gerwig, que inclui dois filmes sobre amadurecimento indicados ao Oscar, Ladybird (2017) e Little Women (2019). Gerwig é uma cineasta feminista cujos personagens são curiosos, transgressores e rebeldes contra suas circunstâncias restritivas. A Barbie não é exceção.

O filme segue a Barbie estereotipada (Margot Robbie), cuja vida perfeita na Barbieland está gradualmente desmoronando porque os humanos que brincam com ela no mundo real estão tristes. Seus pés arqueados de Barbie ficam chatos, ela fica com celulite nas coxas e fica preocupada com pensamentos de morte.

Weird Barbie, interpretada por Kate McKinnon. Foto: Divulgação/Warner Bros

Com a ajuda de Weird Barbie (Kate McKinnon) – com estilo cômico como se uma criança “brincasse muito com ela” – a Barbie estereotipada tem a tarefa de entrar no mundo real para encontrar sua família humana e resolver seus problemas.

O filme abre com uma paródia de uma famosa cena de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick . O mundo é jogado em desordem quando uma boneca Barbie gigante pousa no deserto como um OVNI. Através da fantástica narração de Helen Mirren, somos informados de que os habitantes deste deserto árido são um bando de garotinhas que só têm bonecas para brincar. As meninas ficam liberadas com a chegada de sua nova e excitante amiga e, cansadas de brincar de mães, quebram para sempre suas bonecas insípidas.

Essa abertura posiciona a Barbielândia como uma utopia feminista. Na Barbieland, as mulheres podem fazer qualquer coisa: tornar-se presidente, ganhar prêmios literários e dar festas fabulosas.

Barbie no mundo real

A opinião de Gerwig sobre a Barbie é oportuna. Uma pesquisa explora a recente reivindicação feminista da figura “bimbo” (nota da redação: bimbo é uma gíria para uma mulher estereotipada como atraente, sexualizada, ingênua e sem inteligência). No TikTok, a tendência #Bimbo mostra criadores de conteúdo com apresentação feminina recuperando o rótulo e a estética depreciativos de “bimbo”. Em vez de abandonar a feminilidade para ter sucesso em uma sociedade patriarcal, o feminismo bimbo abraça a feminilidade enquanto apoia o avanço das mulheres.

Barbie no mundo real. Imagens da Warner Bros.

No mundo real, Barbie fica chocada ao descobrir que as coisas são um pouco diferentes do que na Barbielândia. Ela é assediada enquanto patina e recebe cantada de operários da construção civil. Uma pesquisa de 2021 descobriu que quatro quintos das mulheres jovens no Reino Unido foram assediadas sexualmente em espaços públicos. Enquanto Barbie diz que se sente “desconfortável” nessas situações, Ken (Ryan Gosling) se sente “admirado”.

Outras Barbies ficam horrorizadas com os pés chatos da Barbie estereotipada. Imagens da Warner Bros.

Quando Barbie encontra sua família humana, ela se depara com a hostilidade da filha adolescente Sasha, que afirma que Barbie nada mais é do que uma “bimbo profissional” cujo corpo perfeito e estilo de vida privilegiado fazem as mulheres se sentirem mal consigo mesmas há décadas.

Como mulheres reais, a Barbie enfrenta objetificação e crítica. O filme conhece seu público e faz comentários inteligentes e precisos sobre as experiências das mulheres.

Direitos de Ken

Em Barbieland, o namorado que mora na praia da Barbie é “apenas Ken”. No mundo real, ele descobre uma sociedade onde os homens reinam supremos. Não demora muito para que a inocência cativante de Ken seja manchada por um conceito que é novo de onde ele vem: patriarcado.

Ken fica intoxicado pelo domínio masculino e o filme aproveita todas as oportunidades para satirizá-lo. Ryan Gosling se destaca nesses momentos de comédia. A certa altura, Ken invade um hospital e exige fazer uma cirurgia, apesar de não ter qualificações – além de ser homem, é claro.

Ryan Gosling como Ken. Imagens da Warner Bros.

De volta à Barbieland, Ken impõe sua própria visão do patriarcado. Toda noite é “noite dos meninos”. Cada Barbie existe para ser cobiçada, servir cervejas e nutrir os frágeis egos dos homens. Sob o governo de Ken, a ex-presidente da Barbieland serve bebidas para machões na praia. A Suprema Corte feminina é rebaixada a uma equipe de líderes de torcida.

Em seu livro de 2020, Men Who Hate Women, a fundadora do projeto Everyday Sexism, Laura Bates, examina o que ela chama de “manosfera”. Em outras palavras, as muitas faces da misoginia radical na sociedade moderna, de ativistas dos direitos dos homens a incels.

Ao retratar os Kens, o filme de Gerwig confronta a machosfera. Muito parecido com os homens que são doutrinados nesses grupos radicais, os Kens são levados a acreditar que seus direitos estão sendo eclipsados ​​pelos direitos das mulheres e encontram-se em conformidade com os estereótipos masculinos tóxicos para recuperar um senso de controle.

A Barbie de Gerwig faz um trabalho estelar ao expor como a ideologia patriarcal é prejudicial para a sociedade. Embora o filme obviamente atraia as mulheres, são os homens que realmente precisam assisti-lo. Não é uma boneca Barbie que ameaça os direitos, oportunidades e segurança das mulheres – é o patriarcado.

Barbie é um dos filmes mais surpreendentes e ousados ​​do ano. O que poderia ter sido um fracasso frívolo consegue ser uma peça substancial, importante e comovente do cinema – além de tremendamente divertido de assistir.

Harriet Fletcher é professora de Mídia e Comunicação da Anglia Ruskin University

‘É NECESSÁRIO REESCREVER A HISTÓRIA COLOCANDO PROTAGONISMO INDÍGENA’, DIZ HISTORIADOR

Julho 23, 2023

  1. CULTURA

POVOS ORIGINÁRIOS

Professor e historiador Casé Angatu Xukuru Tupinambá fala sobre o processo de apagamento dos povos indígenas da história

Gabriela Amorim

Brasil de Fato | Salvador (BA) |

 23 de Julho de 2023 –

Casé Angatu Xukuru Tupinambá tem feito o esforço de apontar o protagonismo dos povos indígenas na história brasileira – Arquivo pessoal

Neste ano que se comemora o bicentenário da Independência do Brasil na Bahia, há um especial esforço por parte de movimentos e organizações populares em resgatar a memória da participação popular nas batalhas que culminaram na expulsão dos portugueses do solo brasileiro em 2 de julho de 1823. Parte desse esforço é recontar a história do protagonismo do povo indígena nesse processo.

“Existe um processo de apagamento e invisibilização dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil, às vezes inconsciente, mas por vezes desejado, especialmente por parte de algumas instituições públicas e dos que detêm poder político e poder econômico”, enfatiza o professor Casé Angatu Xukuru Tupinambá. Casé é indígena, morador do território Tupinambá de Olivença, historiador e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus (BA).

Em entrevista ao Brasil de Fato, ele destaca os esforços em apagar a presença indígena na história da Bahia e do Brasil, ao mesmo tempo em que aponta a urgência em reescrever essa mesma história. “É uma resistência! É necessário reescrever essa história, sim, e colocando o nosso protagonismo, que sempre existiu. É impossível dizer que a Independência foi feita por um filho de um português, filho de um colonizador que manteve a escravidão”, diz.

Casé Angatu é também doutor e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), graduado em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor dos livros Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza de 1890 a 1915 e Identidade Urbana e Globalização: a formação dos múltiplos territórios em Guarulhos (SP). Confira a seguir a entrevista completa com ele.

Brasil de Fato: Este ano, a Independência do Brasil na Bahia completa 200 anos. Agora em julho vimos muitas homenagens aos caboclos, aos povos indígenas que participaram das lutas, mas sempre de uma maneira genérica. A gente não tem o nome, os rostos dessas pessoas. O senhor considera que existe um processo de apagamento dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil?

Casé Angatu Xukuru Tupinambá: Com certeza existe um processo de apagamento e invisibilização dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil, às vezes inconsciente, mas por vezes desejado, especialmente por parte de algumas instituições públicas e dos que detêm poder político e poder econômico. Costumo dizer que, no Brasil, é estrutural o racismo contra nós indígenas, mas também a tentativa de nosso apagamento físico, que é o genocídio, e de nosso apagamento cultural e espiritual, que é o etnocídio.

Muitas pessoas por vezes me perguntam: professor Casé, não consigo enxergar a presença indígena na formação sociocultural brasileira e na minha própria. Costumo dizer que é por duas razões: por causa da nossa forma de ser indígena e por causa de um direito originário ancestral que nós temos ao território. Nós já somos um outro mundo onde cabem vários mundos, não é? Nós já temos uma outra relação com o mundo. Uma anciã nossa, grande Amotara, mãe de cacique Valdelice, tinha uma poesia que é mais ou menos assim: Aqui tinha uma grande nação / descoberta pelos brancos. Para nós, invasão / Aqui não tinha divisa, não tinha cerca / Nossa Riqueza era partilhada / Aqui não se acumulava nada / Hoje tudo é garantia / mas quem pratica a igualdade / não precisa de utopia.

Amotara nos ensina isso, que essa nossa forma de ser é coletivista, que partilha de vivência com a natureza como um pertencimento e ela incomoda, por vezes, aqueles que estão à frente do poder público e do poder econômico. Nós temos uma forma de trabalhar a temporalidade diferenciada. Aquilo que muitos chamam de nossa cosmologia, universo epistêmico, não bate, por vezes, com a ordem capitalista mercadológica. E isso incomoda, não é? Então, naturalmente, nós somos contra-coloniais, uma palavra que está muito em vigência. Culturalmente, nós, povos originários, somos contra-coloniais, porque nós não queremos viver explorando a natureza, onde um alguns vêm um monte de mato, nós vemos as encantarias, as energias dos nossos ancestrais. E isso incomoda.

Soma-se a isso o nosso direito congênito, originário, natural, relacional, existencial à terra. Não como propriedade, mas como pertencimento. A Teoria do Indigenato, desenvolvida por João Mendes Júnior, um jurista de 1912, já assinalava que o título das terras indígenas é natural, é um título originário que decorre do simples fato de sermos indígenas. Esse título do indigenato, que nos faz sermos os da terra, precede qualquer direito, inclusive, ao direito do Estado ou qualquer direito de propriedade privada. Essas são, na minha leitura, as razões que por vezes existe é o apagamento.

Existe na Bahia (e no Brasil de forma geral) uma visão muito mítica das pessoas indígenas, como o índio genérico. No entanto, só a Bahia tem 33 povos indígenas diferentes, da praia e do sertão. Qual o problema em se manter essa imagem genérica e mítica do ‘índio’ no senso comum da sociedade?

Nos conta a grande pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha que, já no século XIX, nos dividiam como índios bravos e índios domésticos ou mansos. O índio bravo é aquele que não aceitou a colonização portuguesa, é aquele indígena resistente às imposições, e não importa se ele tem contato ou não tem contato, é chamado de bravo, porque não se submete às imposições da colônia, da ordem jesuítica, às imposições do Império, às empresas do Brasil colônia, ao processo de catequização ou processo de evangelização e ao processo de retomada de suas terras. Como em Olivença, onde eu moro. Por que os Tupinambás de Olivença são chamados de bravos? Porque nós resistimos, não é?

Quando eles usam o termo doméstico ou manso o que se quer é etnocidar. O problema é manter essa figura mítica para combater o índio bravo! Quem é aqui que não tem a história de uma avó indígena, bisavó pega a laço, a dente de cachorro, que dormia com pé amarrado na cama, que era índia brava. Alguns são domesticados, não vou negar, porque há um processo de inculcação forte e violento. Ah, não existe mais Tupinambá, não existe mais Mura, não existe mais Charrua, são povos tidos como extintos no século XVI. Por quê? Porque nos mataram. Houve um massacre, mas não extinção. Eles pensaram que nos tinham genocidado por completo. Mas nós re-existimos, nós resistimos e re-existimos de diferentes formas.

Ou seja, o etnocídio, isso de negar ou de nos congelar no século 16, quando é feito pelos grupos dominantes no poder, é sim uma tática de “desindialização”, para dizer que os índios de hoje, que usam celular, que cursam uma universidade, que vão buscar o seu doutorado, que estão nos meios urbanos, não são mais indígenas. Isso é uma tática do etnocídio! No meu livro, chamado Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, que foi a minha dissertação de mestrado, eu mostro que cidades como São Paulo praticaram teoria racial no final do século 19, começo do século 20, mesma época que nós estamos falando da Independência. Qual que é esse projeto racial? Se queria uma nação que fosse branca, mas com um grande contingente de indígenas e dos nossos irmãos negros escravizados vindos da África. Então, você tinha que mostrar que esses indígenas que estávamos aqui deixamos de existir no século 16 e 17.


Quadro Alegoria ao 7 de Janeiro de 1823 de Mike Sam Chagas retrata a participação popular nas lutas da independência em solo baiano. Nele estão representados os povos indígenas / Reprodução/Mov. Viva Ilha

Tem um professor, Francisco Cancela, que brilhantemente fez uma pesquisa falando do protagonismo de nós indígenas nas vilas indígenas. No século 17, nesses antigos aldeamentos, os meus parentes ancestrais reivindicavam e lutavam, inclusive mandando coletivos de indígenas para a frente de lutas nas expulsões dos portugueses, dos galegos. Há uma participação direta no processo de indígena na expulsão dos portugueses, né? Indígenas vindo de lugares como a Vila Verde, Trancoso, Porto Seguro, Olivença e mesmo da região de Salvador. Nunca se esqueça, Kirimurê, Salvador é terra Tupinambá, sempre foi terra Tupinambá! É uma memória que, aliás, tinha que ser resgatado nas escolas.

E qual a importância de reescrever essa história a partir de uma perspectiva indígena também?

É uma resistência! É necessário reescrever essa história, sim, e colocando o nosso protagonismo, que sempre existiu. É impossível dizer que a Independência foi feita por um filho de um português, filho de um colonizador que manteve a escravidão. Então, é por isso que é necessário reescrever a história para, justamente, fazer isso que eu acabei de fazer: a crítica da história oficial, e apresentar outras possibilidades.

Então, no dia 21 de abril, vamos parar com essa ideia de descobrimento! Foram invasões! O Brasil foi um país invadido, e nós povos indígenas estamos em guerra por independência. Os invasores não fizeram guerra, fizeram massacres. Quem fez guerra de resistência fomos nós povos indígenas, o povo brasileiro. Essa é uma primeira percepção que tem que pensar na história da Bahia. História do Brasil também. Nós já sabíamos o que era excludente ilicitude no século 17. O indígena que não aceitasse a catequização poderia ser escravizado, violentado, morto. Esse que foi tirado da presidência, miliciano, não é o primeiro da história, não. Quem são os bandeirantes? Quem são os capitães do mato, quem são os governadores gerais desse país? O manto tupinambá foi roubado. Está para ser devolvido, não é? Mas foram roubados os mantos, não só um manto, as vidas. Dinamarca vai desenvolver as vidas, a Europa vai desenvolver as vidas retiradas?

A história oficial desse país é parte do processo de genocídio e de etnocídio. Porque trata-se de quando as pessoas que vivem na pobreza dos meios urbanos, nas cidades do interior da Bahia e desse país, perceber que muitas eram descendentes de indígenas que foram espoliados das suas terras, que seus ancestrais tiveram as suas terras espoliadas, e que razão de sua pobreza material, é porque houve um processo histórico de espoliação. É disso que se trata quando se fala de história dos povos originários. Trata-se de um processo histórico de roubo das terras originárias, de escravidão de estupro, de violência. E por isso que a história oficial tem que nos apagar.

Qual o papel do acesso dos povos indígenas à educação formal nesse esforço de reescrever a história oficial?

É uma pergunta fundamental. Sabe que existe a educação indígena e educação escolar indígena. A educação indígena ela é anterior à educação escolar indígena. Toda criança, toda pessoa que nasce numa comunidade indígena, já tem uma educação indígena. Que é subir no pé de piaçava, um coqueiro, colocar tarrafa para pegar peixe, respeitar a natureza, colocando roça cabruca sem desmatar, fazendo o plantio olhando a Lua. A partir dessa educação indígena é que se baseia a educação escolar indígena, e nós podemos oferecer isso. [É preciso] que as escolas reatualizem seus currículos nesse sentido.

É fundamental nós estarmos na escola. Para nós, nos formar, termos títulos de doutor, de mestre, nos graduar e termos esses saberes é como mais flechas em nossos arcos para lutar por nossos direitos. Não é uma formação só individual. Nós pensamos coletivamente, porque somos sujeitos coletivos.

Nós estamos tendo esse acesso para lutar por nossos direitos. Precisamos da demarcação. O povo Tupinambá está com o seu território para ser marcado desde 2009 – desde 2009, não, desde 1500! Nós temos que derrubar o marco temporal. Que esquece, por exemplo, isso que a gente acabou de falar na entrevista, que muitos indígenas foram expulsos da terra e muitos que ficaram não podiam se assumir como indígenas se não morriam. E muitos que foram embora voltaram, então, por isso que o marco temporal é um absurdo. Por isso que a gente exige que o STF vote o mais rápido possível e derrube o marco temporal. A gente exige que o Congresso Nacional derrube esse marco temporal e demarque imediatamente as terras indígenas.

É disso que se trata, não é? A gente não está falando só no abstrato, não, está falando do concreto. Nós precisamos de ter nossas terras demarcadas no Brasil inteiro, fazendo valer a Constituição de 88, que dizia que depois de 5 anos de 88, todas as terras indígenas seriam demarcadas. Cadê? É isso que nós queremos. Queremos demarcação já, não ao marco temporal.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Alfredo Portugal

SAMBA DA CHINELA VOADORA LANÇA SAMBA URBANO COM DISCO AUTORAL DE ESTREIA

Julho 22, 2023

Samba da Chinela Voadora traz a fusão entre a música brasileira com música Afro e a sofisticação dos improvisos com as tendências jazzísticas

Redaçãojornalggn@esquizofia

22 de julho de 2023 –

Lu Pillbbossian

Um álbum que traz a atmosfera urbana, representada pelas diferentes vertentes da música brasileira. Assim é Samba Urbano (Relva Music Label), primeiro disco do grupo paulista Samba da Chinela Voadora que será lançado nas plataformas digitais no dia 21 de julho. O grupo é formado por Barbara Bonniê (voz), Guilherme Camargo (guitarras e violões), André Soratti (contrabaixo), Everton Barba (bateria), Tatá Brasilina (percussão), Marcos Braga (trompete e flugelhorn), Richard Fermino (saxofones, flauta e clarinete) e Fábio Oliva (trombone). O disco ainda conta com a participação especial da cantora Roberta Oliveira.

Com letras que falam sobre arte, relações urbanas e as diferentes manifestações artísticas de uma mesma cidade, o repertório inclui Cadência dos Bambas (Tatá Brasilina), Caneta e Papel (Rachell Autran, Edu Sukys), Ei, Psiu! (Barbara Bonniê), Cheia de Cores (Barbara Bonniê), Ciclo Natural da Paz (Kride Jr.), Orixás (Tatá Brasilina) e Sampa Samba (Tatá Brasilina).

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Para Marcos Braga, trompetista, arranjador e um dos produtores musicais da banda, “a construção dos arranjos nesse disco se baseou muito nas letras das composições. O samba, historicamente, é sempre muito poético, e nesse caso, as histórias contadas nas músicas são bem atuais, retratam nosso momento. Então, a ideia era buscar o equilíbrio, entre a raiz do samba e o discurso de hoje, que fala diretamente para o público jovem também”. E Tatá Brasilina, compositor e percussionista finaliza, “na batida do samba, a cidade vira poesia”.

Nascido na cena alternativa da noite de São Paulo, o Samba da Chinela Voadora traz a fusão entre a música brasileira com a música Afro e a sofisticação dos improvisos com as tendências jazzísticas. Seu trabalho propõe ao público uma experiência de imersão musical e dançante, reforçando as raízes da cultura brasileira. Entre 2020 e 2021, o grupo lançou três singles autorais, “É mais um samba” (José Antonio Torricelli, Marcos Pereira Braga), “Baque de Arraia” (Tatá Brasilina) e “Dance” (Tatá Brasilina), com a participação especial do cantor Tales de Polli, da banda Maneva.

FICHA TÉCNICA:

Produção musical: Marcos Braga, Tatá Brasilina, Guilherme Camargo

Produção Executiva: Marcos Braga

Arranjos: Marcos Braga

Gravação: Estúdio Henning

Mixagem e Masterização: Marcos Braga

Selo: Relva Music Label

Distribuidora: Ingrooves Brazil

Samba da Chinela Voadora (integrantes)

Barbara Bonniê – voz

Guilherme Camargo – guitarras e violões

André Soratti – contrabaixo

Everton Barba – bateria

Tatá Brasilina – percussão

Marcos Braga – trompete e flugelhorn

Richard Fermino – saxofones, flauta e clarinete

Fábio Oliva – trombone

Participação especial – Roberta Oliveira na música Orixás

Backing Vocal – Michele Pedroso

Para conhecer, acesse: https://www.youtube.com/

@sambadachinelavoadora6892