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PREVISÕES DE MÃE ZAILA PARA O ANO DE 2020

Dezembro 31, 2019

    Fotosofia de Maurício Colares para Esquizofia e Afinsophia.

PRODUÇÃO ESQUIZOFIA.

 

Como ocorre todo final de ano, a Associação Filosofia Itinerante (AFIN) realiza entrevista com uma mãe de santo ou pai de santo cujo objetivo é saber quais as previsões para o novo ano que se avizinha. E com isso, através de seu site Afinsophia.org e seu blog Esquizofia, apresentar aos seus fiéis acessantes as infalíveis previsões.

Desta vez, membros da AFIN estiveram na casa da Mãe Zaila, cujo nome em africano significa a feminina. Um nome que afirma a sinceridade das previsões, posto que a vocação do gênero feminino é a justiça.

Ao chegarmos à sua casa, Mãe Zaila recebeu os membros da AFIN com seus predicados singulares: sensibilidade-movente, inteligência-ativa, ética-socializante, humor-criativo e ternura-altruísta. Mãe Zaila é filósofa, médica, psicanalista, antropóloga, atriz, musicista, poetisa e multimídia.

 E foi nesse peri-mundo profético, estético e epistemológico que  os membros da AFIN tiveram em primeira mão em suas consciências o desfilar do futuro um tanto angustiante, mas real. Principalmente quando Mãe Zaila parte da experiência do presente para o futuro com implicações profundamente aberrantes.

Com vocês as previsões de Mãe Zaila.

Associação Filosofia Itinerante (AFIN) – Primeiramente deseja muitas felicidades para a senhora, porque a senhora merece pelo trabalho engajado que desenvolve junto as causas dos humilhados pela prepotência e estupidez da classe dominante. Um trabalho jamais visto por essas glebas por uma pessoa com sua constituição-poiética. Então, Mãe Zaila, o que a senhora prevê para o ano de 2020?

MÃE ZAILA (Sorrindo) – O que vocês preveem.

AFIN (Gargalhando) – Mas nós não temos o dom da previsão. O dom é da senhora.

MZ (Baforando um charuto baiano) – Querem um?

AFIN – Não, obrigado. Faça bom proveito.

MZ – Quando eu digo “o que vocês preveem”, eu quero dizer que vocês já participaram desse déjà vu. Todos, no Brasil, já viram. Não há como ocultar. A violência nunca permanece em ocultação.

AFIN (Preocupados) – A senhora quer dizer que no Brasil o 2020 será a repetição de 2019?

MZ – Sim! Mas vocês sabem que toda previsão pode apresentar uma ou algumas variáveis.

AFIN – Como assim?

MZ – A primeira vista, o Brasil tende a repetir o que sofreu em 2019, mas pode ser que algumas variáveis possam surpreender.

AFIN – Mas as previsões impedem as surpresas.

MZ – Sim. Porém, as previsões também passam pelos mesmos movimentos que constroem o futuro. E aí, pode ser que o futuro previsto não se atualize.

AFIN – Filosofia temporal profunda!

MZ – Não há previsão verdadeira sem filosofia.

AFIN – A senhora quer dizer que todas as perdas impostas pelo evento atual podem ser recuperadas?

MZ (Sorrindo) – Vamos fazer um acordo: vamos parar  com essa babaquice de usar o tratamento “senhora”. Senhora é a mãe de Deus. Para quem eu trabalho. E eu sou uma simples mortal.

AFIN – Uma simples mortal, não! A senhora é mortal, mas não uma simples. A senhora é singular. Original. Tudo bem. Vamos lhe tratar pelo seu nome.

MZ – Muito bem. Não que as perdas possam ser recuperadas, mas que algumas atitudes da sociedade brasileira podem impedir que o estado de coisa atual venha a piorar. Porém, a expectativa é esta: 2020 vai repetir 2019.

AFIN – Que não existiu.

MZ – Que não existiu nem democraticamente, nem politicamente, nem economicamente. Viveu-se o pior momento da história do Brasil. Na verdade, não se viveu nada de história, pois a história é o movimento criador de novas formas de bens que beneficiam o povo como devir constitutivo.

 AFIN – Zaila, para você quais as causas dessa inexistência do ano de 2019?

MZ – A ignorância, como falta de sabedoria, e a estupidez, como falta de delicadeza política e social. Aliás, só se agravou, pois já vinha do primeiro golpe.

AFIN – Profunda essa observação. Como o golpe eliminou uma presidenta eleita, e o evento atual é decorrente desse golpe, que inclui a prisão de Lula, como se deve  entender politicamente o Brasil hoje?

MZ (Chamando um gatinho) – É um país sem presidente.

AFIN (Alegres) – Essa foi profundíssima!

MZ – Desde 2016 que o Brasil vive sem um presidente eleito dentro dos princípios fundamentais da democracia. Foi nesse quadro que a ignorância e a estupidez se manifestaram e se fixaram como bruta realidade. Como que a sociedade brasileira que sempre cultuou o humanismo da paz pode assistir conformada a escalada da violência praticada pelos adeptos do evento? Como se pode querer desmerecer a importância mundial da inteligência de Paulo Freire como seu comprometimento da educação como prática de produção de uma sociedade alegre, satisfatória e justa? É um evento sem qualquer signo epistemológico, além da insensibilidade-social.

AFIN – A mídia, porta voz do sistema, afirma que a economia melhorou.

MZ – Ela faz o papel dela: subserviente ao mercado, já que se trata de uma mídia de mercado. E a função dela é mentir como defesa do mercado. Desemprego, trabalhadores na informalidade sem qualquer segurança trabalhista, lojas fechando, Natal pobre, famílias sem ter o que comer, não é índice de desenvolvimento econômico. Nessa triste realidade, pode-se até aventar que muito dos fogos das festas de fim de ano foram os que sobraram da derrota do Flamengo para o Liverpool. Se não fosse isso, o silêncio-doloroso seria maior.

AFIN – Para você quais os piores atos praticados pelo evento que vão se repetir no ano de 2020?

MZ (Servindo uma dose de cana de alambique para cada um) – Como psicanalista, afirmo que todos. Por quê? Porque se trata de compulsão em pregar a dor no outro que se toma como inimigo para sublimar suas próprias culpas inconscientes. Vejam que o perigo não sai apenas de um grupo, mas de todos que são identificados com a dor. É a expressão maior do fundamentalismo que atinge todos os quadrantes da sociedade. E o pior é que eles não entendem qualquer manifestação do mundo racional. Para eles só existe o mundo deles, como diz a filósofa Hannah Arendt. Por exemplo: eles não entendem o Cristo filho de Maria, mas o Cristo de suas próprias subjetividades. Um Cristo acusador, perseguidor, julgador e condenador. O que não é Cristo, mas um deslocamento-projetivo de suas próprias pulsões-persecutórias. Não esquecer que há neles profundo sentimento de insignificância. É por isso que atacam os que lhes são diferentes impulsionados pela inveja e o ódio. Vejam como invejam os artistas, intelectuais, pessoas que fazem uso natural de suas práxis e poiesis. Dizem que querem acabar com o comunismo, mas nem sabem o que significa. É provável que no mundo deles ninguém uma orelha de um livro de Marx. Atacam o que não sabem o que significa.

AFIN – Então, a barra de 2020 vai ser pesadíssima?

MZ (Alegre) – Mas, tenho uma boa previsão.

AFIN – Qual?

MZ – 2020 é ano de eleições municipais. E a variável vem daí.

AFIN – O que a Mãe Zaila prever?

MZ – Vão ser eleitos muitos prefeitos e vereadores progressistas. Muitos eleitores, ao contrário da mídia de mercado, estes eleitores estão sentindo que suas vidas só pioraram e quer, pelo menos no plano municipal, que ela melhore. Não querem outra vez serem enganados.

AFIN – Que bela previsão!

MZ (Gargalhando) – Essa frase parece nome de cinema de Buñuel.

AFIN (Ansiosos) – E aqui em Manaus, capital dos políticos reacionários, os eleitores também vão produzir a variável?

MZ – Não esqueçam que o que está ocorrendo é em todo o Brasil. A conscientização do povo já está em marcha. Não esqueçam que a vontade do povo é vontade de potência, como diria o filósofo Nietzsche.

AFIN – E é possível perceber quem é o candidato que vai ser eleito prefeito de Manaus?

MZ – Meu trabalho não é sobre pessoa, mas sobre situação. Pela situação posso prever que será um candidato da esquerda.

AFIN – Mas a esquerda aqui é tão atormentada. Muito doida. Tem nego que passa muito bem como nazifascista, mas se toma como esquerda.

MZ – É um candidato que tem boa aceitação até na direita, mas sua atuação é mais na perspectiva popular com o estado garantindo políticas públicas.

AFIN – Que assim seja. Nós, assim como grande parte da comunidade, acreditamos, profundamente, em você. É possível fazer previsão para a próxima eleição presidencial? As pesquisas mostram que a disputa vai ser com Lula e o evento. Será?  

MZ – Como diz o filósofo Deleuze através do outro filósofo Bergson, existem duas memórias: uma curta e outra longa. Daí que existem também dois futuros: um perto e outro distante. O perto é este que estamos vivendo no presente. E o longo é o que ainda se encontra distante como virtual. A previsão que posso fazer, partindo desse presente-futuro, é que Lula encontra-se na posição de disputa como vitorioso. Agora, como o povo brasileiro está despertando do pesadelo que vem atormentando sua vida, é possível que o evento nem dispute a eleição presidencial. Pois como diz o ditado popular: Uma triste lição é uma eficiente mestra para criação da alegria.

AFIN – Em sendo assim, a jogada do evento em se colocar como candidato é só exibição narcísica?

MZ – É. Ele precisa acreditar que é amado. Ele acredita que os gonzos vão se alinhar como se alinharam em 2019 para o elegerem. Só que os gonzos não repetem seus alinhamentos. Cada alinhamento é um só. Só ocorre uma vez. Ainda mais quando não cria nada novo no universo.

AFIN – E o Moro? Vai ser candidato?

MZ – Não vai ser candidato e muito menos seria eleito. O povo já entendeu que o Brasil não precisa de herói muito menos fabricado. Se o povo acredita em um herói é nele mesmo como herói. Já começou o desmascaramento da Globo. O povo já está entendendo que o que a Globo se preocupa é apenas com seus privilégios. E Moro ajudava esses privilégios se postando como salvador do Brasil em nome da corrupção. E o povo já sabe que o significado de corrupção não é apenas posse de dinheiro público, mas também várias formas de condutas imorais que degeneram o sentido de normalidade e justiça.

AFIN – E qual sua previsão sobre quem será o campeão do Brasileirão

MZ – Ora, ora, meus jovens e minhas jovens. Será o meu time.

AFIN – E qual é seu time? O Flamengo?

MZ – Como afirma o dito popular: um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. O meu time é um time cujo uniforme não faz propaganda nazifascista. Outra coisa que eu queria dizer para vocês. As previsões que se repetirão são apenas as que são oriundas do evento. As tétricas. Quanto aos seguimentos que escapam, eles terão grandes revelações. Os movimentos sociais continuarão atuando eficientemente. As mulheres, os negros, os índios, a LGBT continuarão na luta de forma mais categórica. Os grupos artísticos das periferias como hip-hop, punk, funk, rock, vão realizar muitas revelações. O cinema, apesar da violência contra a ANCINE, vai continuar criando e ganhando muitos prêmios nacionais e internacionais. O teatro também vai no mesmo rumo. Principalmente o teatro amador, o teatro popular. E a música nem falar. O samba vai ter um ano esplêndido. Um ano de grandes revelações. Isso tudo, porque os movimentos sociais são um Devir-Comunalidade que não pode ser aprisionado e nem destruído por qualquer força tirânica. Ele sempre escapa e mais potente em práxis e poiesis intensiva. Uma bia demonstração será o carnaval. Será eminentemente de rua. Porque, como Dionísio, o carnaval é fora. Na rua.   

 

AFIN – Agora, a previsão que nunca pode faltar. Qual a previsão para a AFIN?

MZ – Ora, ora, ora! A mesma de sempre a Associação Filosofia Itinerante vai continuar trabalhando, produzindo novas formas de sentir, ver, ouvir e pensar como corpus afetivos e cognitivos comunalidade.

AFIN (Eufóricos) – Valeu, Mãe Zaila! Cada ano que passa você eleva mais ainda sua grandeza como vocação humana de existir. O que lhe faz um ser muito amado e, também, muito invejado pelos reativos.

MZ – Sem modesta, eu apenas vivo. Não penso na morte. Comungo com o filósofo Spinoza: um homem livre não pensa nunca na morte só na vida. A vida ativa, como diz o filósofo Nietzsche. Eu amo. Porque sei que “o amor é uma alegria cuja ideia é uma causa exterior”, como diz, novamente Spinoza, uma causa produzida em parceria com os homens e as mulheres livres. Valeu, companheiros e companheiras! Voltem sempre que estarão lhes esperando a caninha e o charuto que “não vai se apagar por causa da amargura”.

 

20 FILMES DO ANO EM QUE O CINEMA GRITOU EM DEFESA DA HUMANIDADE

Dezembro 31, 2019
2019 DE DOR E DE GLÓRIA
Em 2019, o cinema no Brasil e no mundo denunciou que as coisas não vão bem. Foi um dos melhores anos da história do cinema nacional, mesmo (e até por isso) sob ataques
   
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Cena do filme Parasita, de Bong Joon-ho. A desigualdade que explode em violência

São Paulo – As bilheterias de 2019 foram, mais uma vez, dominadas por grandes produções hollywoodianas. Em especial, mais um ano de hegemonia financeira das histórias dos universos Marvel e DC. Enquanto Os Vingadores: Ultimato (de Joe e Anthony Russo) fizeram a maior fortuna no ano, o vilão Coringa (de Todd Phillips), com toda sua carga dramática, e com uma forte atuação de Joaquim Phoenix, foi um dos filmes mais comentados.

Para muito além desse nicho, o fato é que o cinema viveu um período fértil, com grande destaque para as produções nacionais. Mesmo sob intenso ataque da forte onda ultraconservadora que se abateu sobre o país, o cinema brasileiro resistiu e ganhou o mundo em um dos melhores anos de sua história.

Foram tentativas de censura e de sufocamento financeiro, com o completo desmonte do setor público audiovisual nacional, promovido pelo governo do presidente ultraconservador de extrema-direita, Jair Bolsonaro (sem partido). Na contramão, foi o ano em que filmes como A Vida Invisível (de Karim Aïnouz)Democracia em Vertigem (de Petra Costa) e Bacurau (de Kleber Mendonça Filho), fizeram sucesso estrondoso e ganharam amplo reconhecimento fora do país.

Foi o ano em que o cinema falou seriamente sobre os problemas dos modelos de produção do sistema capitalista. Tal forma de arte usou seu amplo alcance para deixar explícito como modelos econômicos neoliberais trazem a ruína para a sociedade. Desde o excluído Coringa, da resistência do povo de Bacurau até a ausência do Estado no sul-coreano Parasita (de Bong Joon-ho). Este último, um dos grandes destaques do ano, revela como são frágeis e suscetíveis ao colapso e à violência as relações doentias em ambientes de extrema desigualdade.

De fato, a crítica social falou alto com os milhões de espectadores de tantos filmes neste ano. Logo no início do ano, em Janeiro, o grego Yorgos Lanthimos chegou aos cinemas brasileiros com um retrato requintado e ao mesmo tempo grotesco das vidas artificiais dos mais privilegiados. Se trata do impactante A Favorita. Já em março, foi a vez do talentoso Jordan Peele apresentar Nós; uma metáfora, um terrível pesadelo que mostrou o subterrâneo, as entranhas recalcadas da sociedade norte-americana.

A #RBA fez uma lista dos filmes mais marcantes do ano. Claro que algo pode passar, e o leitor também está convidado para falar com a reportagem, através das nossas redes sociais, TwitterFacebook e Instagram, quais dos melhores filmes do ano deveriam estar lista.

Dez grandes filmes nacionais de 2019

A Vida Invisível, de Karim Aïnouz: Um complexo melodrama de altíssima qualidade. Mais uma grande obra do cinema nordestino. O filme provoca grandes desconfortos, tira o espectador de sua zona de conforto ao abordar temas tão importantes como a violência e a repressão do patriarcado na sociedade brasileira. Foi o vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e o escolhido para representar o Brasil no Oscar.

 

Bacurau, de Kleber Mendonça Filho: Depois de grandes obras como os potentes O Som ao Redor (2013) e Aquarius (2016), o diretor recifense apresentou o grande sucesso do cinema nacional no ano (tem até quem diga que assistiu ao filme 11 vezes). Uma obra essencial que chama o Brasil de hoje para uma conversa seríssima. O grande hype é justificável. Um filme essencial.

Divino Amor, de Gabriel Mascaro: Mais um filme nordestino. Uma obra de terror para os mais atentos. Tão absurdo quanto possível, o diretor apresenta um Brasil distópico. Em apenas oito anos, o país se afunda em um regime evangélico totalitário. Cai o Estado laico, entra a estética tenebrosa (típica do conservadorismo brasileiro) e os sorrisos falsos. Mesmo com esse enredo catastrófico, o diretor apresenta uma visão leve e com respeito às crenças dos espectadores.

Democracia em Vertigem, de Petra Costa: A produção Netflix escancara muitas das faces do golpe de Estado pelo qual o Brasil passou em 2016, com a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Um drama com pitadas de terror sobre as forças políticas e econômicas que botaram abaixo a democracia brasileira e acabaram colocando no poder a extrema-direita. O filme está na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Documentário. Foi o segundo documentário Netflix mais assistido no ano no Brasil.

Banquete Coutinho, de Jeosafá Veloso: “Eu faço uns filmes aí eu fumo”, diz Coutinho. O maior documentarista brasileiro, morto em 2014, agora virou personagem. Apesar de ainda não ter entrado oficialmente no circuito comercial (o que deve acontecer logo no início de 2020), o filme contou com exibições na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O Barato de Iacanga, de Thiago Mattar: “Um dos mais bem elaborados documentos sobre o que foram as três, quase quatro, edições do Festival de Águas Claras (1975, 1981, 1983 e 1984). Duvido que apareça algum inventário tão rico desses eventos como o reunido nesse filme do Thiago e companhia”.

 

Dois Papas, de Fernando Meirelles: A produção Netflix conta com atuações maravilhosas de Anthony Hopkins, interpretando o papa Bento XVI, e Jonathan Pryce, na pele do papa Francisco. Um grande sucesso de público e crítica que encanta com humor sutil e boa dose dramática. Algumas críticas são relevantes, tais como as que apontam para o não tratamento na obra do passado sombrio do conservador Joseph Ratzinger (Bento), que remonta aos tempos do nazismo. Vale a crítica. Vale o filme.

Babenco, Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Bárbara Paz: Premiado como melhor documentário no Festival de Veneza; marca a estreia de Bárbara Paz na direção; trata da vida do grande cineasta brasileiro e argentino Hector Babenco.

Torre das Donzelas, de Susanna Lira: Documentário premiado reconstrói presídio Tiradentes, onde mulheres, entre elas a ex-presidente Dilma, foram mantidas como presas políticas. No filme, a “torre” foi recriada cenograficamente para que as presas políticas pudessem relatar os momentos passados ali. Vencedor do Prêmio Especial do Júri no 51º Festival de Brasília

 


Dez grandes estrangeiros

Parasita, de Bong Joon-ho: O grande sucesso de crítica do ano, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Aqui, a luta de classes é protagonista. A absurda desigualdade e a irrelevância do trabalho diante de um sistema que perpetua riquezas provoca uma bola de neve de violência. Um filme de grandes viradas, outra obra essencial para os dias de hoje.

O Irlandês, de Martin Scorsese: O lendário diretor está de volta para retratar novamente o grande tema que permeou sua carreira: a máfia. O filme foi executado com absoluta perfeição técnica, tanto de Scorsese tanto dos principais atores: Robert de Niro, Al Pacino e Joe Pesci. Uma aula de cinema em três horas com produção Netflix. Vale também menção honrosa ao documentário Rolling Thunder Revue (2019), também de Scorsese, que trata de uma turnê de Bob Dylan e retrata o espírito dos anos 1970 nos Estados Unidos.

Era Uma Vez Em… Hollywood, de Quentin Tarantino: Mais uma aula de cinema. Com planos ousados e muito bem executados, tensão calculada e, como não poderia faltar, um certo grau de violência, Tarantino apresenta uma homenagem à história do cinema. Destaque para uma grande atuação de Leonardo di Caprio, ao lado do também competente Brad Pitt.

Odisseia dos Tontos, de Sebastián Borensztein: Com um roteiro muito bem executado, típico do cinema argentino, o filme traz Ricardo Darín em uma emocionante história de trabalhadores que tiveram que se virar diante dos problemas ocasionados pelo neoliberalismo aplicado no país, mais especificamente com o congelamento de depósitos e estabelecimento de limites para retirada de fundos no país em 2001, durante o governo de Fernando de la Rua, que ficou conhecido como Corralito.

Nós, de Jordan Peele: Uma metáfora, terrível pesadelo que mostrou o subterrâneo, as entranhas recalcadas da sociedade norte-americana. Um exercício de filosofia do diretor e roteirista que apresentou essa obra complexa após o sucesso de seu longa anterior, Corra! (2017). Destaque para a atuação assustadora de Lupita Nyong’o.

História de Um Casamento, de Noah Baumbach: Scarlett Johansson e Adam Driver entregam um trabalho de grande dedicação e sensibilidade. A atuação do casal é o grande ponto alto do filme que trata de um casal apaixonado de pessoas competitivas que acabam se envolvendo em um término conturbado. Um filme sobre vidas ordinárias (até certo ponto), como o diretor já fez em outras obras.

Dor e Glória, de Pedro Almodóvar: Um filme muito pessoal do grande diretor espanhol. Antônio Bandeiras interpreta um cineasta nesta obra que é uma evidente autobiografia. A obra é carregada de uma certa melancolia de um grande artista que tenta agora, passando dos 70 anos, transformar sua vida em arte. Um dos melhores filmes do mestre Almodóvar.

 

 

A Favorita, de Yorgos Lanthimos: Com belas atuações, especialmente de Rachel Weisz, essa obra do diretor grego apresenta um jogo de poder entre três mulheres em um ambiente palaciano. Com uma abordagem cínica da realeza, Lanthimos mostra a vida dos mais privilegiados não como algo a ser conquistado, mas como rituais superficiais e grotescos.

System Crasher, de Nora Fingscheidt: Indicado da Alemanha para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, System Crasher é um filme desconfortável do começo ao fim. Sequências criativas e boas tomadas acompanham a história de uma criança problema. O incomodo, aos poucos, se transforma em algo diferente conforme a menina se desenvolve e o espectador entende as dores da personagem.

Honeyland, de Tamara Kotevska, Ljubo Stefanov: Uma grande surpresa do ano, preferido do público e do Juri na Mostra de Cinema de São Paulo, Honeyland acompanha personagens que trabalham com apicultura, de forma simples e justa. Com recursos de documentário, a obra é um deleite visual. Conflitos sobre a produção de mel levam os espectadores a uma reflexão sobre a ganância e como existem outras formas mais equilibradas de se viver.

ROGÉRIO MATTOS: A LITERATURA COMO ARQUIVO DA DITADURA BRASILEIRA

Dezembro 30, 2019

Por

A literatura como arquivo da ditadura brasileira, por Rogério Mattos

Da Revista Brasileira de Literatura Comparada (trechos com breves modificações para exposição em blog)

O contexto

Talvez não seja de difícil compreensão que na atual conjuntura se tornam mais dramáticos todos os esforços em torno das políticas de memória no Brasil. O livro da professora Eurídice Figueiredo, A literatura como arquivo da ditadura brasileira, foi lançado em 2017, ou seja, após o golpe de Estado e o início da ocupação militar e da agenda econômica à americana nos gabinetes de Brasília[1]. Contudo, o estímulo que a levou a ler mais de sessenta livros sobre a ditadura no Brasil (romances e relatos autobiográficos), veio de outra conjuntura histórica, contígua a esta. Em 2014, Márcia Paraquett a convidou a escrever para o livro que viria a se chamar Caminhando e contando, reunião de breves relatos autobiográficos de pessoas que viveram os anos de chumbo. “O meu texto, ‘Geração 1968’ (…) foi o elemento desencadeador do processo de memória, pois depois dele que mergulhei na literatura escrita sobre a ditadura[2]”. Ainda temos que contar mais uma data, a que vai do amadurecimento de suas ideias enquanto a professora ministrava seu curso no PPG de Estudos de Literatura da UFF, em 2015, e a versão lida pelo professor Jaime Ginzburg, responsável por uma “leitura atenciosa” e pela orelha do livro, em 2016.

O tempo parece que se acelerou rapidamente desde então. Em 10 de dezembro de 2014 foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade através de um esforço que, ainda que possa ser considerado insatisfatório em diversos aspectos, constituiu o primeiro ato mais consistente feito pelo Estado brasileiro para a apuração dos crimes cometidos durante a ditadura militar. Talvez nesta data limite, o final de 2014 até todo o ano de 2016, se revelou com mais força o que Jacques Rancière denominou, em outro contexto, de “ódio à democracia”. O livro do coronel e torturador Brilhante Ustra, A verdade sufocada, entrou para a lista dos best-sellers nacionais, enquanto o deputado que dois anos depois se elegeria presidente fazia sua apologia na Câmara em meio a um dia infame da política nacional, “por Deus e pela família”.

O livro organizado por Márcia Paraquett veio no encalço dos esforços pela recuperação da memória nacional nos tempos de repressão. O da professora Eurídice Figueiredo viu surgir, in locu, toda a deterioração do cenário político brasileiro. Como apontou Jaime Ginzburg na orelha do livro, “em tempos em que pessoas saem às ruas para pedir intervenções militares no Brasil, e em que direitos civis são constantemente atacados, este livro age como intervenção de resistência”. O que seria um esforço para aprofundar a confrontação do país com sua história recente, vira um ato de resistência. Entre a leitura dos originais pelo professor, em 2016, e a publicação no início de 2017, as manifestações saudosistas da lógica da Guerra Fria começaram a se tornar realidade com a entrada de elementos das Forças Armadas no governo Temer. Ler o livro da professora Eurídice em 2019, tendo em vista as etapas de seu processo de produção, nos força a remontar toda essa complicada etapa que vai da concretização de um avanço democrático em 2014 até a consolidação do governo protomilitar, miliciano-jucidiário, em curso.

O texto

O livro da professora Eurídice Figueiredo, após se deter, no 1º capítulo, nas aporias da memória, do esquecimento e do perdão na sociedade brasileira, procura traçar, no 2º capítulo, as estratégias da escrita da literatura sobre a ditadura. Ao contrário dos textos historiográficos, o escritor de literatura tem em vista um público mais amplo e “encontra no leitor um elemento ativo na transmissão da memória para que não se apague aquilo que afetou a vida das pessoas[3]”. Assim, a literatura é vista como um campo avançado de consolidação da memória nacional. Com inúmeros livros lançados sobre o tema desde o alvor do arbítrio fardado, a professora se esforça por estabelecer o corpus literário adequado para dar conta de produção tão abundante. O primeiro período (1964-1979) se caracterizaria pelo relato de projetos revolucionários fracassados, cuja tônica é “ora prospectiva e utópica, ora distópica”, como os personagens do romance Quarup, de Antônio Callado, e Pessach, de Carlos Heitor Cony. Entra na lista também a correspondência de presos, em especial as Cartas da Prisão, de Frei Betto.

O segundo período [1980-2000] se caracteriza por relatos autobiográficos de ex-presos políticos exilados, beneficiados pela lei da anistia, que voltaram ao Brasil, como Fernando Gabeira, ou recém-saídos da prisão ou da clandestinidade. Esse tipo de relato autobiográfico aparece também no primeiro período, mas em geral era censurado. Uma exceção marcante é Em liberdade, de Silviano Santiago, que aborda a questão de maneira transversal[4].

Diferente do tipo de testemunho latino-americano, todos os livros do 2º período foram escritos por pessoas intelectualizadas, com outros livros publicados depois. “Esses relatos tiveram uma grande repercussão na época e operaram uma espécie de catarse coletiva após o período de cerceamento da liberdade e de censura da imprensa[5]”. Já o 3º período dos livros analisados se estende de 2000 a 2016, ou seja, até a época em que foi escrito o trabalho da professora. Ela destaca o fato de se tratar de textos ficcionais que, “embora conservem um lado testemunhal, se distanciam do puro testemunho porque os autores não foram superstes, não foram vítimas diretas da repressão, ou, pelo menos, não se apresentam no papel de vítimas de tortura[6]”.

Como consequência, Eurídice Figueiredo vê nos novos romances experiências transfiguradas: fatos vividos pelos autores, muitos deles jovens no período, e que reelaboram suas experiências através do relato ficcional. O caso exemplar para a professora é o de Bernardo Kucinski, com os romances K. e Os visitantes, para os quais ela separou um capítulo à parte. Eles “formam um díptico, em que o segundo faz reverberar questões éticas e estéticas que já apareciam no primeiro[7]”. O primeiro relata a experiência do desaparecimento da irmã de Bernardo Kucinski, Ana, através de uma estratégia narrativa em que Bernardo desaparece enquanto autor e jornalista de profissão, e sobressai a figura de seu velho pai, que leva todo o peso do sofrimento nas costas, agravado pelo fato de ser um imigrante-judeu-escritor-de-contos-em-iídiche, que morre dois anos depois da filha, sem que nada houvesse ainda sido esclarecido. O segundo livro narra a história de visitantes que procuram Kucinski, e assim ele traça outra estratégia narrativa onde discute a recepção de seu primeiro livro ficcional.

O debate

Haveria uma série de questões a serem debatidas a respeito do inventário dos arquivos literários da ditadura desenhado pela professora Eurídice. Vou resumi-las ao máximo. O primeiro seria por qual motivo a poesia não é sequer mencionada em seu trabalho. Por se tratar em sua maior parte de relatos autobiográficos puros ou com parcela significativa de autobiografia, a característica, talvez solipsista ou de teor mais subjetivo da produção poética não pode servir como meio para um novo tipo de veto ao ficcional[8]. Por outro lado, se ela inicia seu livro mencionando a pequena autobiografia que escreveu em 2014, reescrita e publicada no último capítulo de seu livro, ou seja, se menciona a “geração 68”, como não considerar o imenso movimento político, social e artístico daquele ano que, caso o AI-5 não tivesse sido tirado da cartola, provavelmente daria lugar para um movimento do tipo de uma 2ª Semana de Arte Moderna? Todo um cancioneiro estava sendo estabelecido naqueles anos e por que não podem figurar, hoje, como “arquivos da ditadura”?

Em segundo lugar, como já adiantei quando pus em pauta os relatos do professor Joel Rufino dos Santos [clique aqui], existem questões sociais bem mais amplas a serem discutidas. Num inventário quase todo meramente cronológico, Gabeira e Miriam Leitão, Silviano Santiago e Luiz Roberto Salina Fortes, por exemplo, vão sendo apresentados lado a lado, sem indicação alguma do que existe de mais singular em cada um deles fora dos critérios que marcam as diferentes datas. Se a parte crítica não chega a ser tão forte, a apresentação dos romances por vezes parece meras micro-resenhas informativas, desconectadas do desenrolar da história nacional, como se uma não dependesse da outra para além do amplo guarda-chuva “ditadura militar”. Mas isso deve ser visto de uma maneira positiva.

A cronologia tão limpidamente exposta provoca confusões e fracassos do reconhecimento (Gabeira e Salina Fortes? Silviano e Miriam Leitão? Fuks e Kucinski?). O que será que aconteceu? Os pequenos retratos mostrados pela professora são como imagens-lembrança, aquela que “só assegura a progressão de uma narrativa linear[9]”. Ela permite o reconhecimento atento (sim, esta é a pessoa que encontrei em tal lugar mês passado…) e nos leva imediatamente ao fracasso: sensação de déjà-vú, imagens de sonho, fantasmas ou cenas de teatro (essa pessoa interpreta um papel que me é familiar…). Neste sentido, as imagens-lembrança são estilhaços da imagem-cristalina, pequenas lembranças não atualizadas e insuficientes para nos remeter à lembrança pura. Se o reconhecimento atento provoca confusões (e esse é seu êxito), ele nos joga indiretamente na duração. Ao contrário da imagem conhecida do conceito de Bergson, a duração não é subjetiva. “O tempo não é interior em nós, é justamente o contrário, a interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos, mudamos[10]”. Para ser uma descrição cristalina é necessário rodar e não andar em linha reta como numa imagem-lembrança; é necessário estar atentos ao tempo onde nos movemos, como dentro de um redemoinho: “a perfeição cristalina não deixa subsistir nenhum fora: não há nada fora do espelho ou do cenário, apenas um avesso onde passam as personagens, que desaparecem ou morrem, abandonadas pela vida que se reinjeta no cenário[11]”. A perfeição cristalina, Épuras do social.

O álbum de retratos apresentado pela professora Eurídice Figueiredo cumpre bem o seu papel: como inventário de imagens-lembrança, provoca o mecanismo motor, entre a excitação do reconhecimento e o fracasso da resposta. Com esse impulso podemos nos colocar num lugar da duração onde nos sentimos mais à vontade e a partir de então procurar acessar a lembrança pura. Por exemplo, quando Eurídice chega à França, o país, dez anos depois, parece ainda estar sob o impacto do filme Orfeu Negro. Ela foi alvo constante de brincadeiras e confusões por causa de seu nome, o mesmo da protagonista do filme. O Orfeu ainda estava vivo entre os franceses e parecia que a imagem passada de nosso país pelo filme era o que ainda nos representava e não as tristes cenas da ditadura.

Era o Brasil de JK, da Bossa Nova, mas também do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos e do ISEB. Um país que se industrializava, se modernizava, e na mesma medida tinha sua imagem refletida no exterior. Sessenta anos após o lançamento do filme, em 2019, experimentamos um processo similar: depois de se destacar como um protagonista no cenário internacional, processo sempre concomitante às conquistas internas, parece que tudo voltou a estaca zero. Talvez sem querer, lido hoje, o relato autobiográfico publicado no último capítulo do livro da professora, através desse recorte mínimo nos faz dizer, como em Proust, “que o tempo não nos é interior, mas somos nós, interiores ao tempo que se desdobra, que se perde e se reencontra em si mesmo, que faz passar o presente e conservar o passado[12]”.

Esse texto faz parte da série ARQUIVOS DA DITADURA [clique aqui para ler]


[1] Informações mais recentes dão conta de cerca de 2500 militares em cargos de chefia ou assessoramento, movimento iniciado já no governo Temer.

[3] Idem, p. 46

[4] Idem, p. 48

[5] Idem, p. 86

[6] Idem, p. 87

[7] Idem, p. 143

[9] DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 64.

[10] Idem, p. 103

[11] Idem, p. 103-4

RAUL E SEUS BAÚS: DO ROCK AO TANGO, DA FILOSOFIA AO BREGA, UMA OBRA AINDA A SER OUVIDA

Dezembro 29, 2019
A CONDIÇÃO HUMANA
Para jornalista, que acaba de lançar biografia, a fama de “maluco” prejudicou em parte o conhecimento do trabalho do artista, autor de mais de 300 músicas em duas décadas de carreira
    
REPRODUÇÃO

Artista ‘fez do arcabouço ético do rock’n’roll o seu modus vivendi, o seu estar no mundo, mas não tinha o menor problema em dar um pinote nessas fundações’

São Paulo – “Não me preocupei em lustrar a lenda, porque essa já é do tamanho da realidade.” Com décadas de janela na profissão, o jornalista Jotabê Medeiros conviveu com lendas, mitos e pessoas de carne e osso, tudo ao mesmo tempo. De uns anos para cá, dedicou-se a escarafunchar a vida e a obra de alguns ícones da música pop nacional: em 2017, Belchior, com Apenas um Rapaz Latino-Americano. Agora, Raul Seixas, um dos verdadeiros pais do rock, embora o próprio compositor baiano atribua a paternidade ao diabo. No texto de apresentação de Não Diga que a Canção Está Perdida (editora Todavia, 416 páginas), Jotabê já avisa que pôs os pés no mundo real, mas não abdica dos delírios vividos por Raul durante parte de seus 44 anos da vida, encerrada em 21 de agosto de 1989, apenas 19 dias depois da partida de Luiz Gonzaga.

A fama de “maluco beleza” de Raul Seixas, que formou um fiel e perene séquito de seguidores, prejudicou em alguma medida o conhecimento da obra, que não é pequena. Segundo anota o biógrafo, são 312 canções registradas em pouco mais de 20 anos de carreira, “trabalhando gêneros tão distintos quanto tango, country, baião, samba, acid rock, iê-iê-iê, marchinha, forró, folk, brega, xote, xaxado, balada”. Além de dezenas de inéditas com parceiros.

Jotabê cita uma frase de Rita Lee: Raul é o roqueiro com cara de bandido, é o bandido-mocinho, é o Maluco Beleza, não morre nunca. “Raul tinha uma leitura muito profunda da condição do artista no showbiz, uma leitura que externou em canções como A Verdade sobre a Nostalgia, por exemplo. Era muito mais eclético e conhecedor das regras do mundo da música, e acabaram confinando-o num rótulo”, observa o jornalista, que na conversa define Raul como “debochado, mas sensível”: “Eu li as cartas dele para as filhas. É de cortar o coração”. Ou um sujeito que “gostava de passar os verões numa fazenda no interior da Bahia, ouvindo moda de viola”.

Na curva do futuro muito carro capotou
Talvez por causa disso é que a estrada ali parou
Porém, atrás da curva
Perigosa eu sei que existe
Alguma coisa nova
Mais vibrante e menos triste

Em dezembro, com uma máscara na cabeça, Jotabê fez um lançamento informal do livro em um marco de São Paulo, o edifício Copan, falando na rua, do lado de fora de um bar, para uma plateia interessada, sentada em mesinhas ou em pé, e atraindo alguns “malucos” da região – um deles se declarou fã de Raul. Ali, afirmou, entre outras coisas, que o baiano “fez de tudo para se liberar da condição de artista da chamada MPB universitária”. Seria a tentativa de fugir dos rótulos?

“Conforme relato no livro, há diversos momentos de enfrentamento de Raul com a turma da Bossa Nova e, posteriormente, com os tropicalistas. Ele ironiza os protagonistas da MPB universitária. Acho que era deliberado, uma forma de marcar presença primeiro como um lobo solitário da música, um homem que caminha sozinho; em seguida, para dizer que o conceito dele de música era de uma profunda individualidade, feito de brutal independência de movimentos e rótulos”, diz o autor.

Segundo o biógrafo, Raul Seixas foi “indelicado” com a Bossa Nova. E desenvolveu, como define, um “anti-intelectualismo militante”. “Na letra de Tapanacara, ele devolve algumas coisas. Ele se julgava esnobado pelos ‘baianos da Bossa Nova’, que era Caetano, mas também João Gilberto. Quanto ao anti-intelectualismo militante, isso consistia basicamente na forma de ele nunca explicar os subtextos, os jogos intertextuais que propunha nas músicas. Ele não achava necessário teorizar, fugia disso como o diabo da cruz.”

O tapa na cara
Que eu levei de odara
Odara, menina
Que era filha de Nara
Que era neta, prima-dona de Raul

Boas histórias não faltam no livro. Logo no começo, Jotabê narra a “disputa” entre o adolescente Raul, 14 anos, e o disc-jóquei e band leader Waldir Serrão, 17, para ver quem tinha mais discos de rock´n´roll. Surgia uma amizade para sempre e o desejo, como expressou Raul em um diário, de “ser popular no mundo inteiro”.

Depois vem a fúria de dona Maria Eugênia ao descobrir que os filhos Raul e Plínio haviam falsificado as cadernetas de notas – tinham sido reprovados. Antes da surra que fatalmente viria das mãos de Raul pai, os meninos vestiram várias roupas para amortecer o impacto do cinto. Mas, ao entrar no quarto, o pai começou a bater em uma cadeira, enquanto Raul e Plínio simulavam uma súplica, enquanto dona Eugênia se preocupava do lado de fora.

Raul levou um tempo para decidir ser rock star. Pensava em ser escritor, citava Jorge Amado. Em meados de 1962, ele e um amigo, Thildo Gama, formaram Os Relâmpagos do Rock. O primeiro show foi no Good Neighbour Club, onde tocava, entre outros, o contrabaixista Bira, que ficou famoso ao fazer parte do sexteto de acompanhamento de Jô Soares – e que morreu neste 22 de dezembro, aos 85 anos. O grupo teve carreira acidentada: o violonista e pianista Enelmar Chagas quase morreu em acidente, depois ver o Santos sagrar-se bicampeão mundial, em 1963, ao derrotar o Milan no Maracanã, e tempos depois Thildo atropelou um idoso na estrada.

Divulgação

Raul Seixas (o segundo a partir da direita) e Os Panteras participam de programa de TV nos anos 1960

Depois dos Relâmpagos, vieram The Panters, que começaram a fazer shows pela Bahia e passariam a ser chamados de Os Panteras. Raul e sua turma foram convocados para acompanhar Wanderléa e outros cantores da Jovem Guarda em um show em Salvador. Contrariando a fama que viria depois, Raul fazia tudo bem organizado: o contrato dos Panteras tinha regras de conduta e vestuário, além da fixação de pagamento do mesmo valor para os cinco integrantes do grupo. Em 1965, um teste de fogo: Roberto Carlos iria a Salvador para participar do Bossa Broto, um popular programa de calouros da TV Itapoan. Os rapazes do Panthers foram recrutados. No livro, Jotabê conta que havia um menino chamado Pedro Aníbal, da banda Ninos, prestando atenção no ensaio. Depois seria conhecido como Pepeu Gomes.
Discos e clássicos

O primeiro LP surgiu em 1968, Raulzito e os Panteras, pela Odeon. Músicas próprias e versões de Lucy in the Sky with Diamonds, do Beatles (Você ainda pode sonhar) e I Will, de Dick Glasser (Um minuto mais). O segundo álbum viria apenas três anos depois, mas fazendo barulho: Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10 (CBS/Sony) tornou-se um cult. Reunia Raul, o capixaba Sérgio Sampaio, que iria estourar no ano seguinte com Eu quero botar meu bloco na rua, a lenda viva Edy Star e Miriam Batucada. Em 1973 e 1974, Raul lançou os futuros clássicos Krig-ha, bandolo! e Gita. Ali, cantou sucessos eternos como Mosca na sopaMetamorfose ambulanteOuro de toloMedo da chuvaO trem das 7Loteria de Babilônia (título de um conto do argentino Jorge Luis Borges), Sociedade alternativa e Gita, claro.

Na pesquisa para o livro, Jotabê observa que a censura acreditou que Ouro de tolo era um ataque a Roberto Carlos. Uma das origens da canção está em um passeio pelo Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. Raul e o parceiro Mauro Motta estavam com filhos pequenos e viram uma mulher de casaco de pele, meia e salto alto atirando coisas para os macacos. Um deles vai até o fundo da jaula e joga cocô na visitante. “Raul destilava sarcasmo contra as ambições burguesas, a busca incessante da segurança e do conforto social”, diz o jornalista, lembrando que os “4 mil cruzeiros por mês” citados na letra correspondiam praticamente ao que o artista recebia, na época, como produtor musical da gravadora CBS. Uma canção que estimulava a rebeldia, mas “apoiada em coisas verídicas”, declarou o mutante Arnaldo Baptista.

Nos dois discos, muitas parcerias com Paulo Coelho, que depois se tornaria escritor famoso mundialmente. No livro de Jotabê, o “mago” responde pelo trecho mais polêmico, obviamente explorado nas resenhas sobre a biografia. O biógrafo encontrou um documento – reproduzido na página 354 – do Centro de Informações do Exército, de 22 de abril de 1974, que apontava Paulo Coelho e Adalgisa Rios Magalhães (esposa do letrista) como subversivos, que poderiam ser presos por intermédio de Raul Seixas.

Prisão e tortura

Um mês depois, em 24 de maio de 1974, Raul Seixas ligou para Paulo Coelho para avisá-lo que tinha sido intimado a comparecer ao Dops, no dia 27, para prestar esclarecimentos sobre o disco Krig-ha, bandolo!, que àquela altura já tinha mais de 100 mil cópias vendidas. Pediu ao parceiro que fosse com ele. Na sede da polícia política, foi levado a uma sala. Voltou meia hora depois. Paulo esperava na recepção. Em vez de falar com ele, Raul foi até um orelhão e começou a cantarolar: My dear partner, the men want to talk you, not to me (“Querido parceiro, os caras querem falar contigo, não comigo”). Estava tentando transmitir um recado ao amigo. Paulo não percebeu. Na hora de irem embora, foi detido e passou a ser interrogado. Adalgisa também foi presa. Os dois terminaram liberados após interrogatórios, mas ao sair de lá Paulo Coelho foi emboscado e detido novamente, para então passar por duas semanas de torturas.

“Seria de fato uma injunção da polícia ou de fato um acordo de colaboração?”, pergunta-se Jotabê sobre o documento do I Exército. Ele não aponta Raul como informante, como alguns se apressaram em concluir, mas relata que a dúvida passou a atormentar Paulo Coelho, que depois do episódio não conseguia contato com o parceiro. O agente Alladyr Ramos Braga, que assina o relatório confidencial, já morreu.

O biógrafo acredita que a polêmica nunca será totalmente explicada, lembrando que a única testemunha viva daqueles fatos é Paulo Coelho. “O que ele sente a respeito eu creio que o livro deixa claro. Não se sabia disso antes. Mas há muita gente que não respeita o sentimento do próprio Paulo, que o tem como um vilão permanente, com seu cavanhaque e seus ditados de magia apropriados para a caricatura dos moralistas. Em minha opinião, nada muda com a revelação dessas tensões, desse ambiente de desconfiança. Apenas os personagens passam a ter uma maior humanidade, em vez de habitarem caricaturas”, avalia.

Acervo Instituto Paulo Coelho/Divulgação

Paulo Coelho e Raul Seixas: ex-parceiros voltaram a se encontrar em 1989

Raul Seixas e Paulo Coelho se encontraram pela última vez em 1989, durante show no hoje fechado Canecão, no Rio de Janeiro. Eram as faixas de A panela do diabo, último disco de Raul, em parceria com Marcelo Nova, do Camisa de Vênus.  No palco, Marcelo Nova conseguiu a proeza de levar o já consagrado escritor, surpreendendo Raul. Um reencontro afetuoso e emocionado. Os antigos parceiros cantaram Sociedade Alternativa. Canção escolhida pelo norte-americano Bruce Springsteen para abrir seus shows em São Paulo e no Rio em 2013, depois de ser apresentado a um leque de opções, que incluam Legião Urbana, Milton Nascimento e Titãs.
Chamando para a briga

Humanidade também não falta nessa história. Jotabê conta sobre os cutucões de Raul em colegas como Silvio Brito, que compôs Tá todo mundo louco, em 1974, inspirado em Ouro de tolo. O artista baiano cita o compositor mineiro em pelo menos duas canções, As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor e Eu também vou reclamar, na primeira falando em “certos cabeludos” dos quais não se sabe direito qual é o posicionamento político e na outra sobre um “chato” que grita em seus ouvidos “pare o mundo que eu quero descer”. Sobrou até para Belchior, citado três vezes nessa segunda canção.

“Já não existe qualquer diferença entre materialismo, idealismo. Todos os ismos são iguais. Eu não estou me queixando de nada porque eu não sou um rapaz latino-americano”, declarou em uma entrevista ao Jornal de Música, coletada por Jotabê. “Esse regionalismo não está em mim. Eu sou uma pessoa que vive 1976. Eu sou Raul Seixas, o único. Eu não pertenço a qualquer grupo político ou regional. Eu sou fruto do pós-guerra. Sou um cara cheio de influência. Eu sou Raul Seixas”, disse ainda. O biógrafo anota que não ficou mágoa entre os dois, que chegaram a fazer show juntos. E lembra de uma apresentação nos anos 2000, em Fortaleza, em que Belchior fala com carinho de Raul e canta trechos de Metamorfose ambulante e Maluco beleza. Mesmo a “briga” com Silvio Brito era “completamente insincera”, diz Jotabê, apenas “uma maneira de aquecer um circo de animosidades fictícias”.

Na conversa com o público, o jornalista disse que Raul “chama para a briga”, e que isso custou caro. “Ele se indispôs com diversos executivos de gravadora”, observa. “Algumas vezes, porque insistia em manter o controle total sobre os músicos que levava para os estúdios. Ficou fulo com um produtor, Gastão Lamounier, que tentou tirar Rick Ferreira de cena na gravação do disco Mata Virgem.”

Ao compositor Roberto Menescal, ele desenvolveu a teoria dos artistas “número 1”, protagonistas, incluindo-se entre eles. “Raul, embora fosse de natureza doce e agradável, sacou que era preciso ter alguma dose de arrogância e capacidade de blefe para se manter na crista da onda do showbiz. Essa foi uma de suas primeiras tiradas nesse sentido, mesmo se referindo a um amigo e ídolo, Sérgio Sampaio”, conta o biógrafo.

Para Jotabê Medeiros, a obra de Raul Seixas se sustenta, de certa forma, em afirmação e negação constantes. “Raul era um radical do rock’n’roll. Fez do arcabouço ético do rock’n’roll o seu modus vivendi, o seu estar no mundo. Mas não tinha o menor problema em dar um pinote nessas fundações, gravar um tango como Piazzolla, um reggae como Bob Marley, um baião com Gonzaga. Tensionava as coisas filosoficamente e daí escrachava tudo com um Rock das Aranha. Era como se forçasse limites da própria noção de pureza, ‘sujando’ as coisas com uma apreciação sarcástica e espirituosa da vida e da condição humana.”

MUSIC THUNDER VISION TEM CAETANO VELOSO

Dezembro 29, 2019

BOLSONARO VETA PROJETO DE LEI QUE GARANTE INCENTIVOS AO CINEMA BRASILEIRO

Dezembro 28, 2019
Resultado de imagem para imagens de filmes brasileiros
Publicado em 28 dezembro, 2019.

De Luciana Amaral na Ilustrada da Folha de S.Paulo.

Jair Bolsonaro vetou, na íntegra, o projeto de lei que institui a prorrogação de benefícios fiscais concedidos pelo Recine (Regime Especial de Tributação para Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica) até 31 de dezembro de 2024.

O regime concede incentivos tributários a empresas que operam em aquisições do setor no mercado interno, importam com o objetivo de interiorizar ou modernizar salas de cinema e investem em obras nacionais independentes.

A Presidência justificou o veto por “razões de inconstitucionalidade”. O projeto vetado criaria despesas obrigatórias ao Executivo sem que se tenha indicado a fonte de custeio e não teria apresentado impactos orçamentários, o que viola a Lei da Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2019, informou.

(…)

A NEGRA PALAVRA DE SOLANO TRINDADE, POR MARCO CONCEIÇÃO CORREA

Dezembro 27, 2019

Imagem: Reprodução / Catraca Livre

A negra palavra de Solano Trindade

Por Marco Aurélio da Conceição Correa

Do Justificando

Eu canto aos Palmares
odiando aos opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias

Ser preto no Brasil incomoda. Incomoda os racistas que não assumem seu racismo. Incomoda os progressistas que não entendem seu racismo. Incomoda os negros que sofrem só pela cor de sua pele. Porém, o incômodo é o primeiro passo para a inconformação que resulta na transformação de uma realidade. É o incômodo de sentir o racismo na pele que resulta na sua constatação em um país de racismo, sem racistas confessos. E após a constatação do histórico racismo estrutural à brasileira que se dá a mudança. Mas a mudança de uns pode significar o incômodo de pequenas parcelas brasileiras que vivem no conforto de seus privilégios históricos. É dentro desse contexto que encontramos na peça Negra Palavra: Solano Trindade uma afronta ao racismo.

Lá vem o navio negreiroCom carga de resistênciaLá vem o navio negreiroCheinho de inteligência

De 18/10 a 10/11 no SESC Tijuca no Rio de Janeiro, 10 atores negros trazem à vida novamente Solano Trindade – o poeta do povo. Com uma parceria entre o Coletivo Preto e a Companhia de Teatro Íntimo a peça encena as mais variadas poesias de Solano de maneira espetacular, passando pelos seus escritos sobre as memórias da infância, a ancestralidade das matrizes africanas, a ludicidade da cultura popular do maracatu, a intimidade do amor e a potência de sua emancipação política. A poligamia dos poemas personificados pela peça representa a dimensão da trajetória de Solano Trindade como  o poeta, ator, pintor militante e teatrólogo por mais de três décadas por diversos estados brasileiros.

Negra Palavra é mais uma peça que compõe o ascendente cenário de espetáculos negros que vem compondo o Rio de Janeiro nos últimos anos. Como a maioria das peças irmãs, Negra Palavra vem esgotando e lotando os principais teatros cariocas, reafirmando a existência de um teatro negro, como nos moldes de outrora do Teatro Experimental do Negro concebido por Abdias do Nascimento, como o próprio Teatro Popular Brasileiro criado por Solano Trindade.

A atual ascendência do teatro negro é um resultado do árduo trabalho diversos de profissionais negros. O teatro negro é um reflexo do movimento de emancipação política e estética que o cenário brasileiro tem vivido dentro dos últimos anos. E tem ganhado cada vez mais repercussão conforme que o mercado está descobrindo o potencial do povo negro. E isso é positivo, pois é um passo para maiores conquistas, como o poder político, sobretudo.

Mas esse sucesso incomoda. Racializar um espaço destinado historicamente para elites – intelectuais e econômicas – incomoda. O dramaturgo Rodrigo França atesta precisamos discutir esse teatro branco do Rio de Janeiro, que se coloca como universal. Racializar o teatro não é apenas incluir profissionais negros no palco, mas sim repensar essas estruturas que não se limitam ao contexto do Rio, mas sim vão nos alicerces da sociedade brasileira. Racializar é pensar o branco como mais uma raça e etnia, num contexto sócio-político, refutando que o que representa menos estatisticamente, no sentido demográfico, não pode ser considerado universal e representativo. O particular, com a experiência violenta do racismo, se torna universal.

Na proposta do teatro íntimo os atores direcionam a sua performance a um espectador específico, declamando no papel, ou interagindo em meio as poltronas. A intimidade de um olhar fixo pode causar incômodo, mas é uma reação proposital, pois é um espanto, uma surpresa positiva, ter atores negros exaltando a beleza e a riqueza negra na intimidade do teatro. Mas o incomodo se torna um afago, um acalento preciso contido na arte e na cultura que abraçam aqueles que mais precisam.

Historicamente encontramos as belas artes no ocidente associadas a uma ideia de superioridade, inteligência e poder, se distanciando assim de uma característica popular. Na ilustração moderna, “a criação de uma estética científica, reflexiva — superficial e não-autêntica do ponto de vista do ser humano/emocional —  estabelece uma quase-separação entre uma forma de arte elitista e uma “popular”” (ANI, 1994, p. 206). Assim, a predominância do “modo analítico na experiência Européia quase eliminou a sensibilidade para a beleza imediatamente perceptível e sua definição. É a convicção Européia que uma experiência de arte deva ser difícil; essa profundidade só é compreendida através da luta intelectual” (ANI, 1994, p. 205)[1]. Então, o teatro difícil, inalcançável, intangível seria assim recompensador na tentativa de alcançar um estado superior de consciência. Podemos encarar aqui essa dificuldade tanto no parâmetro científico do intelectual, vanguardista na crítica política, do luxo no campo econômico e do transcendente no campo da religiosidade.

Há poetas que só fazem versos de amorHá poetas herméticos e concretistasenquanto se fabricambombas atômicas e de hidrogênioenquanto se preparam exércitos para guerraenquanto a fome estiola os povos…

Dentro destes paradigmas o critério de verdade que identifica um teatro como “verdadeiro” ou superior acaba restrito por aqueles de detém o poder, podendo ser o científico, o econômico, o político, ou o religioso. Então num contexto de hierarquia branca, é o crítico de teatro, o militante popular, o proprietário de teatros, e o detentor da moralidade que atesta o que é bom ou não.

“Esta tentativa, por parte dos Europeus, de refletir sobre a natureza da beleza se espalha em sua cultura experimentada, e uma conseqüência adicional é a intelectualização da experiência artística. Na cultura Européia, “arte” se torna o domínio da elite intelectual, porque são eles (na tradição do Simpósio de Platão e da Poética de Aristóteles) que determinam os critérios de sua perfeição; São eles que dizem o que seus atributos devem e não devem ser. O participante comum na cultura não tem acesso, nem é considerado capaz de apreciar arte “verdadeira.” O que ele aprecia não é considerado “arte;” Nem é “belo.” Novamente, retornamos às definições Platônicas e encontramos o precedente para uma estética racionalista. Pois “beleza,” bem como o “bom,” é identificado com o “verdadeiro.” Todos são apreendidos pelo mesmo método. A posição relegada para a experiência emocional é baixa. É a “razão” que triunfa” (ANI, 1994, p. 202).

O teatro negro então vem como ruptura a estas concepções não só por mera representatividade, mas sim para romper com os padrões estéticos e políticos do teatro ocidental e assim repensar uma linguagem teatral que contemple em melhor forma a vastidão da experiência negra. Enquanto “as “belas artes” no Ocidente tendem a se tornar meramente exercícios intelectuais” (ANI, 1994, p. 202), este movimento artístico negro, que além do teatro encontra semelhantes no cinema, na literatura, na música dentre outros, busca experimentar outros sentidos de mundo na sua teatralidade, reafirmando o popular na arte. “No entanto, para a maioria das pessoas é o sensualmente imediato e não o intelectualmente mediado que dá prazer, que evoca uma resposta emocional”(ANI, 1994, p. 202). Não que o teatro negro não possua um caráter intelectual, mas a produção de conhecimento da população negra, maioria demograficamente no Brasil, está calcado em outros parâmetros e sentidos. Devido a dominação branca no que tange ao reconhecimento do saber, a organicidade é um papel fundamental para se pensar a intelectualidade negra. Subvertendo a ideia de um intelectual ilustrado distante, o teatro negro dramatiza a experiência negra no campo do sentir, dentro de todos os aspectos dos sentidos humanos, fugindo da sociedade em que vivemos do império das imagens.

E a que propósito se cabe pensar as artes em outras perspectivas? Trazendo em cena outro grande poeta negro, Luiz Silva Cuti: “a arte é a melhor maneira de se caçar fantasmas, ideal para colocá-los a nu de seus disfarces” (2010, p. 10)[2]. Então afirmar um teatro negro com todas as palavras é uma forma de assombrar o racismo, “afinal, quem tem medo da palavra “negro”?”(2010, p. 11). E a palavra negra de Solano Trindade afirma este combate,

“Tendo a palavra em foco servido para ofender, no momento em que o ofendido assume-a dizendo “eu sou negro”, o que ocorre é que ele dá a ela um outro significado, ele positiva o que era negativo. Aqui acontece algo estranho para quem ofende. Se a palavra perde o poder de ofender, ele, o ofensor, perde um instrumento importante na prática (discriminação) e na manutenção psíquica (o preconceito) do racismo. Por outro lado, a palavra “negro” não o deixa em paz, por trazer em sua semântica a histórica opressão escravista, colonialista, e desafia a convicção em que se baseia a doença psíquica do racismo. Qualquer circunstância de inferioridade ou igualdade a um negro desequilibra o branco racista, impelindo-o a comportamentos agressivos que podem, de alguma maneira, redundar em punição, inclusive a vingativa” (CUTI, 2010, p. 5)

A raiva e a rebeldia seriam então estágios seguintes a inconformidade causa pelo incômodo da desigualdade. O teatro negro é revolta, como no negro revoltado de Abdias. Revolta não no sentido estigmatizado da raiva, mas de uma revolta coletiva contrária a opressão da parcela majoritária da população brasileira. A inconformidade é política. E a dramatização da poesia de Solano Trindade incita a revolta necessária para a transformação.

Vinde poetas, pintoresEngenheiros, escritoresNegociantes e médicosPara a grande reuniãoCombater o fascismoQue mata nossa nação

A performance dos dez atores no palco produz uma sintonia que ofusca os limites entre atores-platéia, performance-espectador. Ofuscando também as barreiras que delimitam os personagens, cada ator é representante do seu corpo no palco, mas na sinestesia da teatralidade de Negra Palavra, os atores se fundem em uma massa só. Massa essa que pode ser a ternura do amor de Solano, o popular das culturas tradicionais e o povo que se levante em riste contra as injustiças.

“Pode-se identificar no artista em performance uma máquina de guerra, ou seja, uma força capaz de questionar máximas, borrar clichês, romper e superar os comportamentos impostos e opor-se ao status quo, oferecendo ao espectador novos prismas para estranhar o que, até então, lhe parecia normal” (TINOCO, 2009, p. 240)[3].

A arte assim, no teatro ou em outras expressões, pode representar uma outra possibilidade de manifestação política em tempos de esvaziamento de sentidos da militância. Virtualmente ou fisicamente, a organização política acaba se distanciando cada vez mais do que nunca devia se distanciado num sistema democrático, o povo. Aproximar a política do campo dos afetos e dos desejos é uma forma de experimentar outras formas engessadas pelos discursos de ódio. É encontrar no amor a revolução. É preciso:

“pensar a política como um campo aberto às experimentações. Experimentações/experiências de ações coletivas fundadoras de novas possibilidades ao existir… Política hoje, no contemporâneo, talvez nada mais seja que inventar novas subjetividades em deriva, isto é, constituir processos biopolíticos de resistência aos poderes instituídos, sejam eles processos globais e coletivos ou processos de refundação de si mesmo. O político, pode-se dizer, é o mais alto momento da ética, mas também processo singular de constituição estética de si” (VASCONCELLOS, 2012, p. 13)[4].

Refundar o contemporâneo é o movimento sair do luto da necropolítica e partir para a luta contra as políticas da pulsão de mortes. Como se deu o processo criativo de Negra Palavra, após o brutal assassinato do idealizar da peça, o querido Eliton Torres. Devolver os sentidos em tempos de escassez, é poetizar a morte como forma de revolta, transformação. Fundar a necropoética. É encontrar na dor do luto a pulsão para semear o amor em poesia de coletivo. Poesia no sentido de criação, de sentido de realidade e existência.

“A memória do poeta brinca, irreverente, com o passado, o presente e o futuro: altera sua ordem, não respeita sua sucessão; abre, a cada vez, um novo início da não continuidade, do não progresso, da não evolução. A memória se faz companheira e amiga da invenção, de um novo tempo, de um novo pensar” (KOHAN, 2004, s/p)[5].

É assim que reafirmamos que precisamos ler Solano Trindade, que precisamos ler escritoras e escritores negros.

Solano por ser o poeta do povo – preto e periférico – não pode ser confundido como um poeta menor, um poeta pobre. O paradigma não é entre pobreza e riqueza, mas sim o poder  que está por trás destes. O problema é viver em uma sociedade onde dinheiro é sinônimo de riqueza e de poder. A hegemonia imposta pelo neoliberalismo que detém a riqueza capital, não luta por produzir riquezas não materiais, nem de proporcionar uma riqueza coletiva que não conceba a própria miséria que ela despreza. “se tem gente com fome / dá de comer”. As elites econômicas buscam apenas por manter a posição superior na relação de poder social. Solano se torna assim é rico então não só por defender o povo, mas por possuir na riqueza de suas palavras o poder de questionar a hegemonia. Solano Trindade é um vento forte africano que assopra a crise de escassez de sentidos.

No dia que eu deixar de ser euNo dia em que eu perder a consciênciaNo mundo que idealizei…Neste dia…Eu sorrirei sem saber do que sorrio

Marco Aurélio da Conceição Correa é graduado em pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

“DEMOCRACIA EM VERTIGEM” ESTÁ NA PRÉ-LISTA DO OSCAR E É ELEITO PELO NYT ENTRE OS MELHORES FILMES

Dezembro 27, 2019

“O filme mais assustador do ano”, descreveu o jornal norte-americano, em uma seleta lista de 10 produções mundiais

Foto: Divulgação

Jornal GGN – O documentário “Democracia em Vertigem”, da cineasta brasileira Petra Costa, obteve neste mês de dezembro dois grandes reconhecimentos: entrou para a lista dos 15 filmes que podem ser indicados ao Oscar 2020 e foi considerado, pelo The New York Times, um dos 10 melhores filmes de 2019.

O documentário dirigido por Petra narra o processo de impeachment da ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, considerado um golpe parlamentar em meio à crise política do país, que culminou na prisão do ex-presidente Lula e na eleição do ultra-direita Jair Bolsonaro. Foi lançado no Netflix em junho deste ano, com uma ampla repercussão por mostrar um visão externa do complexo cenário político brasileiro.

 

“Democracia em Vertigem” vem recebendo indicações em importantes premiações internacionais do cinema, entre eles três indicações ao prêmio de documentários IDA Documentary Awards, como melhor documentário, melhor direção para Petra Costa e melhor roteiro. Também apareceu indicado como melhor documentário no Gotham Awards, reconhecimento do cinema independente.

Na lista de pré-indicados ao Oscar, divulgado no dia 15 de dezembro, a produção de Petra aparece ao lado de outros 14 filmes que podem figurar na importante premiação mundial do cinema. A lista definitiva com os cinco concorrentes será anunciada no dia 13 de janeiro.

Além disso, o The New York Times também apontou o filme sobre o impeachment de Dilma como os 10 melhores do mundo produzidos este ano. “The Edge of Democracy”, como é o nome do título em inglês, foi descrito como um “documentário angustiante” pelo jornal.

“Uma análise cuidadosa dos eventos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro, presidente populista do Brasil, é o filme mais assustador do ano”, apontou o NYT.

ARTISTAS BRASILEIROS LANÇAM MÚSICA PARA DENUNCIAR A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA MUNDIAL

Dezembro 26, 2019
ARTE E PROTESTO
Letra de ‘Para Onde Vamos?’, composta por Beto Villares e Carlos Rennó, foi feita há nove anos e atualizada para os tempos atuais
    
YOUTUBE/REPRODUÇÃO

Dirigido por Toni Vanzolini, o vídeo em preto e branco foi idealizado por Isabela Prata, membro do Famílias pelo Clima/Parents for Future Global

São Paulo – “Que geleira tem que ainda derreter/ Pra quebrar a pedra de gelo que tem no peito, que tem o podre alto poder/ Quanto tempo vamos seguir sem de fato agir?”, questiona a canção Para Onde Vamos?, lançada recentemente, com grandes nomes da música brasileira pelo grupo Família pelo Clima, uma das organizações que participam das greves climáticas. A canção conta com intérpretes como Arnaldo Antunes, Zélia Duncan, Moreno Veloso, Céu, Zeca Baleiro, Chico Brown, Moska, Roberta Sá, Ná Ozzetti, MC Soffia e o coral do Projeto Guri. Segundo o compositor do single, Carlos Rennó, que a escreveu com Beto Villares, a música foi feita há nove anos, mas continua atual, já que os desastres ambientais não diminuíram – pelo contrário.

“O fato das pessoas se surpreenderem que a canção tem nove anos diz muito sobre a sonolência da sociedade diante da destruição ambiental, do aquecimento global e o futuro desastroso que está por vir”, disse o autor, em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual.

Dirigido por Toni Vanzolini, o vídeo em preto e branco foi idealizado por Isabela Prata, membro do Famílias pelo Clima/Parents for Future Global. A música, que já tem legendas em alemão, espanhol e inglês, deve alcançar os grupos europeus ligados a greves climáticas, como o Fridays for Future e o Parents for Future.

Ouça a entrevista

 

Ouça a música:

EM ‘PIADA PRONTA’, ILUSTRADOR RETRATA E REFLETE SOBRE O GOVERNO BOLSONARO E SEUS ELEITORES

Dezembro 26, 2019
UMA TIRA DE ÓDIO
Autor de desenhos ácidos e críticos, Leandro Assis retrata declarações grotescas do presidente e critica preconceito de parte da sociedade
  
REPRODUÇÃO

Com as declarações do presidente do Brasil em suas lives, diversos quadrinhos ácidos e bem humorados foram criados por Leandro Assis

São Paulo – Para o artista gráfico Leandro Assis, o governo Bolsonaro é a “inspiração perfeita” de suas tirinhas e quadrinhos. A partir  das declarações do presidente do Brasil em suas lives, como a de “as pessoas podem fazer menos cocô para melhorar o clima do planeta”, o autor coleciona diversos quadrinhos ácidos e bem humorados.

Para debochar do presidente, Assis se utiliza de um perfil no Instagram, mas também retrata outras figuras que destilam ódio, como o governo do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, em outra série, Figuras Odiosas do Brasil. “Eu era roteirista e me tornei quadrinista bem no momento que esse governo desastroso entrou no poder. É muito duro aguentar ver amigos e parentes ainda defendendo o que ele faz, então a maneira de extravasar é pelo desenho. Esse governo é uma piada pronta, mas o primeiro impulso foi desenhar as figurinhas odiosas”, conta Leandro, em entrevista às jornalistas Ana Rosa Carrara e Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual.

Não é só o governo Bolsonaro que inspira o quadrinista. A classe média brasileira que ajudou a eleger o atual presidente também é retratada em suas obras. Em Os Santos – Uma tira de ódio, ele mostra a relação de uma família com a empregada doméstica Edilsa, que sofre com o racismo e assédio moral por parte dos patrões.

Em uma das tiras, Assis mostra Edilsa acordando cedo, pegando sua condução e enfrentando assédio sexual na rua, enquanto os patrões dormem. Ao chegar no trabalho, é esculachada pela patroa. “A periferia acorda mais cedo para que a classe média alta tenha o pão e a manteiga na mesa. Há uma falta de empatia, as pessoas não percebem a realidade do outro. Eu fiz muitas tiras sobre o governo e aquilo estava me limitando, então quis retratar as pessoas que elegeram o Bolsonaro e essa falta de tolerância”, explica o desenhistas.

Ele também comenta o episódio terrorista ocorrido na última terça-feira (24), na sede do canal do Youtube Porta dos Fundos, em que um grupo de extrema-direita com a bandeira integralista, que em dezembro do ano passado invadiu a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, reivindicou a autoria do ataque à sede da produtora.

“Se não fosse tão grave, pareceria piada. Movimento Integralista é coisa dos anos 30, totalmente nazista e ataca a liberdade de expressão. É um horror, assim como a eleição de Bolsonaro. O presidente não é o culpado disso, mas é o reflexo do brasileiro preconceituoso. Ter integralista, hoje em dia, seria uma piada do Porta dos Fundos de tão loucura”, afirmou.

Ouça a entrevista: