Archive for Março, 2022

CULTURAS ALIMENTARES INDÍGENAS SEGUEM VIVAS APESAR DO AVANÇO DO AGRONEGÓCIO

Março 30, 2022
  1. ALIMENTO É SAÚDE

COLETIVA E ANCESTRAL

Coletividade e ancestralidade são pontos centrais para conter o domínio dos latifúndios e ultraprocessados

Pedro Stropasolas

Março de 2022.

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“É um alimento saudável, é um alimento que tem espírito. É um alimento que dá energia, que une o povo”, destaca a diretora de Comida Ancestral – Produção Comida Ancestral

A cozinha indígena é uma cozinha de cultura. É uma cozinha comunitária, para a coletividade

Falar de cozinha indígena não é falar de ingredientes, é falar de cultura alimentar.

“A gente não está falando dessa cozinha histórica, parada no tempo, dos cronistas e viajantes. A gente está falando de uma cozinha de um povo que está vivo. Da mesma forma que é preciso respeitar os povos indígenas, as culturas alimentares indígenas também precisam ser respeitadas. E porque elas estão vivas”, destaca a chef Tainá Marajoara.

A indígena carrega na culinária os saberes de seu povo marajoara. Desde 2009, ela vem realizando uma cartografia da cozinha amazônica. E fala com propriedade: o lugar de apagamento dos conhecimentos ancestrais, imposto pelos latifúndios e pela colonização, é extremamente prejudicial para os povos indígenas. 

:: “Indígenas querem sua sustentabilidade”, diz deputada Joenia Wapichana ao Programa Bem Viver :: 

“O agronegócio nos tira da história da humanidade desde o seu primeiro momento, quando nos tira a alma, quando nos tira a terra, quando nos tira a nossa relação cosmológica com a dita civilização. Só que quando ele chega junto com a igreja e com a colonização, ele nos tira tudo para nos tornar escravos. E isso se repete hoje, 522 anos depois”, pontua. 

No arquipélago de Marajós, território originário de seu povo, o avanço dos arrozais e o uso massivo de agrotóxicos forçaram os indígenas a viverem com fome. E sem poder plantar. 

Iacitatá

Hoje, em Belém, o ponto de cultura iacitata é uma forma da indígena mostrar que é possível enfrentar este etnocídio cozinhando de forma saudável, e respeitando as comunidades. 

Todos os alimentos são de base comunitária e agroecológica, e também vindos de assentamentos da reforma agrária, como o Óleo de Patauá e a manteiga do Marajó. 

“Não entra na nossa cozinha um óleo de soja. Porque cada gota daquele óleo de soja que cai na panela, é um companheiro que cai no campo. Cada milho transgênico é um parente que é expulso da sua terra. Cada queimada é uma estrela no céu apagada”, explica Marajoara .  

“Esse monte de cheiro, aquilo que é cheiro do tamuatá, o cheiro do bucho, o cheiro do peixe, o cheiro da carne do búfalo, o cheiro da chicória no dedo da minha vó. Então são esses cheiros e essas percepções, e que compõem uma história, que foram para dentro da cozinha do iacitátá”, completa. 

A cultura mura

Professora da rede estadual de Rondônia,  Márcia Mura também recorda da avó ao lembrar do hábito de comer gongos, pequenos bichinhos que ficam dentro do coco de babaçu. 

“A gente coletava esses babaçus, minha vó quebrava bem na pontinha. Ele é lisinho, branquinho, O gosto dele é do leite da castanha do babaçu. Uma delícia. Para mim é um dos pratos maravilhosos”, relembra a docente.

No mestrado, feito na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Márcia se aprofundou no estudo da história oral de quatro mulheres, sendo uma delas sua avó. O trabalho resultou no livro “O Espaço Lembrado – Experiências de Vidas em Seringais da Amazônia” . 

Foi a partir deste trabalho, que Márcia percebeu que havia uma memória indígena invisibilizada em sua família. 

Em 2016, após defender a tese, a docente desejou voltar a um dos locais símbolo de sua ancestralidade Mura. Decidiu se estabelecer no distrito de Nazaré, distante 12 horas de barco saindo da capital Porto Velho.

“Eu tinha morado lá quando era criancinha, junto com minha vó. Os encantados das florestas e das águas já me conhecem”, relembra.

Perseguição e etnocídio

Mura começou, portanto, a lecionar na Escola Francisco Desmorest Passos como professora de Geografia, com o propósito de aprofundar a Pedagogia da afirmação indígena no ambiente escolar.

Assim que chegou, propôs um debate, entre a direção e os professores: mudar o nome de um dos principais eventos da escola, a Feira Gastronômica.

Na sua opinião, se o objetivo do encontro era valorizar a cultura local, ele poderia ser chamado de Encontro de Saberes e Sabores, como uma forma de reafirmar o papel da alimentação tradicional como uma cultura alimentar.

“Muitas capitais se apropriam do alimento tradicional por meio do termo gastronomia. Expliquei toda essa questão da apropriação por parte das receitas gourmet, que se utilizam do nosso conhecimento, que higienizam nossas comidas dentro de uma perspectiva capitalista e burguesa”, pontua.

Em agosto de 2021, Mura foi afastada da unidade pela direção da escola por supostamente insistir em “inserir a temática indígena” na sua forma de lecionar. 

Há quase seis meses sem lecionar e sem receber salários, Mura ainda espera uma posição da Secretaria Estadual de Educação. Ela alega ter sido vítima de etnocídio, racismo e perseguição política. 

A educadora ainda acredita na manutenção da cultura mura, apesar dos projetos desenvolvimentistas que se expandem pelo Rio Madeira, no sul da Amazônia.

“A gente ainda mantém um modo de ser indigena, um modo de ser mura,  uma ligação com o ambiente. E luta para garantir o que resta desse Bem Viver nosso. Isso inclui todos os saberes e sabores que vem dos nossos antepassados”, acredita. 

Comida Ancestral

Os hábitos alimentares de diferentes etnias pelo Brasil serão retratados pela cineasta Nicole Allgranti, em Comida Ancestral. O documentário está em fase de finalização e teve a maioria das cenas filmadas em terras de etnias que vivem no estado do Acre.

“Como disse o povo kuikuro, não existe isso de café da manhã, almoço, jantar. Come quando tem. Quando a floresta proporciona a caça. Por isso que os roçados são tão importantes, os milhos, as macaxeiras, a manutenção das sementes”, aponta a cineasta.

Realizado pela Taboca Filmes, Nicolle assina a direção junto a dois indígenas: Isa Bari Huni Kuin e Mocha Noke Koi.

“É um alimento saudável, é um alimento que tem espírito. É um alimento que dá energia, que une o povo em volta da caça, da pesca, da forma de preparo. E sempre quando uma família está comendo, a outra está comento também. Ninguém come sozinho. Ninguém quer um alimento só para si, os alimentos são compartilhados nas aldeias”, pontua.  

A mesma visão é compartilhada por Tainá Marajoara: “Ela não é uma cozinha para agradar o rei, para satisfazer um desejo absolutista. A cozinha indígena ela é uma cozinha de cultura. É uma cozinha comunitária, para a coletividade”, finaliza.

Ajude a equipe

Para apoiar a equipe de Comida Ancestral na finalização do documentário, a produção disponibiliza uma vaquinha virtual ou o Pix da produtora Erica Rosendo: 369.868.188-90 (CPF). 

É recomendado também entrar em contato com a diretora Nicolle Allgranti para mais informações de como contribuir: tabocca@gmail.com.

Edição: Douglas Matos

A LEVEZA DAS LINHAS-CORES DE ELIFAS ANDREATO, O MAIOR ILUSTRADOR DE CAPAS DE DISCOS DO BRASIL

Março 29, 2022

ELIFAS ANDREATTO

O artista plástico tinha grande projeção internacional e sempre se posicionou, em suas obras, contra a ditadura militar

Elifas e sua capa do álbum Nervos de Aço, de Paulinho da Viola.Créditos: Montagem/Redes Socias/Reprodução
Julinho Bittencourt

Por Julinho Bittencourt

Escrito en CULTURA el 29/3/2022 ·

O artista plástico paranaense Elifas Andreatto morreu nesta terça-feira (29), aos 76 anos. A notícia foi confirmada na página do Instagram de seu irmão, o ator e diretor teatral Elias Andreatto.

Elifas tinha mais de 40 anos de atividade e ficou conhecido principalmente pelas 362 capas de discos que produziu, principalmente nos anos 70, de artistas como Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Toquinho e Vinícius de Moraes.

De acordo com mensagem de sua filha Laura, “muitos de vocês sabiam que nosso pai havia tido um infarte e se recuperava. Porém ontem ele teve uma complicação decorrente do infarte e infelizmente nos deixou. Agradecemos imensamente todo o carinho, apoio e as correntes positivas que vocês emanaram. Com certeza isso fez com que ele se sentisse muito amado e acolhido e nós agora também. Conforme a vontade dele, faremos uma cerimônia de cremação sem velório no crematório da Vila Alpina às 16h”.

Engajado

Elifas tinha um trabalho engajado, sempre se posicionou contra a ditadura militar. Sua obra tinha grande qualidade artística, com reconhecimento no mundo inteiro.https://d-2745213224070738245.ampproject.net/2203101844000/frame.html

Além dos trabalhos genuinamente engajados, Elifas produziu e produz peças de grande qualidade artística, com projeção internacional e reconhecimento no mundo inteiro. Ainda produzia cartazes, gravuras e ilustrações, e era diretor editorial do Almanaque Brasil de Cultura Popular, revista distribuída a bordo das aeronaves da companhia aérea TAM, para assinantes e bancas.

Sobre ele, seu irmão escreveu:https://1ce77ba41b2b9df20ad1a36b55aa2c9e.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html?n=0https://www.instagram.com/p/Cbr1rQtuxZi/embed/captioned/?cr=1&v=12

Elifas Andreato

Meu irmão mais velho, desde pequenino, rabiscava seus sonhos e ia mudando o nosso destino.

Tudo o que ele tocava com as suas mãos, virava coisa colorida, até a dor que ele sentia era motivo de tinta que sorria.

Sua travessura era zombar da pobreza e de toda a tristeza que ele via.

Se o quarto era apertado, ele criava castelos longínquos.

Se a fome era tamanha, ele pintava frutos madurinhos.

E eu que também era pequenino, ficava ao seu lado, tentando entender o que ele tinha de especial, dado pelos deuses, que habitavam o nosso pequeno quintal.

Um dia… Que eu estava distraído ao pé da cama, tentando pensar numa prece, para pedir que ele fosse feliz, um anjo pousou no terreiro e me disse que o meu irmão mais velho, tinha sido escolhido, para colorir o mundo cinza em que vivíamos.

Eu me lembro de que fiquei mudo, como convém aos mortais, diante de qualquer aparição divina… Fiquei ali olhando para o céu, completamente agradecido, por ser seu irmão, e me senti protegido, por toda a beleza e foi assim que entendi o papel do artista que ele era.

O meu irmão criador de tantas maravilhas era também um anjo desenhador, que veio a este mundo para colorir nossas vidas e pintar nossos sonhos de amor.

Voltei ao pé da cama e estou até hoje, de joelhos, rezando para os deuses protegerem meu irmão, para que a sua criação sirva de inspiração para os homens pensarem na beleza!

E quando os homens forem amigos dos homens, vou saber que o meu irmão não sonhou em vão.

Que o país que ele imaginou, possa ser colorido para todos!

Que a política do seu traço, seja homenageada SEMPRE!

Meu irmão, você retratou o que o nosso povo tem de mais belo:

A DIGNIDADE!

Irmão meu amado, você coloriu meu coração.

elias

Veja abaixo algumas capas de Elifas Andreatto

Rosa do Povo, de Martinho da Vila
Elton Medeiros
Clementina de Jesus

TEMAS

Elifas AndreattoChico BuarqueElias AndreattoClara Nunes

TAPA DE WILL SMITH EM CHIS ROCK NO OSCAR LEVANTA DEBATE SOBRE A CONDIÇÃO DA MULHER NEGRA

Março 29, 2022
  1. CULTURA

OSCAR

Djamila Ribeiro: “Quantas vezes vocês apoiaram mulheres negras que foram atacadas e desrespeitadas?”

Redação Rede Brasil Atual

|Março de 2022.

Após receber o prêmio máximo para um ator em Hollywood, Smith chorou e pediu desculpas aos convidados e à Academia por ter cedido à provocação e agredido Chris Rock – Academia

Sob o ponto de vista estritamente cinematográfico, a premiação do Oscar deste ano, realizada na noite de ontem (27), ficou marcada pela vitória de Jane Campion, por Ataque dos Cães, na categoria Melhor Direção. É a primeira vez que a chamada Academia premia mulheres por dois anos seguidos nesta categoria. No ano anterior, Chloé Zhao levou a estatueta por Nomadland. Entretanto, a noite não foi apenas de celebração, mas também de polêmica. Em meio ao evento, o ator Will Smith levantou-se de sua poltrona na plateia, foi ao palco e deu um tapa no rosto do apresentador, o comediante Chris Rock, após este ter feito uma piada ofensiva contra a esposa de Smith, Jada Pinkett. O episódio levantou uma série de debates sobre racismo, machismo e até mesmo sobre “feminismo branco”.

Smith, que venceu a disputa pela estatueta de Melhor Ator por sua atuação em King Richard (2022), não aceitou e reagiu com violência à provocação. O comediante ironizou o fato de Jada estar sem cabelo, já que sofre de alopécia, doença que provoca a queda de pelos do corpo. Smith, então, levantou e deu um tapa em Rock. Ele ainda disse: “Tire o nome da minha mulher da sua boca”, visivelmente alterado.

Após receber o prêmio máximo para um ator em Hollywood, Smith chorou e pediu desculpas aos convidados e à Academia pelo incidente. “Faço loucuras por amor”, alegou. Apesar da atitude polêmica, o público presente mostrou-se compreensível com Smith.

Solidão da mulher negra

“Na noite em que o mundo assistiu a uma cena real de defesa da dignidade de uma mulher negra protagonizada por um homem negro, esse mesmo homem ainda ganhou o Oscar de melhor ator por uma atuação impecável”, disse a professora de história da Universidade de Brasília (UnB) e militante do Movimento Negro e das Mulheres Negras, Ana Flávia Magalhães Pinto.

Por outro lado, George Takei, o Hikaru Sulu na série Jornada nas Estrelas, destacou que o comportamento é arriscado, mesmo que Rock tenha feito por merecer. Esta foi a posição mais vista entre os atores da indústria cinematográfica. “Muita gente, especialmente crianças, busca exemplo nos atores. Por causa disso temos obrigação de tentarmos ser bons modelos de comportamento. Celebridade traz responsabilidade”, disse.

Já a filósofa Djamila Ribeiro, referência das lutas feministas e antirracistas no Brasil, fez uma reflexão sobre o assunto. Ela fez uma defesa de Smith, já que nas redes sociais a postura do ator foi considerada de machismo, por tomar as dores da esposa. “Tenho visto posts curiosos de feministas brancas chamando Will Smith de machista (…) Dizem que ele agiu como macho. Outras o chamam de imbecil. Que curioso. Mulheres negras NUNCA foram vistas como donzelas frágeis. A construção do feminismo negro é distinta”, disse.

“Partimos de lugares diferentes e as opressões agem de forma entrecruzada (…) A gente não vê essa comoção toda quando mulheres negras são vítimas de chacota, ataques, sendo o grupo que mais sofre com discurso de ódio nas redes sociais (…) Na grande maioria das vezes, mulheres negras lidam sozinhas com ataques porque as pessoas, partindo de uma visão racista e sexista, dizem que elas aguentam. Não enxergam humanidade nelas”, completou.

Por fim, a pensadora fez uma provocação. “Antes de atacar Will Smith se pergunte: quantos livros de mulheres negras vocês leram ou divulgaram? Quantos projetos de mulheres negras vocês apoiam? Quantas vezes vocês apoiaram mulheres negras que foram atacadas e desrespeitadas? Agiram ou se somaram ao ataque? Escolheram o silêncio e a omissão?”

1922: COMO SURGIU A POESIA MODERNISTA

Março 28, 2022

Das paródias galhofeiras de Juó Bananére aos embates contra os reacionários às vésperas da Semana de 1922. Como Mário e Oswald afinaram sua concepção de poesia e aprofundaram uma generosa visão do Brasil e sua história

OUTRASPALAVRAS

POÉTICAS

Por José De Nicola e Lucas De Nicola

Março/2022.

Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall e retrato de Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral

Por José De Nicola Lucas De Nicola

Título original: “Sou do meu tempo”: A poética dos modernistas de 22

A arte de versejar

A poesia brasileira entra no século XX sob o domínio majoritário do soneto. O que quer dizer sob o domínio de uma forma fixa, com seus inabaláveis catorze versos ora decassílabos, ora alexandrinos, e uma esmerada “chave de ouro”. Olavo Bilac, na abertura de suas Poesias, obra publicada em 1888, já professara sua fé na deusa de plantão: “Assim procedo. Minha pena / Segue esta norma, / Por te servir, Deusa serena, / Serena Forma!”.i Gozando de imensa popularidade, Bilac publica, em 1905, o seu Tratado de versificação, em parceria com Guimarães Passos; na obra, além de explicar a contagem de sílabas poéticas e discorrer sobre os vários tipos de poesia, comenta que “os nossos poetas de hoje, possuindo um sentimento igual, e às vezes superior ao dos poetas antigos, eles excelem pelo cuidado que dão à pureza da linguagem, e pela habilidade com que variam e aperfeiçoam a métrica”.ii

Embalado pelo sucesso do Tratado de Bilac e ainda colhendo as glórias de seus versos decassílabos e de sua linguagem parnasiana que venceram, em 1909, o concurso para a letra do Hino Nacional, Osório Duque-Estrada publica a sua A arte de fazer versos; a obra – uma versão nacional de L’art des vers, do francês Auguste Dorchain, com prefácio do parnasianíssimo Alberto de Oliveira – também traz explicações sobre a contagem de sílabas poéticas e um longo dicionário de rimas ricas. Para Duque-Estrada,

a regularidade de cadências e de ritmo promana de três fatores: número limitado de sílabas em cada verso, divisão simétrica dessas sílabas, e repetição dos mesmos sons no final dos versos que se correspondem; quer dizer: número de sílabas, cesura e rima – três elementos cujas leis constituem exatamente o objeto da versificação, isto é, da arte do verso, da qual em breve nos iremos ocupar.iii

O prefaciador Alberto de Oliveira não se faz de rogado e aproveita o espaço que lhe foi concedido na obra para expor suas considerações sobre o fazer poético, criticando os pés quebrados, as licenças poéticas, as palavras inexpressivas, as rimas pobres e vulgares:

Foi-se o tempo das chamadas licenças poéticas; foram-se os versos lânguidos e os de pés quebrados, os hiáticos ou homófonos, os desarticulados ou duros; as rimas viciadas ou vulgares, sem matizes surpreendentes. Ir-se-ão também do verso as palavras inexpressivas, os rípios ou cunhas, que apenas servem para lhe completar a medida. Os novos tratados de versificação devem ser neste particular, como em tudo o mais tocante à precisão e beleza da forma, cada vez mais exigentes.

Quando os primeiros exemplares de A arte de fazer versos chegavam às livrarias, em meados de 1912, o jovem Oswald de Andrade regressava de sua primeira viagem à Europa; em Paris, se encantara com as propostas que Marinetti defendera em seu Manifesto Futurista e assistira à consagração do poeta Paul Fort, cultor dos versos livres, eleito príncipe dos poetas franceses. Oswald afirma que só assim veio a saber “que se tratava, enfim, de desterrar do verso a métrica e a rima, obsoletos recursos do passado”. Justamente ele, réu confesso, que se dizia incapaz de escrever versos porque não sabia metrificar, nem rimar; em seu livro de memórias – e nunca se deve esquecer o quanto as memórias podem ser seletivas – conta que voltou tão empolgado com as novas ideias que chegou a escrever um poema: “Último passeio de um tuberculoso, pela cidade, de bonde”. Contudo, preocupado com a reação que tal ousadia pudesse causar, jogou fora o poema. Para a posteridade ficou somente o sugestivo e longuíssimo título. iv

Pouco mais de um mês depois do retorno de Oswald, nas páginas do jornal O Pirralho – publicação da qual o modernista em formação era um dos diretores –, o personagem ítalo-paulista Juó Bananére passou a se divertir com o termo “futurismo”, formulando interpretações para os conceitos de Marinetti. Na edição de 26 de outubro de 1912, na seção “As cartas d’abax’o Pigues”, Bananére conta a história do futurismo, dizendo, em seu dialeto macarrônico ítalo-paulista, que “oggi per insempio os poeta faiz uno soneto de quattorzze versos, cada verso di deize sillabas” e que “o Marinetto invez nó: cada soneto che illo faiz tê ventisquattro verso. Os verso tê quantas sillaba a genti vulevo. Per insempio: o primiére tê dicianove, o segundo tê cinquantaquattro, o terzero tê centottantanove, o quarto tê duos sillaba e cosi vá s’imbóra”. Não satisfeito com a hiperbólica teoria, Bananére publica um soneto futurista intitulado “As burbuleta”, com rimas e versos livres, glosando famoso soneto camoniano: “Inslebão, padre da Raffaela, / Serrana bela, / tenia uno xique cinema nu Braiz…”.v No início de 1913, sempre nas páginas de O Pirralho,Bananére lança a seção “O Rigalegio”, publicação que tinha por lema “anarchia i futurisimo”; para não perder a mão, publica outro “Sonetto futuriste”, desta vez glosando o soneto “Mal secreto”, de Raimundo Correia: “Si a gólere che spuma come o vigno…”.vi

Como se percebe, na agitada e crescente Pauliceia das primeiras décadas do novecentos, e sem jamais perder o bom humor, entrava em cena um novo tratado de versificação, uma nova arte de fazer versos.

O futurismo ganha as páginas dos jornais e revistas

Nos anos que se seguiram, Juó Bananére continuou publicando com regularidade sonetos futuristas em suas páginas de O Pirralho,até que anuncia, na edição de 18 de setembro de 1915, o lançamento de um livro, de sua autoria, com “trintas poisias i sunetto tendo tambê argunas gançonetta popolora, tutto in puro stile futuriste, o stile da moda!”. E, bulindo com os imperativos da cronologia, algo típico de seu anarco-anacronismo, dá aos leitores uma amostra, “uma linda poisia chi Arvaro di Zevêdo copió virgognosamente di mim”; e publica “Tristezza”, com o célebre final:

Discançe migna cóva lá nu Piques,
N’um lugáro sulitáro i triste,
Imbaxo d’uma cruiz i scrivan’ella:
– Fui poete, Barbiere, i giurnaliste!vii

De fato, naquele ano aparecia La divina increnca, com poemas no mais puro estilo macarrônico-futurista de Juó Bananére. Mas, por trás do humor do irônico personagem, é possível perceber que suas paródias a textos clássicos promoviam uma revisão da nossa história literária ao mesmo tempo em que colocavam em xeque estilos consagrados, notadamente os parnasianos e seus sonetos. Neste ponto é importante salientar que a reescrita paródica de textos consagrados – desde a narrativa da carta de Caminha até os poemas parnasianos, passando por clássicos do romantismo – seria uma característica da poesia moderna a partir de meados da década de 1920.

No final de 1915, Juó Bananére se afasta – uma das vezes em que fez isso – das páginas de O Pirralho, mas o futurismo, cada vez mais acompanhado de outros -ismos, avança, ocupando as páginas de jornais e revistas. Qualquer manifestação e comportamento que fugisse de um certo padrão logo eram taxados de futuristas; charges ironizavam o estilo apresentando desenhos incompreensíveis ou estapafúrdios. Para ficar apenas em um exemplo, basta lembrar da muito comentada crítica de Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti de 1917-1918:

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e “tutti quanti” não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.viii

O artigo de Monteiro Lobato acabou se transformando em um dos elementos responsáveis pelo agrupamento de jovens que trilhavam diferentes caminhos em busca de novas propostas artísticas e que se sentiram, de alguma forma, também atingidos pela crítica; a partir da defesa da pintura de Anita Malfatti formou-se o grupo que realizaria, anos depois, a Semana de Arte Moderna.

Ao entrarmos nos anos de 1920, “futurismo” e “futurista”, este último empregado como adjetivo e substantivo, são termos cada vez mais recorrentes. Para os conservadores, são palavras sempre relacionadas a violência, iconoclastia, destruição do passado, desvairismo, práticas de gente maluca e perigosa; para os “avanguardistas”, as propostas futuristas lançadas por Marinetti representavam o caminho da modernidade, embora as notícias que vinham da Itália e davam conta da aproximação de Marinetti com o nacionalismo fascista, em ascensão desde 1919, causassem certo estranhamento.

Uma obra realmente futurista?

Um artigo de Oswald de Andrade, com o título “Meu poeta futurista”, publicado em 27 de maio de 1921 no Jornal do Comércio, colocou muita lenha na fogueira em que ardiam os preceitos – e também os estereótipos – futuristas.

Mário de Andrade começara a escrever os poemas de Pauliceia desvairada em uma noite de dezembro de 1920 e, vencendo sua habitual timidez, lia seus versos somente para os amigos mais próximos. Oswald de Andrade era o mais entusiasta e via naqueles versos a manifestação da reforma estética tão aguardada; na tentativa de tornar pública a obra de seu amigo, escreve o artigo citado, comenta que Pauliceia desvairada tem “cinquenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina”, reproduz o poema “Tu” e pergunta aos seus leitores: “Acharam estranho o ritmo, nova a forma, arrojada a frase?”, ao que ele mesmo responde, exclamando: “Graças a Deus!”. E acrescenta, não sem uma ponta de afiada ironia: “Nós também temos os nossos gloriosos fixantes da expressão renovadora de caminhos e de êxtases”.ix

Mário de Andrade, profundamente incomodado, sobretudo com dedos apontados na rua, publica em 6 de junho, no mesmo jornal, o artigo “Futurista?!”, em que se defende questionando o futurismo e afirmando que não se prende a escola alguma (ideia que repetirá no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada). Mas isso parecia não ter bastado; ainda consternado com a repercussão que teve o artigo de Oswald, Mário publica, no mesmo Jornal do Comércio, uma série de sete artigos, entre 2 de agosto e 1º de setembro, com o título geral de “Mestres do Passado”. Textos que constituem um dos mais importantes documentos para se compreender todo o processo cultural que resultou na Semana de 22.

Malditos para sempre os Mestres do Passado!

O primeiro dos sete artigos, “Glorificação”, é uma introdução; nele, Mário faz uma referência ao escândalo que se seguiu à publicação do artigo “Meu poeta futurista”, menciona as injustiças e as leviandades das críticas oriundas da chamada geração parnasiana e de seus herdeiros. Não deixando margem para dúvidas, evidencia que a celeuma e a tacanha incompreensão foram os fatores que ensejaram a série de textos: “Mas esse escândalo trouxe-me um benefício: despertou-me novamente no espírito a ideia de escrever umas linhas sobre os poetas parnasianos do Brasil”.x Os cinco artigos seguintes tratam das obras de Raimundo Correia, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho. Esses são os Mestres do Passado a quem Mário saúda:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer!

Mas o que nos interessa, neste ponto, é entender o que Mário criticava na poética parnasiana e o que ele propunha como uma nova estética.

Num apanhado das críticas feitas por Mário, é possível alinhar alguns pontos (fazendo a ressalva de que algumas dessas críticas se encaixam melhor na obra de um ou de outro dos poetas abordados): os parnasianos produzem poemas formalmente perfeitos, mas descrevem uma beleza falsa, sem dar vazão a sentimentos sinceros; por falta de inspiração, prejudicados pelo desejo de ser parnasianos, caem num intelectualismo exagerado, pretensioso, sem veemência; não têm princípios filosóficos e religiosos como não se esforçam por tê-los; tinham pouco a dizer (de Alberto de Oliveira, em particular, diz que quando não sentia coisa nenhuma, escrevia poemas parnasianos); quando abordavam o lirismo amoroso tinham quedas lamentáveis para um romantismo funerário da pior espécie; tratavam de temas convencionais do passado; empregavam uma língua pura, de toada sonora e cantadeira, ou de estilo rebuscado até o ridículo; manifestavam uma excessiva busca pela perfeição, impedindo a comoção de quem lê; realizavam inversões esdrúxulas, pesadas, nas quais a frase se arrasta lenta, longa, entrecortada; ostentavam a mania pelas chaves de ouro e a preocupação com os poetas e heróis do mundo antigo.

De Bilac, em particular, Mário diz que “é o malabarista mais genial do verso português. Soube reunir todos os artifícios e perfeições da Beleza em seus versos. Mas com o passar dos tempos perdeu-se no fetichismo pela Perfeição”. E sobre os rigores da metrificação, tão explorados pelo Tratado, de Bilac e Guimarães Passos, e pela A arte de fazer versos, de Osório Duque-Estrada, ironiza: “Medir pés de versos uma vida inteira!! Meu Deus, que sapateiros formidáveis! Com os produtos enganosos de sua fábrica obstruíram nosso futuro e nosso passado literário”.

Já no penúltimo artigo, em que comenta a obra de Vicente de Carvalho, o mais poupado dos cinco, Mário começa a apresentar os seus conceitos estéticos, que se estenderiam pelo último artigo. Assim o leitor se deparava com o que deveria ser entendido como Arte, a verdadeira Arte, com “a” em caixa-alta. Para uma melhor compreensão da proposta estética do autor de Pauliceia desvairada, transcrevemos literalmente suas palavras:

Antes de mais nada: tenho uma concepção da Arte absolutamente diversa da imaginada pelo senso comum; sem todavia afastar-me do bom senso. E não estou sozinho. Arte não é só construção de Beleza: nem este é o seu maior fim. […]
A arte deriva da necessidade de expressão do homem. Os sentimentos e pensamentos deste bicho eminentemente social requerem uma saída, uma exteriorização que os torne compreensíveis à companheira ou companheiros. […]
Foi o desejo de expressar sentimentos e pensamentos de significação lírica que levou o homem a criar as artes. […]
Enfim: a Arte, a meu ver, é a expressão dos sentimentos e dos pensamentos por meio da beleza; e não foi, senão em tempos de confusão e desvio desse destino, uma reprodução maninha do Belo. E tanto mais é vergonhosa esta última compreensão, que o homem astutamente se serve dos sentimentos e da comoção, que estiliza, para tornar bela a sua obra e bancar o artista! […]
Nego que a Arte seja reprodução do Belo somente, e acredito ser ela uma objetivação do humanismo psíquico. Arte é, antes de mais nada, um meio de o homem expressar livremente para consolar, para elevar, para se comunicar, tudo que é moto lírico, que lhe vai n’alma. O conceito do Belo pode e mesmo deve entrar no pensamento do artista. É certo que entra, pois mesmo quando conscientemente o artista não pense em construir belo, a preocupação de “agradar” trabalha no subconsciente. Mas essa preocupação não deve ser total, a única, porque o artista deixaria de ser artista para ser artífice; para ser um simples escravo, beneditino ou idólatra da implacável Afrodite. […]

Só uma verdade ali é verdadeiramente verdade: Arte se faz com vida e liberdade. Outra ainda: É preciso estudar e ter princípios.

Como se percebe, o conceito de arte de Mário de Andrade choca-se radicalmente com o conceito defendido pelos parnasianos, que escreviam com o objetivo único de atingir o Belo e faziam da perfeição formal o meio para isso. Daí passarem da categoria de artistas para a de artífices, escravos da deusa Forma, com a inabalável paciência de beneditino, isolado do mundo, buscando a Beleza (Olavo Bilac, no soneto “A um poeta”, escreve: “Longe do estéril turbilhão da rua. / Beneditino, escreve! No aconchego / Do claustro, na paciência e no sossego, / Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!”). Contra esse isolamento e essa extremada devoção à Beleza, que só se atinge pela Forma, Mário defende que o Belo é consequência e não fim e que a Arte, a verdadeira Arte se faz com vida e liberdade. Daí a constatação: “Os nossos parnasianos foram bem fraquinhos artistas”.

Afinal, ser ou não ser futurista?

Como se viu, os artigos contra os “Mestres do Passado” nasceram de uma tentativa de Mário de Andrade de se livrar da pecha de futurista. Mas, curiosamente, nunca o escritor foi tão futurista como nos artigos comentados. No sétimo texto, fechando a série, assimilando o golpe, ele diz ser “o futurista ridículo, o burlão, o almofadinha frequentador do chá-das-cinco, pernóstico e desavergonhado. E por mais energicamente que dissesse não ser futurista, não me escravizar a escola alguma, e ser um atormentado pesquisador da verdadeira significação da Arte, das relações existentes entre Arte e Beleza… Nada. Não me ouviram”.

E assume uma linguagem marinettiana para desancar os críticos e amaldiçoar os parnasianos:

Ó morteiros de irritação dentro dos novos! Ó oceanos das nossas cóleras elétricas, ó arranha-céus dos nossos punhos fechados! Mas não vos amaldiçoamos, ó críticos, porque nossa maldição vai mais alto. Atinge a mão que vos segura, alcança a lua que vos cegou.
Malditos para sempre os Mestres do Passado!
Tolos e malditos! Cuspimos sobre vós a nossa maldição e as risadas alumbrantes da nossa cólera, o despeito divino das nossas impaciências!

Pelo vigor da linguagem e da atitude combativa, percebe-se como aquilo que os modernistas assimilaram do manifesto futurista foi a exaltada negação das concepções artísticas do passado, a luta contra o academicismo, contra a literatura que refletiu a imobilidade meditativa e melancólica. Por outro lado, a ruptura com formas artísticas do passado, o fim das amarras da perfeição formal, a ousadia, as palavras em liberdade, o verso livre, sair do claustro e ir para as ruas onde pulsava o mundo moderno foram caminhos buscados pelos modernistas ao longo dos dez anos que separam as irônicas brincadeiras de Juó Bananére da realização da Semana de Arte Moderna.

A busca da identidade nacional: curemos Peri!

E como as discussões estéticas e artísticas não ocorrem em um mundo imaterial, em um vácuo sem relação com o entorno – mesmo o paciente e sossegado beneditino de Bilac nada tinha de isolado e imparcial –, não seria demais dizer que a luta por uma arte viva e livre já trazia em seu âmago uma série de discussões e reflexões concernentes à maneira como a arte pode representar a identidade nacional. Esse é um ponto fundamental: toda proposição artística é também uma indagação sociocultural.

Vale lembrar, nesse sentido, que no período anterior à Semana de 22 membros do grupo modernista já discutiam formas de repensar e reinterpretar a cultura nacional. Por exemplo, em 2 de janeiro de 1915, nas páginas de O Pirralho, Oswald publicou o artigo “Em prol de uma pintura nacional”, no qual comentava a importância de os artistas que estudavam no estrangeiro (sobretudo os que ganhavam a bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo), ao retornarem para casa, imbuídos de técnicas e conhecimentos estéticos, passassem a tratar de temas nacionais, não tremendo diante de um “maço de coqueiros quebrando a linha do conjunto”, nem se horrorizando em face “da nossa natureza tropical e virgem, que exprime luta, força desordenada”.xi Propostas essas que podem ser identificadas nas telas O homem de sete cores e Tropical, de Anita Malfatti, feitas em 1915 e 1917, respectivamente – a primeira delas pintada quando a artista ainda estava nos Estados Unidos.

Outros exemplos poderiam ser citados, como a polêmica que Menotti del Picchia e Mário de Andrade travaram na imprensa sobre “matar” ou “curar” Peri. O primeiro, em artigo de 23 de janeiro de 1921, defendia que, através do assassínio simbólico do personagem de José de Alencar, o Brasil conseguiria se livrar do pesadelo do passado e assumir a face de um “povo moderno, avanguardista, criador, pensador, liberto e original, crisálida saída do casulo para o grande voo no espaço e na luz. Para isso, o surge et ambula do milagre novo, resume-se nesta fórmula profética e simbólica: Matemos Peri!”.xii Mário de Andrade responderia com um texto datado de 31 de janeiro e intitulado “Curemos Peri (Carta aberta a Menotti del Picchia)”. Dizendo-se espantado e assustado diante do ímpeto mortal e sanguinário, afirma que “os homicídios, amigo, acarretam quase sempre a morte do algoz. Morte moral que mais acabrunha e nulifica”. Para Mário, ao invés da morte, era preciso buscar a cura:

Devemos, é certo, conhecer o movimento atual de todo o mundo, para com ele nos fecundarmos, nos alargarmos, nos universalizarmos; sem porém jogarmos à bancarrota a riqueza hereditária que nos legaram nossos avós. A doença do Peri é curável, desde que vejamos com mais realidade os passos da vida e com amor mais produtivo a imagem da pátria. Depois da operação de catarata que o cega, depois dum bom e farto jantar, dum banho perfumado de manacás, numa vida de conforto e mais higiene, Peri será outro e poderá ostentar a sua cara original e expressiva por quanta via, calle, strazze, street ou impasse haja nas babilônias do velho mundo. Que se riam os loiros […]. Tenho a certeza de que o amigo ainda fará a sua viagem à Europa de mãos dadas com Peri. Entendamos Peri! Amigo Menotti, curemos Peri!xiii

No fundo, esse debate, assim como o artigo de Oswald sobre a pintura nacional, versava sobre uma questão fundamental: ao romper as amarras estéticas da arte e da literatura, como era possível encontrar a medida entre o antigo e o novo, a tradição e a inovação? O mundo da modernidade, ao rasgar tratados e modelos, ao modificar paisagens e comportamentos, ao encurtar distâncias e acelerar o tempo, ao fazer emergir grandes e impetuosos conglomerados populacionais, cria um contexto de instabilidade, fluidez e incerteza. Não espanta, portanto, que no meio do “movimento atual” se queira buscar referências no conhecido e no hereditário, que se queira lançar os olhos sobre a natureza tropical, a literatura indianista, os textos clássicos. Um olhar, é certo, renovado, que atravessa as lentes do futuro.

Nesse sentido, nunca é demais lembrar que o eu lírico da Pauliceia desvairada, esse sujeito que se comove com a diversa e desigual cidade de São Paulo, então uma arlequinal protometrópole de quase 600 mil habitantes, é nada menos do que um “trovador”, mais especificamente “um tupi tangendo um alaúde”. É um ser que, ao cantar em linguagem moderna, viva e livre, faz isso através da fusão de referências típicas de um país surgido de uma colônia, do amálgama da tradição literária ibérica com a cultura dos povos nativos. Haverá algo que consiga ser, a um só tempo, mais hereditário e mais inovador do que isso? E o mesmo não vale para Pau Brasil, livro de 1925 que, dentre outras, possui seções chamadas “História do Brasil” e “Poemas da colonização”?

A poética dos modernistas de 22, portanto, ao propor uma revolução estética, trazia em seu âmago uma série de reflexões que conduziriam às fundamentais discussões sobre a identidade nacional, marca indelével de nosso múltiplo e rico modernismo. Ao romper as amarras da poesia parnasiana, os olhos estavam postos no futuro, mas não podiam (nem queriam) se livrar completamente do passado. Será por isso, então, que a última frase do “Prefácio interessantíssimo”, uma citação do escritor alemão Gorch Fock, diz que “Toda canção de liberdade vem do cárcere”? Uma frase que, segundo o próprio Mário, poderia ter evitado o prefácio.

Ou talvez fosse o caso de dizer, sem medo de incorrer em um tolo truísmo, que os poetas e artistas que fizeram a poética de 22 não eram nada mais nada menos do que pessoas profundamente arraigadas em seu tempo. Sujeitos que sabiam, acima de tudo, problematizar e pensar o seu tempo. Afinal, como escreveu Mário de Andrade em uma carta enviada a Prudente de Moraes Neto, em outubro de 1925:

De mim já se falou que sou futurista, que sou desvairista, que sou impressionista, que sou clássico e que sou romântico. É verdade que tenho sintomas e qualidades de tudo isso. Porém é questão de fim de receita: dissolva-se tudo isso no século vinte e agita-se. Que dá? Dá moderno. Estou convencido que sou do meu tempo.xiv

Notas

i “Profissão de fé”. In: Olavo Bilac. Olavo Bilac: obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 89-92.

ii Olavo Bilac & Guimaraens Passos. Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: Typografia da Livraria Francisco Alves, 1905. p. 31-32.

iii Osório Duque-Estrada. A arte de fazer versos. Prefácio de Alberto de Oliveira. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1912.

iv Oswald de Andrade. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. p. 134.

v O Pirralho. ed. 63, 26 de outubro de 1912.

vi O Pirralho. ed. 80, 1º de março de 1913.

vii O Pirralho. ed. 202, 18 de setembro de 1915.

viii Monteiro Lobato. “A propósito da Exposição Malfatti”. O Estado de S. Paulo, edição vespertina, de 20 de dezembro de 1917. p. 4.

ix Oswald de Andrade. “O meu poeta futurista”. In: Estética e política. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 1992. p. 22-25.

x Mário de Andrade. “Mestres do Passado”. Os trechos citados reproduzem passagens dos sete artigos que estão integralmente transcritos em: Mário da Silva Brito. História do modernismo brasileiro. 1. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4ª ed., Rio e Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. p. 254-309.

xi Oswald de Andrade. “Em prol de uma pintura nacional”. O Pirralho, ed. 168, 2 de janeiro de 1915.

xii Menotti del Picchia. “Matemos Peri!” In: Menotti del Picchia: o Gedeão do modernismo (1920-22). Menotti del Picchia: o Gedeão do modernismo (1920-22). Organização de Yoshie Sakiyama Barreirinhas.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1983. p. 194-197.

xiii Mário de Andrade. “Curemos Peri (Carta aberta a Menotti del Picchia)”. In: Novos Estudos, edição 57, volume 2, Cebrap, julho de 2000. p. 33-36.

xiv Mário de Andrade. Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes Neto (1924-1936). Organização de Georgina Koifman. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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CURSO DE ROTEIRO EM PARCERIA COM NETFLIX ABRE INSCRIÇÃO PARA NEGROS, 3ª, IDADE, PCDs E LGBTQIA+

Março 27, 2022
  1. CULTURA

AUDIOVISUAL

Aulas gratuitas e remotas também serão para moradores de comunidades e pessoas de baixa renda

Redação

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

 Março de 2022.

curso de roteiro
Rodrigo Sant’Anna e Junior Figueiredo ministrarão as aulas previstas para acontecerem de abril a junho – Janderson Pires

Estão abertas até o próximo domingo (27) as inscrições para o curso de roteiro para comédia do Clube do Pensamento, plataforma de ensino que tem como objetivo possibilitar o primeiro acesso de um saber técnico e artístico para integração de minorias no mercado do audiovisual brasileiro.

As inscrições no site Clube do Pensamento e as aulas, gratuitas e em formato remoto, estão previstas para acontecer de abril a junho.

Leia mais: Coletivo teatral debate o apagamento das narrativas LGBTQIA+ ao longo da história

Gratuita e virtual, a iniciativa é focada em capacitar profissionais de baixa renda, negros, da terceira idade, pessoas com deficiência e LGBTQIA+ de qualquer região do Brasil. Contando agora com a parceria e o apoio da Netflix para expandir a iniciativa, as aulas do Clube do Pensamento serão ministradas pelo roteirista Junior Figueiredo e o ator Rodrigo Sant’Anna.

“Minha motivação para criar o Clube do Pensamento está diretamente ligada à minha própria história de vida. Vim de uma realidade onde trabalhar com arte era uma abstração. A meritocracia ostenta uma fama traiçoeira. A ideia de que se pode chegar ao topo com talento e perseverança legitima as desigualdades, nos fazendo crer que a culpa é sempre nossa”, diz Junior Figueiredo.

Leia também: Petrópolis tem em 2 horas chuva para o mês inteiro; cinco pessoas morreram no domingo

Junior, que saiu do interior da Bahia em direção a São Paulo acreditando no potencial das histórias que tinha para contar, explica que o projeto visa construir uma indústria audiovisual mais inclusiva, ao mesmo tempo em que oferece capacitação técnica para que novos artistas contem suas próprias histórias.

Rodrigo Sant’Anna, que também ministrará as aulas, complementa: “Este projeto é uma maneira de tornar o mercado mais plural. Se temos mais pretos contando histórias, mais histórias de pretos serão produzidas, e o mesmo se dá para todos os outros grupos historicamente excluídos. Já passou da hora de dar espaço para esses grupos contarem suas histórias. Eu, que sou preto, gay e favelado, sou a exceção”.

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Eduardo Miranda

“ANITTA MOSTRA QUE FUNKEIRO PODE CRIAR O QUE QUISER, INCLUSIVE REGGAETON”, DIZ PESQUISADORA

Março 26, 2022
  1. CULTURA

ÍCONE

Música Envolver chegou a 1º lugar no ranking das mais ouvidas do mundo, segundo a plataforma de música Spotify

Caroline Oliveira

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 Março de 2022.

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Anitta é a primeira artista da América Latina a alcançar a posição – Reprodução/Youtube

A música Envolver lançada pela cantora Anitta, em novembro de 2021, chegou ao 1º lugar no ranking das mais ouvidas do mundo, segundo a plataforma de música Spotify, nesta sexta-feira (25).

Às 8h a música estava com 6,39 milhões de reproduções, dos quais 4,1 milhões foram no Brasil. Até então, nunca uma música teve tantos plays Spotify no Brasil. A conquista pode ser considerada um feito. É a primeira vez que uma latina alcança a posição.  

A façanha se torna mais notória por ser um reggaeton. O ritmo, guardadas as devidas medidas, pode ser comparado com o funk no Brasil, já que nasceu nas periferias de países da América do Sul e tem um histórico de preconceito não só no mercado de músicas, mas na sociedade como um todo.  

Renata Prado, dançarina, professora de funk, produtora, pesquisadora e Frente Nacional de Mulheres do Funk, afirma que a conquista de Anitta é “extremamente importante para o avanço do movimento funk, porque ainda hoje aqui no Brasil a gente tem uma luta para mostrar que o funk é um movimento cultural que reflete no entretenimento da música, mas que infelizmente enfrenta alguns preconceitos. Ver uma artista como a Anitta ocupando esse espaço é extremamente importante para nós do funk”. 

::Anitta, Juliette e Luísa Sonza convocam jovens de 16 e 17 anos para tirar título de eleitor::

Prado afirma que o reggaeton é uma música consumida de maneira expressiva no Brasil, até antes mesmo da Anitta levar o ritmo até a parada global. Nesse sentido, ela acredita que a cantora foi “perspicaz” ao criar um projeto musical como Envolver

“Ela entendeu que indo para esse lado conseguiria atingir todo mundo, porque nem todo mundo ouve funk, mas cantando reggaeton faz com que as pessoas conheçam a artista do funk que ela é, e isso consequentemente reflete positivamente para o funk”, afirma. 

“A Anitta é uma mulher do funk, que está abrindo os olhos para outras vertentes musicais. E isso é importante para as pessoas entenderem que funkeiro pode fazer tudo: funk, samba, rock, reggeaton. É a gente olhar para Ludmila hoje, por exemplo, e ver ela com projeto de pagode. Isso não faz dessas mulheres menos funkeiras. Nós do funk sempre somos limitados a ficar somente dentro da nossa cultura. Esse projeto da Anitta mostra a autonomia do funkeiro de criar o que quiser, inclusive reggaeton”. 

Nas redes sociais foi difícil ver alguém que não estivesse falando sobre Envolver e Anitta nesta sexta-feira (25). Artistas, políticos e perfis de grandes empresas comemoraram a conquista da brasileira. 

Edição: Rebeca Cavalcante

CRÍTICA DE CINEMA – ‘A PIOR PESSOA DO MUNDO’: QUANDO A MULHER QUER SER A PROTAGONISTA DE SUA VIDA

Março 25, 2022

Cotação: quatro estrelas

Foto: divulgação
Renate Reinsve vive a intensa Julie, no cativante filme norueguês que concorre a dois Oscars (roteiro e filme internacional), e deveria ter sido indicada tambémCredit…Foto: divulgação

Por TOM LEÃO – Março de 2022.

A série de TV inglesa ‘Fleabag’ (magistralmente escrita e interpretada por Phoebe Waller-Bridges) mostrava uma mulher, na casa dos 30, que era meio ‘mal vista’ pela família porque ainda solteira e sem a menor vontade de ter filhos. Qual o problema? Essa é a pergunta que Julie (Renate Reinsve), a principal personagem do norueguês ‘A pior pessoa do mundo’, se faz o tempo todo. Sua família, amigos e namorados vivem batendo nesta tecla. Mas ela não quer nada disso para si.

É assim que, em 12 capítulos (mais um prólogo e um epílogo), transcorre o filme de Joachin Trier que concorre ao Oscar nas categorias roteiro original e filme internacional (a atriz também deveria ter sido indicada, ganhou Cannes). Julie quer amar, dançar, se divertir e deixar a vida a levar. Isso a faz ser a pior pessoa do mundo? Para a sociedade, sim. Mulher na casa dos 30 já tem que estar com marido e filhos. Como fizeram suas mães e avós. Mas Julie quer mais. Quer ser protagonista de sua própria vida, não apenas coadjuvante num jogo/filme que já chega com o roteiro pronto quando se trata de mulheres.

O roteiro diz isso de forma bacana (vibrante, pulsante, viva), sem forçar barras, num contexto totalmente contemporâneo, mostrando Julie e seus relacionamentos com homens (focando especialmente em dois, mais duradouros), com a família e com a vida profissional que escolheu. É melhor ser feliz sozinha do que num casamento infeliz, com filhos mal amados, não? Julie vai decidir isso em sua trajetória, se descobrir saber o que ela quer. E deixar de ser coadjuvante em sua própria vida. Muito bacana. Num filme nada feminista ou maniqueísta. Apenas realista. Tomara que nunca seja refilmado por Hollywood.

_______

COTAÇÕES: ***** excelente / **** muito bom / *** bom / ** regular / * ruim / bola preta: péssimo.

CINEMA: A PEDAGOGIA DA SIMPLICIDADE E CONTEMPLAÇÃO

Março 24, 2022

Um professor urbanóide é transferido a um remoto vilarejo no Himalaia. A felicidade das pequenas coisas, filme de Butão indicado ao Oscar, poderia redundar em clichês mas, poroso à beleza, mostra o poder das mudanças de perspectivas

OUTRASPALAVRAS

POÉTICAS

Por Rôney Rodrigues

Publicado 24/03/2022.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

A felicidade das pequenas coisas, filme do Butão que ganhou visibilidade com sua indicação ao Oscar de melhor produção estrangeira, está chegando finalmente ao streaming (no Belas Artes à la carte e, a partir de 30 de março, também no Now).

A história contada ali se deixa resumir facilmente: Ugyen Dorji (Sherabi Dorji), jovem professor do ensino fundamental, sonha em emigrar para a Austrália e ganhar a vida como cantor de música pop. Em vez disso, ele é transferido para Lunana, uma das aldeias mais remotas do reino do Butão, com uma população de 56 almas, encravada no Himalaia a quase cinco mil metros de altitude. Ali não há energia elétrica nem sinal de celular. A escola carece de tudo: quadro negro, giz, lápis, papel…

Com esse argumento nas mãos e esse cenário diante dos olhos, o diretor e roteirista Pawo Choyning Dorji, estreante em longa-metragem, corria um duplo risco: de cair num exotismo turístico-pitoresco e de resvalar para o sentimentalismo edificante, para o qual, aliás, o título brasileiro parece puxar o filme. (O título original é algo como Lunana: um iaque na sala de aula.) Seria uma espécie de Sangri-La redivivo.

Mudança de perspectiva

Seu primeiro mérito, portanto, foi o de evitar esses perigos sem perder a ternura pelos personagens e sem fechar os olhos para a beleza majestosa do Himalaia, com seus vales, desfiladeiros e picos nevados.

Há um artifício simples que facilita, de certa forma, o envolvimento do público ocidental com a história narrada: assim como o espectador urbano médio, o protagonista Ugyen, depois do primeiro choque, aprende aos poucos a mudar de perspectiva e apreciar o modo de vida rústico e o ritmo contemplativo dos aldeões de Lunana. Assim como ele, somos conquistados pela simplicidade dos gestos, pelo ambiente fraterno e, principalmente, pela graça espontânea das crianças da aldeia.

É, de certo modo, uma versão mais modesta de Dersu Uzala, o esplendoroso filme de Kurosawa que também contrasta o modo de vida urbano com outra forma de relação com a natureza e os semelhantes. O estilo com que Pawo Choyning Dorji conta essa história é ao mesmo tempo enxuto (isto é, sem firulas) e poroso à beleza do lugar e dos seres, transitando com segurança dos grandes planos gerais, em que os personagens quase somem na paisagem, para os closes e pormenores reveladores de condições materiais e estados de alma.

Ensinar e aprender

A Lunana do filme é uma comunidade pré-capitalista (ou à margem do capitalismo), isolada e, ao que parece, autossuficiente. As relações interpessoais são fraternas e igualitárias. O professor Ugyen aos poucos se dá conta de que tem tanto a aprender quanto a ensinar ali.

Uma cena eloquente é a aula em que Ugyen tenta alfabetizar as crianças em inglês, usando palavras simples que se referem a coisas que elas conhecem: A de apple, B de ball. Quando ele passa para o C de car os alunos fazem cara de incompreensão. Nunca viram um carro na vida, e ele tem que buscar outra palavra. Impossível não pensar em Paulo Freire e seu método de alfabetização que parte da realidade do alfabetizando.

Mas nem tudo é assim tão idílico em Lunana. O banheiro é um barraco externo com um buraco no chão de madeira. Para acender o fogo é preciso recolher bosta seca de iaque. À noite o frio penetra pelo papel usado como cortina nas janelas. Numa aula ao ar livre, Ugyen usa escovas e creme dental que encomendou na cidade para ensinar as crianças a escovar os dentes, algo que para nós, urbanos, parece uma questão básica, automática, de higiene e saúde.

Não há, portanto, uma mera contraposição maniqueísta entre a “pureza da vida aldeã” e a “degradação da vida moderna”. Tanto que o professor é valorizado ao extremo como representante das luzes da civilização, o homem que traz o mundo para aquele lugarejo.

E não terá sido casual, também, que a primeira imagem de fora do Butão a surgir na tela seja a da Ópera de Sydney, prodígio do engenho humano, arte e ciência unidas a mostrar que a força da grana também pode erguer coisas belas. O problema, sabemos, é tudo o que ela destrói.

Billy Wilder

Dia 27 de março completam-se vinte anos da morte de um dos maiores cineastas do mundo, Billy Wilder (1906-2002). Não há muito a acrescentar ao que já se disse sobre esse fabuloso diretor e roteirista que criou obras-primas em diversos gêneros. O que sempre vale a pena é ver ou rever seus filmes originais, marotos, pungentes, divertidos, inteligentes, corrosivos.

Segue-se uma filmografia essencial de Wilder disponível em streaming.

  •          Crepúsculo dos deuses (1950). Esse réquiem pela velha Hollywood, centralizado na figura de uma diva quase esquecida do cinema mudo (Gloria Swanson), é um dos maiores filmes já realizados sobre o mundo do cinema, a transitoriedade da glória, a fragilidade dos sonhos e mais uma porção de coisas. Está disponível na plataforma Belas Artes à la carte.
  •          Quanto mais quente melhor (1959). Talvez a comédia mais perfeita e espetacular de todos os tempos. Dois músicos (Jack Lemmon e Tony Curtis) se travestem de mulheres para fugir de gângsteres e acabam topando com a igualmente letal (por outros motivos) Marilyn Monroe. Disponível para aluguel na Amazon Prime.
  •          Pacto de sangue (1944). Filme noir clássico, com roteiro de Wilder e Raymond Chandler, baseado em romance de James M. Cain sobre vendedor de seguros (Fred MacMurray) seduzido por uma femme fatale (Barbara Stanwyck) para matar o marido dela e dividir a herança. Prato cheio para Wilder explorar os efeitos do desejo e da cobiça sobre o caráter dos indivíduos. Disponível no Belas Artes à la carte.
  •          Se meu apartamento falasse (1960). Comédia amarga sobre funcionário modesto (Jack Lemmon) que empresta o apartamento para as puladas de cerca do chefe, mas acaba se apaixonando pela amante deste (Shirley MacLaine). Poucas vezes o cinema atingiu esse ponto exato e sublime entre o drama e o humor. Disponível para aluguel na Amazon Prime.
  •          Farrapo humano (1945). Mais do que um drama protagonizado por um alcoólatra (o escritor frustrado vivido por Ray Milland), é um filme sobre o próprio alcoolismo, retratando de modo implacável o mecanismo que realimenta o vício. Nem o final um pouco acochambrado para agradar a mentalidade moralista da época tira a contundência dessa obra-prima frequentemente subvalorizada. Disponível no Belas Artes à la carte.
  •          Beije-me, idiota (1964). A mais corrosiva comédia sobre casamento e (in)fidelidade conjugal. Compositor medíocre do interior (Ray Walston) contrata garçonete/garota de programa (Kim Novak) para fazer as vezes da esposa e seduzir um cantor galã (Dean Martin) de passagem pela cidade. Condenado como “imoral” pela Legião Católica da Decência, foi exibido na época apenas nos “cinemas de arte”. Disponível com legendas no Youtube.
  •          A montanha dos sete abutres (1951). A história do jornalista inescrupuloso (Kirk Douglas) que explora de modo sensacionalista o drama de um trabalhador soterrado numa mina revela as entranhas da imprensa convertida em espetáculo. Embora desde então a mídia tenha se transformado muito em termos tecnológicos, a crítica essencial permanece mais válida do que nunca. Disponível no Belas Artes à la carte a partir de 31 de março.

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A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISASBUTÃOCINEMAENSINAR E APRENDERENSINOHIMALAIAOSCAR DE MELHOR FILME ESTRANGEIROPAWO CHOYING DORJI

   

ENTÃO, A CANTORA MÍRIAM MIRÀH, DO GRUPO TARANCÓN…

Março 23, 2022

A cantora, que era integrante e fundadora do grupo Tarancón, especializado em música latino-americana, ficou conhecida por interpretar “Mira Ira” no Festival dos Festivais, em 85

Míriam Miràh.Créditos: Leandro Almeida/Divulgação
Julinho Bittencourt

Por Julinho Bittencourt

Escrito em CULTURA – 23/3/2022 ·

Morreu na noite desta terça-feira (22), a cantora Míriam Miràh, integrante e fundadora do grupo Tarancón, especializado em música latino-americana.

Míriam ficou conhecida do grande público após sua participação no Festival dos Festivais da Rede Globo, com a canção “Mira Ira”, de Lula Barbosa.

Nota da família

A cantora estava com 68 anos. A causa da morte não foi divulgada pela família. Veja a nota abaixo:

Caros amigos e familiares,https://d-345414383617054384.ampproject.net/2203101844000/frame.html

É com imenso pesar que informamos que nossa mãe Míriam Miràh faleceu durante a noite passada.

O velório será hoje no Cemitério da Vila Mariana às 13h, sepultamento às 16h.

Av. Lacerda Franco, 2080

Para aqueles que queiram ir prestar sua última homenagem, pedimos que use máscara.

TEMAS

Míriam MiràhGrupo Tarancón

THIS NOT AMÉRICA – CLIPE DE RAPPER PORTO-RIQUENHO VIRALIZA COM REFERÊNCIAS A BOLSONARO E LUTAS DA AMÉRICA LATINA

Março 22, 2022

THIS IS NOT AMERICA

Lançada por Residente, vocalista do Calle 13, “This is not America” também faz menção a Victor Jara e Lolita Lebrón

Gabriela Moncau

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 22 de Março de 2022 às 15:17

Em apenas 12 horas, o clipe teve duas milhões de visualizações – Reprodução

Se você não viu, já dê logo o play. O novo clipe de Residente, como é conhecido René Joglar, rapper porto-riquenho vocalista da banda Calle 13, foi lançado na última sexta-feira (18) e tem circulado com mais velocidade que a pólvora das invasões coloniais que ele retrata. Em cinco dias, This is not America já superou oito milhões de visualizações no youtube. 

Bradando que “América no es solo USA, papá”, (ou “A América não é só EUA, papai”) a música tem participação da dupla franco-cubana Ibeyi, composta pelas gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz que, em 2019, gravaram Libre com Emicida. 

Dirigido pelo francês Gregory Orel, o clipe combina cenas de protestos de rua, repressão militar e futebol, grandes metrópoles com monumentos pré-colombianos, e traz diversas referências às opressões e resistências latino-americanas.   

Jair Bolsonaro (PL) é o chefe de Estado cuja referência é a mais explícita. Observado por uma criança indígena, o homem de terno e gravata abocanha um pedaço de bife da refeição acompanhada por uma taça de vinho no gabinete presidencial. Em seguida, limpa a boca na bandeira brasileira.  

“Tratamos de encontrar alguém parecido com ele”, confirmou o rapper ao Globo. São muitos os governantes que “não se importam com seus países”, disse, mas na impossibilidade de retratar todos no clipe, “escolhemos o campeão”. 


Bolsonaro foi o único presidente explicitamente representado no clipe / Reprodução

De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), as áreas de pasto para a pecuária já ocupam 75% das terras públicas desmatadas na Amazônia.  

Donald Trump também é criticado, como na cena em que uma mulher dá de mamar ao seu bebê por entre grades que os separam. A alusão à política estadunidense anti-imigrantes que em 2018 separou famílias e enjaulou ao menos 2.300 crianças é explícita. 


De acordo com o Centro para Estudos de Imigração, cerca de 1,2 milhões de imigrantes tentam chegar aos Estados Unidos a cada ano / Reprodução

O vídeo também faz menção a recentes revoltas populares que explodiram no continente. Entre elas, a de 2021 contra a reforma tributária que o presidente colombiano, Iván Duque, tentou emplacar; e a de 2019 no Chile, cujo estopim foi o aumento da tarifa dos transportes e que teve, entre suas consequências, uma nova constituinte. 

Quando canta “cinco presidentes em onze dias”, Residente lembra o feito realizado pelo movimento dos piqueteros na Argentina durante a crise econômica de 2001 que, sob a consigna “que se vayan todos”, derrubou esse tanto de chefes de Estado em tempo recorde.  

Do México, são retratadas as mulheres do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e os 43 estudantes de Ayotzinapa que seguem desaparecidos desde setembro de 2014.  

O pingente de “machete”, um facão, que aparece pendurado no pescoço de Residente é como o símbolo do Exército Popular Boricua de Porto Rico, também conhecido como Los Macheteros.  

A organização militar clandestina socialista existe desde a década de 1970 e luta pela independência porto-riquenha em relação aos Estados Unidos. 

Lolita, Jara e Tupac Amaru

Mas o clipe não se limita a eventos históricos recentes. Os tiros para cima que dão a partida para os tambores com os quais a música começa são aqueles disparados por Lolita Lebrón.  

Ativista anti-imperialista porto-riquenha, Lolita protagonizou um ataque a tiros contra a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos em março de 1954. O atentado lhe rendeu 25 anos de prisão.  


Dolores “Lolita” Lebrón Sotomayor morreu aos 90 anos em 2010 / Reprodução

Décadas depois, em 1997 e já presidindo o Partido Nacionalista de Porto Rico, Lebrón declarou ao congresso estadunidense que a ação armada não foi um ataque de ódio, mas o “grito de liberdade de um povo ameaçado de extinção”.  

O cantor chileno Victor Jara também é homenageado, em uma das cenas mais fortes do vídeo. Compositor de clássicas canções de protesto como Te recuerdo Amanda, Jara foi torturado e fuzilado poucos dias depois do golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet em 1973, que duraria até 1990. 

O Estádio Nacional em Santiago no qual foi morto e que serviu de campo de concentração do regime militar chileno leva, atualmente, o seu nome.  

Se referindo à figura de quem o rapper estadunidense Tupac Shakur pegou o nome emprestado, Residente fala do guerreiro indígena peruano que comandou uma insurreição contra a coroa espanhola durante o século 18.  

A cena no clipe em que uma mulher é puxada pelas pernas e braços pela polícia faz alusão ao desmembramento com partes do corpo amarradas a quatro cavalos, que foi a pena de morte decretada a Tupac Amaru II depois de capturado, em Cuzco.  

Um salve para Childish Gambino 

“Gambino, mi hermano, esto sí es América”. A frase cantada por Residente é para o rapper e ator estadunidense Childish Gambino, que em 2018 lançou a música This is America.  

O vocalista de Calle 13 não parece se contrapor a Gambino, que no clipe da canção referida faz, com cenas da escravidão à violência policial, uma crítica pesada ao intrínseco racismo estadunidense.  

Mas não deixa de, o chamando de irmão, apontar que a violência colonial dos Estados Unidos se manifesta também quando seus residentes insistem em se referir ao país com o nome de todo o continente. 

“Estamos aquí”, diz René logo no início da música. “Mírame [olhe para mim], estamos aquí.” 

Edição: Rodrigo Durão Coelho