Archive for Outubro, 2023

DIA DO SACI OU HALLOWEEN? INICIATIVA QUER VALORIZAR TRADIÇÕES BRASILEIRAS NO DIA 31 DE OUTUBRO

Outubro 31, 2023

MOSAICO CULTURAL

FOLCLORE
Pesquisadores e adoradores do Saci buscam confrontar a onda imperialista “de doces e travessuras”

Afonso Bezerra

31 de Outubro de 2023 –

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Saci Pererê interpretado pelo ator Ornelas Filho no Sítio do Picapau Amarelo – Reprodução / Jornal Extra

Há vários projetos de lei que tentam oficializar a criação do Dia do Saci. Mas a data não é consenso
Ele tem uma perna só, usa um gorro vermelho e jamais se separa do seu cachimbo. Uma das lendas mais famosas do folclore brasileiro, o Saci Pererê é um personagem marcante da nossa história. Porém, ele nem sempre, digamos, teve essa característica que todos nós conhecemos.

Ao longo da história, o Saci teve diversas formas. Ele reúne influências europeias, indígenas e africanas. Entretanto, foi Monteiro Lobato, escritor do pré-modernismo brasileiro, quem deu a fama ao rapazinho. Tudo começou no fascículo infantil do jornal O Estado de S. Paulo.


Lobato enviou para os leitores perguntas gerais sobre o Saci e, com as respostas, elaborou, em 1917, o livro O Saci Pererê. A partir de então, o personagem do folclore aparece como traquino, travesso e dono de muitas aventuras.

“O Saci é o mito da impostura. Ele enfrenta os poderosos, o racismo colonial, a elite agrária conservadora que tentava o dominar. Ele enfrenta isto com astúcia, e não com força bruta, e com riso, com humor”, define Andriolli Costa, pesquisador sobre folclore.

Mas o folclore não é só imaginação. Tem muita coisa da realidade das nossas vidas e sociedade. E o Saci, muitas vezes, é representado de forma negativa, evidenciando o peso da escravidão nos relatos folclóricos brasileiros. Por causa disso, tem muita gente “atualizando” o Saci para o debate contemporâneo.

É o caso do filme Além da Lenda, da Viu Cine, em Pernambuco, com direção de Marília Maffé e Marcos França. Nele, o Saci surge com uma vibe positiva, descontraído e super amigo das outras lendas, sem perder as características originais.

“A gente tentou desconstruir essa associação de Saci, por ser um personagem negro, à malícia, para tirar esse estereótipo do negro malandro, traquino, que só faz travessuras. Aqui, a gente reconstrói ele, e apresenta um Saci amigão de todo mundo. Justamente por ser uma lenda muito conhecida no Brasil, a gente entendeu que ele era o líder das lendas brasileiras”, explica Erickson Marinho, roteirista do filme. “A gente tenta manter a essência. O nosso Saci continua de uma perna só, ele continua de gorrinho vermelho, ele continua sendo um personagem da natureza. Mas tudo aquilo que a gente acha que é inadequado e que não cabe mais na nossa sociedade, a gente realmente reconfigura”, complementa.

No filme, o Saci é uma espécie de guardião de um livro sagrado das lendas brasileiras. E nessa trama ele vive outro dilema: proteger a tradição brasileira da influência estrangeira, representada no filme pelos ícones do Halloween. Para Erickson Marinho, há um desequilíbrio no consumo dos dois tipos de cultura.

“A gente tem aí dez anos de filmes da Marvel incessantemente sendo lançados no cinema. Então, uma criança hoje que tem entre dez e onze anos, ela cresceu dentro desse universo. Então é isso que ela conhece. Muito forte. Todas as culturas são bem-vindas, inclusive é o que a gente defende no nosso filme, no nosso projeto. Mas que a gente tem que equilibrar um pouquinho mais para não ficar olhando só para o que vem de fora”, pontua o roteirista.

Há vários projetos de lei que tentam oficializar a criação do Dia do Saci. Mas a data não é consenso. Muita gente acha que é uma forma de criar uma confusão onde não existe. Acontece que os pesquisadores e adoradores do Saci reforçam que a ideia é exatamente confrontar a onda imperialista “de doces e travessuras” do Halloween que tem afogado as tradições brasileiras.


“A gente vai tirar sarro do Halloween mesmo. A gente vai fazer, pegar a cultura estadunidense e remexer ela ali, e incomodar. Esse é o maior motivo do dia do Saci ser no dia 31: incomodar. E se a gente não incomoda, se a gente não gera essa inquietação, que é uma inquietação que vem numa defesa de uma cultura que não é nossa, a gente não movimenta esse debate”, afirma o pesquisador Anderson Awas.

“E o Saci nos fala: ‘olha, em frente a um inimigo tão gigantesco, não adianta bater de frente. A gente tem que usar a cabeça, tem que usar a ginga e tem que usar o riso'”, afirma Andriolli Costa.

Edição: Vivian Viríssimo

MAIS DE 230 ARTISTAS PEDEM CESSAR-FOGO EM GAZA; MULTIDÕES VÃO ÀS RUAS NO MUNDO

Outubro 30, 2023

ORIENTE MÉDIO

Artistas de diversos países assinam uma carta endereçada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden

Cida de Oliveira

Rede Brasil Atual

30 de Outubro de 2023 –

Manifestação na Inglaterra reuniu milhares de apoiadores da Palestina – Henry Nicholls / AFP

Artistas de diversos países assinam uma carta endereçada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pedindo apoio ao cessar-fogo imediato em Gaza. Até a conclusão desta reportagem, eram 230 os signatários. Entre eles, Jennifer Lopes, Ben Affleck, Cate Blanchett, Kirsten Dunst e Dua Lipa, que buscam sensibilizar o governo dos Estados Unidos, aliado de Israel.


“Nós nos unimos como artistas e militantes, mas sobretudo como seres humanos que testemunham a perda devastadora de vidas e os horrores que se desenrolam em Israel e na Palestina. Pedimos que, como presidente dos Estados Unidos, o senhor e o Congresso dos EUA apelem a um cessar-fogo em Gaza e em Israel, antes que mais uma vida seja perdida. Mais de 5.000 pessoas foram mortas na última semana e meia – um número que qualquer pessoa de consciência sabe ser catastrófico”, diz trecho da carta, que tem apoio da organização internaconal Oxfam América.


Quando o texto foi escrito, os bombardeios de Israel sobre Gaza matavam uma criança a cada 15 minutos, média que subiu para 10 minutos.


“Acreditamos que toda a vida é sagrada, independentemente da fé ou da etnia, e condenamos o assassinato de civis palestinos e israelenses. Instamos seu governo, o Congresso e todos os líderes mundiais a honrarem todas as vidas na Terra Santa e apelarem a um cessar-fogo sem demora – o fim dos bombardeios a Gaza e a libertação dos reféns” diz outro trecho da carta.

Artistas pelo cessar-fogo lembram crianças, metade da população de Gaza

Como lembram os artistas, metade dos dois milhões de residentes de Gaza são crianças e mais de dois terços são refugiados. São pessoas forçadas a fugir das suas casas. A ajuda humanitária deve chegar até eles.

“Acreditamos que os Estados Unidos podem desempenhar um papel diplomático vital para acabar com o sofrimento e juntamos juntar nossas vozes às do Congresso dos EUA, da UNICEF, dos Médicos sem Fronteiras, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e de tantos outros. Salvar vidas é um imperativo moral. Para fazer eco à UNICEF, “a compaixão – e o direito internacional – devem prevalecer”.

O papa Francisco reforçiu neste domingo (29) o pedido de cessar-fogo, a abertura de corredores humanitários e a liberação de reféns pelo grupo armado Hamas. “Que ninguém abandone a possibilidade de parar as armas. Cessar-fogo! Parem, irmãos e irmãs, a guerra é sempre uma derrota”, afirmou o líder da Igreja Católica durante a celebração do Angelus.

“Penso naqueles que são vítimas das atrocidades da guerra, no sofrimento dos migrantes, na dor oculta daqueles que se encontram sozinhos e em condições de pobreza e naqueles que são esmagados pelos fardos da vida. Quantas vezes, por trás de belas palavras e promessas persuasivas, se favorecem formas de exploração ou nada se faz para evitá-las”, disse ainda o pontífice.

Neste sábado (28), quando o número de mortos em Gaza passava de 7,650, multidões foram às ruas em Londres, Istambul, Roma e diversas outras cidades do mundo pedindo o cessar-fogo na região. Há 22 dias o Exército de Israel bombardeia os palestinos.

Confira algumas postagens

DEMARCAÇÕES SÃO FUNDAMENTAIS PARA FUTURAS GERAÇÕES, DIZ RAONI AO VISITAR MOSTRA CULTURAL KAIAPÓ

Outubro 29, 2023


CULTURA

LUTA INDÍGENA

Líder indígena visita mostra sobre cultura e memória do povo kaiapó

Cristina Indio do Brasil Agência Brasil

29 de Outubro de 2023 

Raoni considera as demarcações fundamentais também para as futuras gerações – Tomaz Silva/Agência Brasil

“Os não indígenas não estão tendo noção do que estão destruindo, por isso, nós, como povos indígenas, dentro de território, dentro da floresta, sabemos o que pode acontecer se continuar destruindo”, afirmou o cacique kaiapó Raoni Metuktire, que visitou nesta sexta-feira (27) a exposição Mekukradjá Obikàrà: Com os Pés em Dois Mundos.


Para Raoni, a demarcação das terras dos povos originários, além de preservar a natureza, é importante para manter as próprias culturas.

“Nossos territórios são demarcados para poder manter tudo que tem dentro e preservar a natureza. Dentro de um território, temos floresta, animais, rios e temos nossas próprias culturas e tradições. Por isso, pensamos e pretendemos que continuemos com a nossa vida como povos nativos dentro de floresta. Por isso, defendemos nossa terra, a floresta. Por que defendemos o meio ambiente? Estamos vendo o aquecimento global, está cada vez mais quente na Terra, está cada vez mais secando rios, isso é muito preocupante para nós”, afirmou.


Raoni considera as demarcações fundamentais também para as futuras gerações. “As nossas terras demarcadas são para outras gerações. Eles têm que ter o território para continuarem com a vida, a cultura e os costumes deles. Precisamos de território para ter animais, precisamos dos rios, da floresta, das aves para continuar com nossa vida dentro da floresta.”

A mostra, que será aberta neste sábado (28) e vai até 26 de novembro, apresenta adornos usados nas festas e rituais, fotos, vídeos, depoimentos e um acervo produzido pela nova geração por meio do coletivo Beture, que é um movimento de cineastas e comunicadores indígenas Mẽbêngôkre-Kayapó.

Segundo o líder indígena, a mostra, que deixa evidente a ancestralidade de seu povo, é também uma forma de manter a memória dos kaiapó. “Sim, tem que ser mostrada a nossa cultura, mostrada também para os não indígenas, que são vocês, para que vejam a nossa cultura viva, tenham respeito por nós, pelos povos indígenas, a nossa terra. E essas fotos mostram [que é] para os jovens continuarem com a cultura deles, origem ancestral, por isso, é importante mostrar a nossa cultura para podermos mostrar para todos não indígenas e jovens indígenas para continuarem com a cultura deles”, afirmou.

Raoni ficou satisfeito com o que viu. “Como a nossa cultura ainda é forte e ainda vive entre nós, estou vendo aqui essas fotos e muitas de recordações. Foram tiradas há muito tempo e hoje, nesse momento, está tendo a mostra dessas fotos. Vi que é muito importante mostrar a nossa cultura, nossa arte e nossa tradição, para motivar nossos jovens a continuarem com a cultura deles. Por isso, estou vendo e gostando muito desse trabalho que está sendo feito”, pontuou.

O cacique kaiapó comentou ainda a importância da exposição em meio a tanta discussão no país sobre o marco temporal das terras indígenas. “Quando fazemos isso, e vocês fazem junto, mostramos a nossa vida para que eles possam nos respeitar, respeitar, para não acontecer nada de ameaça contra nós”, concluiu.

Niterói (RJ), 27/10/2023 – O Cacique Raoni durante visita à exposição Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos, no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Niterói (RJ), 27/10/2023 – O Cacique Raoni durante visita à exposição Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos, no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil


Niterói (RJ), 27/10/2023 – O Cacique Raoni durante visita à exposição Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos, no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Patrocínio

A exposição Mekukradjá Obikàrà: Com os Pés em Dois Mundos, é realizada pela Petrobras, por meio do projeto Tradição e Futuro na Amazônia (TFA), patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental, que tem a gestão do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade. De acordo com os organizadores, a Conservação Internacional Brasil e as organizações representativas parceiras do projeto, os institutos Kabu e Raoni e a Associação Floresta Protegida apoiam a iniciativa.

A gerente de Planejamento de Responsabilidade Social e Direitos Humanos da Petrobras, Sue Wolter, disse que é longa a história de investimentos socioambientais da companhia, dentro do compromisso do desenvolvimento social do país e da transformação das pessoas.

Sue revelou que o Tradição e Futuro da Amazônia é um projeto de seleção pública na linha de florestas, que é uma das quatro realizadas pela Petrobras. As outras são oceano, desenvolvimento econômico sustentável e educação. O outro compromisso da empresa é com projetos ligados ao respeito aos e direitos humanos e à promoção dos direitos humanos, acrescentou.

“Tem uma linha transversal em todos os projetos, que são de povos tradicionais, povos indígenas e pescadores e populações menorizadas: LGBT, pessoas com deficiência, população negra. Para a gente, é muito importante um olhar para esses saberes. Uma das ações do projeto é resgatar e divulgar os saberes tradicionais. É o que a gente está fazendo aqui. Hoje é o ápice dessa ação dentro do projeto”, disse Sue Wolter em entrevista à Agência Brasil.

Ela explicou que o projeto Tradição e Futuro na Amazônia é desenvolvido em cinco terras indígenas com trabalhos de educação ambiental, agrofloresta para geração de renda, estoque de carbono na região, saberes tradicionais e resgate materializado na juventude, que faz a conversa com o tradicional e os meios de comunicação e com os meios audiovisuais, preservando e divulgando todo esse conhecimento. Esse projeto é de sucesso e vai ser renovado. “Ele vai continuar por mais quatro anos, porque a gente tem todo um olhar muito especial para as populações tradicionais.”

Niterói (RJ), 27/10/2023 – Exposição Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Niterói (RJ), 27/10/2023 – Exposição Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Programação

A programação de inauguração da exposição, com entrada franca, começa às 10h com a abertura do museu e entrada simbólica dos indígenas na mostra.

Às 10h30, começa a feira de artesanato, inclusive com pintura corporal, e realiza-se a plenária dos povos tradicionais em defesa de seus territórios e maretórios com participação de representantes dos povos indígenas, quilombolas e caiçaras do Pará, de Mato Grosso e do Rio de Janeiro. Na parte da tarde, às 17h, haverá apresentação de canto e dança, chamada de Metoro, que são as festas. Às 17h30, haverá apresentação do cacique Raoni e de outros líderes kaiapó sobre a história deste povo.


Entre as 18h e as 20h, está previsto um mapping (projeção) da arte kaiapó na fachada do prédio. A agenda termina com uma apresentação musical do Rapper Matsi.


Edição: Nádia Franco

‘MUSSUM, O FILMIS’ RI DO RACISMO QUE MARCOU ASCENSÃO DO HUMOR NA TV

Outubro 28, 2023


CULTURA
Chega ao público cinebiografia de Mussum, maior protagonista negro do humor do século 20, ao lado de Grande Otelo

Paulo Donizetti

Revista Fórum

28 de Outubro de 2023 –

Ailton Graça como Mussum – Desirée do Valle/Divulgação

Antonio Carlos Bernardes Gomes sonhava ser jogador de futebol e vestir a 10 do Flamengo. Mas descobriu precocemente que era “ruim pra cacildis”. E que seu negócio era o samba. Assim, é sintomático que Mussum, o Filmis comece com uma pelada num terreno baldio do Morro da Cachoeirinha, na zona norte do Rio.


Carlinhos, como ainda era conhecido, corre para buscar a bola espirrada para o terreno vizinho, sobe no muro e dá de cara com uma roda de samba. Então, fica hipnotizado e esquece da bola, até ser despertado pela mãe, dona Malvina, que o puxa de volta para o chão. Quer o filho longe dali, porque samba e cachaça não dão futuro a ninguém.


Mussum, o Filmis tem estreia nacional no próximo 2 de novembro, aliás, mês da Consciência Negra. Mas já carrega expectativa depois de causar encantamento nos festivais de cinema do Rio e de Gramado. No evento no Sul, por exemplo, a cinebiografia do artista negro mais consagrado do país no século 20, ao lado de Grande Otelo, levantou seis Kikitos.


Além de melhor filme, estreia de Silvio Guindane na direção, o longa-metragem consagrou Ailton Graça, aos 59 anos, como melhor ator logo em sua estreia como protagonista. Conferiu também o Kikito de melhor ator coadjuvante a Yuri Marçal, pelo papel do jovem Mussum em sua passagem pela Aeronáutica e seus primeiros passos como Carlinhos do Reco-Reco no grupo Os Modernos do Samba. O ator-mirim Thawan Lucas Bandeira é o Antonio Carlos ainda moleque.

O “pretagonismo” de Ailton Graça

“Este filme é a realização de um projeto de vida. É o primeiro ‘pretagonista’ que eu faço, e, dentro do meu histórico como artista, sempre quis homenagear o Mussum, fosse no teatro ou em qualquer lugar. Fiquei muito feliz construindo esse personagem para o cinema”, disse Ailton Graça.

Graça iniciou vida artística nos anos 1980 e na década seguinte começou a brilhar em filmes (Carandiru, Bróder, Meu Tio Matou um Cara), novelas (Avenida Brasil, Império, Travessia) e no teatro (Macunaíma, A Hora e a Vez de Augusto Matraga). Depois do golpe de 2016, foi um dos artistas mais engajados nos movimentos de resistência e de defesa da democracia.

Além de Ailton Graça e Marçal, a veterana Neusa Borges levou prêmio de atriz coadjuvante no papel de dona Malvina na última fase do artista. O termo coadjuvante, porém, não fica bem no papel exuberante desempenhado por Neusa Borges. Dona Malvina Bernardes Gomes, vivida em seus primeiros anos pela também impecável Cacau Protásio, é a principal referência da vida de Mussum.


Com ela, o sambista e comediante teve de ralar para não sair do prumo. Iniciou tardiamente os estudos – por falta de condições da mãe de levá-lo à escola. Nascido em 1941, só terminou o antigo primário aos 13 anos, mas na condição de melhor da turma na Fundação Abrigo Cristo Redentor. Só voltava para casa aos finais de semana, tempo em que ainda fazia as lições e ensinava a mãe a ler e escrever. “Burro preto tem um monte, mas preto burro não dá”, repetiria ela, ao longo da vida. Comovente a cena em que ela escreve o próprio nome pela primeira vez, com o sonho de poder assiná-lo.

Reconstituição de um enredo

O diretor Silvio Guindane conduz com zelo esse elenco estelar. Vale o ingresso ver Flávio Bauraqui interpretando Cartola. A estreia de Guindane na direção, depois de três décadas atuando como ator – começou aos 13 anos, em Como Nascem os Anjos –, é desafiadora. Afinal, não é fácil expor atores contemporâneos na pele de figuras icônicas da televisão e da indústria do entretenimento com suas feições e trejeitos cristalizados no imaginário popular.

Grande Otelo é o responsável por transformar Antonio Carlos em Mussum. Chico Anísio, o idealizador dos sufixos terminados em “is”, eternizados pelo palhaço negro que era chegado num “mésis”. Todos os personagens que compuseram os Originais do Samba e seu entorno, os protagonistas e coadjuvantes de Os Trapalhões são reconstruídos para recontar a história do sambista que virou humorista. Tudo muito respeitoso com quem conhece o enredo e autêntico para quem não conhece.

Segundo Guindane, Mussum, o Filmis, mais do que biografia, tenta se firmar como um enredo comum a milhões de brasileiros. Do início difícil na escola de brancos, com a mãe decretando que o filho precisa se impor e ser o melhor, porque ele não é menor do que ninguém. Ao sambista e humorista consagrado que se dirige aos meninos e meninas atendidos pelo projeto Mangueira do Futuro. “Ninguém pode apagar o sonho de vocês. Vocês podem tudis. Porque burro preto tá cheio por aí. Mas preto burro não dá”, repete ele, usando o mantra de dona Malvina.

Outros tempos

Além disso, Guindane paradoxalmente tem a tarefa de lidar com uma história que não é exatamente uma novidade para algumas gerações. O filme baseia-se no livro Mussum – uma História de Humor e Samba, de Juliano Barreto, que coordena o roteiro. Também já existe na Netflix o documentário Mussum, um Filme do Cacildis (2019), de Susanna Lira, com narração de Lázaro Ramos e trilha de Pretinho da Serrinha.

O que Silvio Guindane faz é reunir um elenco majoritariamente negro e contar uma história que une no mesmo sofá muita gente que já sabe dela e muita gente que não. A importância da família, a busca do conhecimento como fonte de poder de escolha no trabalho e na vida, o enfrentamento dos preconceitos.

Foram sete anos de projeto até chegar às telas. Mussum, o Filmis resgata todos os passos que levaram o menino da Cachoeirinha para a escola, à Mangueira, ao ofício de ajustador mecânico, à Aeronáutica, aos Originais do Samba à televisão e à eternidade. Num tempo em que se faziam piadas hoje inimagináveis em qualquer programa de humor.

O próprio Renato Aragão, em diversas entrevistas concedidas nos últimos anos, admite que o mundo mudou para melhor. E que não há mais espaço para piada que humilha pessoas. “Não há mais espaço para humilhar negro, pobre, nordestino, feio e gordo. É até covardia. Porque o outro não tem como se defender.”


Nesse sentido, a contribuição do “pretagonista” Mussum é contundente. Pois mesmo com o intuito de fazer rir, sempre deixava claro que criolo e macaco é “sua mãe”. “E negão é seu passadis!”

GRUPO UNIVERSITÁRIO DE TEATRO DO AMAZONAS – GRUTA: CAMPO DE IMANÊNCIA DO NOMADISMO POLÍTICO-ESTÉTICO-INTEMPESTIVO DISJUNTIVO DE QUALQUER 50 ANOS

Outubro 27, 2023

 afinsophia  27/10/2023  

PRODUÇÃO AFINSOPHIA.ORG

Em outubro do ano de 1973, tempo de terror dominante imposto pela ditadura cívica-militar, como, também, início de mais uma ditadura sangrenta na América do Sul, desta vez no Chile, com os assassinatos de duas fundamentais personagens-democráticas, o presidente Salvador Allende e o cantor popular, Victor Jara, além de outros libertários, alguns estudantes universitários decidiram, em Manaus, compor um Grupo-Sintoma, como pensa o filósofo-psiquiatra francês, Félix Guattari: quando se descobre que não há lugar para si na sociedade e é preciso agir para que seja criada a sociedade em que tenha lugar para todos viverem e viverem bem.

Engajados e inquietos diante da perversa realidade, estes estudantes criaram o Grupo Universitário de Teatro do Amazonas. O moleque, GRUTA! Composto por uma singular heterogeneidade de pensamentos sensíveis, intelectivos e éticos, a expressão de vivências e ideias dos cursos que esses estudantes frequentavam, não deu outra: o GRUTA se transformou em um Campo de Imanência do nomadismo afetivo-cognitivo, como pensa o filósofo francês, Gilles Deleuze. Tomando o Teatro Dialético, o Teatro Pedagógico de Brecht, como Método de Distanciamento, realizaram suas práxis e poieses. O método de teatro que melhor serve para confrontar a miséria e repudiar a paranoia da moral-burguesa: “Primeiro a barriga depois a moral”. O método que auxiliou Augusto Boal criar seu Teatro do Oprimido. Um método similar ao método-educacional-popular, Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.

Isto, porque, como diz o poeta russo Vladimir Maiakóvski: A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo. O que a moçada que tenta fazer teatro em Manaus ainda não entendeu e continua repetindo um teatro gastronômico, indigesto, alienando, carregado de signos abstratos, sem engajamento e nenhum vanguardismo. Um pseudo-teatro “para acompanhar bocejos, romances astrais“, como diz Belchior. Além, de total subserviência aos governantes como se eles entendessem da estética e da semiótica das artes. 

Condensado com o pensamento do escritor inglês, D.H Lawrence, que enuncia que o mundo é como um guarda-chuva, onde por cima se desloca toda a potência-caosmótica, o artista, que se encontra debaixo dele, faz um pequeno corte e algumas partículas-virtuais vazam pelo corte e apanha o artista que cria sua arte-revolucionária que jamais desaparecerá. Jamais será pulsada, jamais figurará uma cronologia. Depois, apavorado, alguém vem e fecha o corte do guarda-chuva. É o déspota. O igual. O mesmo. O domesticado. O funcionário do sistema-buraco-negro.

Apanhados nesse Campo de Imanência-caosmótico, os, agora, artistas do GRUTA, assumiram o Movimento Teatrosófico. A Produção da Teatralidade-Histórica. O Teatro-Dionisíaco. O Teatro de Rua e criaram um agenciamento de enunciação-coletiva-estética: ”SE VOCÊ NÃO VAI AO TEATRO, O TEATRO VAI AO SEU ENCONTRO!”. Assim, o GRUTA é eminentemente Teatro Populus. É matéria de variação contínua. “Se você não vai ao teatro”, não significar ir para um lugar, um prédio, uma casa. Significa não participar do jogo-cênico, porque o teatro é a arte. Não a casa de espetáculo onde se compõe este jogo. Não existe Teatro Amazonas, templo do ufanismo dos atoleimados. Existe um objeto arquitetônico onde são apresentados espetáculos cênicos. O teatro é a arte. O prédio é o prédio. Simplesmente e nada mais.   

Em seu processual de produção, tem Rui Brito, Marquinho Aurélio, Dinho, Socorrinho Jobim, Atanázius Greco, Luis Marreiro, David Ranciaro, Sílvio Ranciaro, o Fuinha, irmão do David, Marcos José, Humsilka, Amorim, Dinair, Aparício de Morais, Deise Amaral, Nonato Pereira, Eurico Tadeu, Manuel Lobo, Beth Imbiriba, James Badejo Araújo, Luíza Garnelo, Ricardo Parente, … Em suas montagens, que vão de Joaquim Manuel de Macedo passando por Domingos Pelegrini, do PCB do Paraná, Jean Cocteau, Brecht, Marcos José, entre outros, as atrizes e atores interpretavam seus personagens em espetáculos que escolhiam além de participarem da produção e ficha técnica, sonoplastia, contrarregra, vestuário, etc.

Como o GRUTA encenava suas criações nas ruas, escolas, centros comunitários, penitenciária, hospitais, centros de saúde mental, e outros territórios, nunca lhe faltou público e que em algumas encenações participava da trama da peça. Sem deixar de leve, que o deslocamentos dos artistas para estes territórios de encenação, era quase sempre de ônibus ou na pernada. É mole? Era a nossa condição de proletariado vivendo uma dita que andava sempre dura. Quer ser artista-populus?

O Gruta, também, tinha uma atuação junto ao casal de teatrólogos Otto e Florence que realizavam trabalhos de teatro com as comunidades das favelas no Rio de Janeiro e publicavam um periódico de teatro chamado de Teatro de Encontro ao Povo. Foram, no contexto do teatro-político-estético, muito importantes para a moçada do GRUTA, visto que o GRUTA se assumia e se assume um Devir-Estético-Teatral eminentemente POLÍTICO. Não podia ser diferente. O Teatro é Devir-Político em sua Existência e Essência. Que o diga seu Criador, Dionísio!

O GRUTA iniciou suas atividades e ficou durante alguns anos, no Conservatório de Música da Universidade do Amazonas, situado no centro de Manaus, na Avenida Joaquim Nabuco, vizinho da casa do Bispo, CNBB, e foi dirigido, primeiramente, pelo maestro Nivaldo Santiago e, depois, pelo maestro-cearense, Nelson Edy. Ali, foi palco de homéricas polêmicas, concordâncias, discordâncias, amores e desamores. Ali, se sofreu com os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, o Vadlo, em 25 de outubro de 1975, do operário Manuel Fiel Filho, também no mesmo tempo, notícias de muitos que caíram nas mãos de seus algozes, muitas angústias diante das ameaças de prisões, frustrações-dolorosas pelas peças censuradas ou partes. Ali, nós vivenciávamos nossas angústias de presos no Cárcere Brasil, ao ar livre. 

O nomadismo-intempestivo-disjuntivo do GRUTA, se confirma nos dias atuais, mesmo com alguns artistas operando em outros territórios, porque seus agenciamentos de enunciações-coletivas-teatrais foram e, estão, materializados com outras e outros companheiros teatralizantes.

O Rui Brito, filho da Midinha e do Miltinho, na década de 80, continuou com o GRUTA e realizou composições com outras atrizes e atores. Dessa moçada, alguns criaram seus próprios grupos, mas trabalhando com o mesmo sentido do Teatro Populus, como é o caso do educador-ator-encenador, Abdiel Moreno. Hoje, o Rui Brito, mora no município dos Bois, Parintins, e mantém um grupo de Teatro-Populus.

O Marcos José, depois de encenar no fim da década de 80 e começo de 90, com o jornalista-editor-ator e encenador do Grupo Chaminé, Mário Freire, algumas peças, inclusive Brecht, também, com a participação do professor e ator Haroldo Glauk e Abdiel Moreno, como Luz Nas Trevas de Brecht; e no fim de 90, com o educador, militante e ator, Miguel Oliveira encenar algumas peças com o Teatro Cabocão, hoje, faz parte do Teatro Maquínico da Associação Filosofia Itinerante (AFIN), que trabalha, sem fins lucrativos, nas periferias com crianças e adolescentes, há 22 anos.

E nessa mutação-contínua, e para quem se interessar, no ano de 1993, foi escrito o livro que narra a experiência do GRUTA cujo título é: GRUTA: Grupo Universitário de Teatro do Amazonas – A Flecha do Teatro Cabocão; Edição da Universidade do Amazonas. 

Perguntam: O GRUTA é uma Escola de Teatro?

Resposta: Não! O GRUTA se movimenta como um agenciamento de enunciação-coletiva-teatral produtor de Afetos: Novas formas de Ver e Ouvir; Perceptos: Novas formas de Sentir; e Conceitos: Novas formas de Pensar!     

Beijos e Abraços Dionisíacos- Grutanianos!

LIVRO: DA SOMBRA MIDIÁTICA À SUPEREXPOSIÇÃO: COMO STF SE TORNOU NOTÍCIA AO LONGO DO TEMPO ATÉ VIRAR ALVO DE EXTREMISTAS

Outubro 26, 2023

JUSTIÇA & MÍDIA
Recém-publicado, estudo de cientista política analisa jornada de midiatização da Corte a partir de marcos históricos

Cristiane Sampaio

Brasil de Fato | Brasília (DF) 

26 de Outubro de 2023 –

Ataque de vândalos de extrema direita ao STF durante invasões do 8 de janeiro – Sérgio Lima/AFP

Se atualmente o Supremo Tribunal Federal (STF) é foco de ataques constantes provenientes da extrema direita, alvo de fake news e críticas massivas, com os nomes dos seus ministros estando na boca de internautas e cidadãos em geral, um dia a Corte já esteve muito mais próxima da sombra midiática do país, quando ainda sequer era conhecida pela população. A trajetória que fez com que a instituição saísse desse papel secundário na cena nacional e saltasse para os holofotes do mundo político virou substrato de análise da pesquisadora e jornalista Grazielle Albuquerque, que acaba de lançar o livro “Da lei aos desejos – o agendamento estratégico do STF”, publicado pela editora Amanuense.


A obra resulta de tese de doutorado produzida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e aborda pontos de relevo da vida nacional ao longo de mais de 15 anos da chamada Nova República, período que sucedeu a ditadura militar. O livro mostra como e por quais meandros o Supremo passou a figurar em destaque no cotidiano político do país até se tornar destino frequente das investidas de grupos extremistas.


A análise da autora se fixa no recorte temporal que vai especificamente de 1988 a 2004. Tais marcos representam, respectivamente, a data de promulgação da Constituição Federal e a reforma do Judiciário, esta última instituída por uma emenda constitucional que inaugurou diversas mudanças na organização da Justiça brasileira e buscou imprimir maior agilidade aos trabalhos. Mas a obra lança luz ainda sobre outros acontecimentos posteriores que ajudaram a atrair os holofotes e fazer do Supremo o ator político que ele é hoje, esse sujeito ativo e midiático no plano nacional.


Ao mostrar a gênese desse processo, a pesquisadora pontua que, muito antes da consolidação da era digital, o Supremo já se comunicava, ainda que de forma mais tímida, como é o caso do que ocorria nas décadas de 1980 e 1990. O que muda ao longo do tempo, segundo ela, é o tom e a intensidade da atuação da Corte nessa frente. “Desde a Constituinte [em 1987] já se tem material na literatura da área que mostra que os ministros do Supremo iam para as sessões da Constituinte para ver [os trabalhos] e para serem vistos. Eles mandavam recado, etc., mas isso não tinha uma expressão tão volumosa como tem hoje. Era uma coisa mais de bastidor, para quem cobria mais de perto [o Judiciário].”


Chefes dos três Poderes durante momento solene da Constituinte de 1987 / Câmara dos Deputados/Arquivo

Em um apanhado histórico, o livro mostra que, nos anos 1990, o Supremo atuava dentro de uma dinâmica de comunicação mais clássica, enviando releases [textos informativos de caráter institucional] às redações de jornal por meio do trabalho da assessoria de imprensa da instituição, criada em 1995. Foi no mesmo ano que a Corte institui ainda o chamado “comitê de imprensa”, espaço destinado ao trabalho dos repórteres correspondentes que acompanham a rotina do tribunal para, a partir disso, produzirem notícias sobre o Judiciário.

A pesquisadora vê esse processo como um ponto importante para ajudar a entender a crescente aparição de personagens do Supremo no imaginário coletivo e midiático do país. Isso porque o salto que levou a Corte a se manter atuante na agenda pública foi precedido por um movimento institucional caracterizado pela tentativa de ocupar o noticiário nacional. “Naquele momento da década de 1990, havia uma comunicação mais tradicional e mais voltada aos jornalistas, mas foi um processo de abertura. O Supremo foi profissionalizando a sua comunicação nesse período, com ampliação da assessoria, e houve um consequente aumento da cobertura jornalística [sobre a Corte]”, destaca.

Anos 2000

O livro aponta que a expertise do Supremo no ambiente da comunicação foi se desenvolvendo no curso do tempo. Os anos 2000 inauguraram uma outra tônica no comportamento da Corte. “Era um contexto de cobrança sobre o Judiciário em relação ao ‘accountability’ [prestação de contas]. Isso era no Brasil e em outros países da América Latina. O Banco Mundial tinha alguns documentos e relatórios que falavam justamente sobre isso, sobre a necessidade de transparência, porque havia interesse em se ter uma previsibilidade do sistema, inclusive do ponto de vista do financiamento, etc., para que houvesse mais clareza nas decisões judiciais, também por conta do impacto na economia.”

A pesquisa convertida em livro mostra também que o motivo não era só esse. “Havia uma questão interna de que o Judiciário pudesse se mostrar, e se mostrar do ponto de vista também de um controle social. Para você ter ideia, a primeira pesquisa mais empírica com dados sobre o Judiciário brasileiro é de 2003, em pleno momento de antessala da reforma do Judiciário. Antes disso, a pesquisa que a gente vai ter com um desenho semelhante é dos anos 70. Então, nos anos 90 não se sabia quantos juízes e servidores tinham no Brasil, por exemplo. Você não tinha dados que hoje a gente tem anualmente pelo ‘Justiça em números’ [banco de estatísticas oficiais do Poder Judiciário]”, ressalta Grazielle Albuquerque.

Foi ainda na esteira dos anos 2000 que foram inauguradas a TV Justiça e a Rádio Justiça, ambas voltadas à divulgação de ações e agendas institucionais para o grande público. Os veículos serviram de janela para uma maior difusão do trabalho do Supremo e, consequentemente, para uma presença crescente da Corte no noticiário. “São instrumentos que a gente chama de ‘mídia das fontes’, que pulam os jornalistas, digamos assim, e chegam diretamente com o cidadão, na ponta. Eu cito esses exemplos para mostrar que essa explosão da comunicação que a gente vê hoje [em torno do Supremo] tem uma origem e vem numa crescente. Não é algo que nasceu do dia pra noite”, afirma Grazielle.


Então presidente do STF, ministro Marco Aurélio, durante sanção da Lei 10.461/2002, que cria a TV Justiça / STF/Divulgação/Arquivo

Foi também nos anos 2000 que o escândalo do mensalão e a operação Lava Jato saltaram para o noticiário, atraindo as atenções nacionais, e ajudaram a orientar ainda mais o farol midiático para o papel e o trabalho do Supremo. “Com certeza mensalão e Lava Jato foram momentos de explosão [da exposição]. A gente vê aí um olhar sobre o Judiciário que começa a sair de uma cobertura especializada e toma as ruas. A Lava Jato mobilizou as ruas e o mensalão foi uma antessala disso. Ali as pessoas estavam discutindo a questão do ‘juiz herói’ [sobre Sérgio Moro], do Batman [analogia feita com o relator do caso do mensalão no STF, Joaquim Barbosa]. Foi ali que a população em geral começou a saber o nome dos ministros, por exemplo”, resgata Grazielle.

Ela lembra ainda que todo esse processo ocorreu perto do movimento que pariu a conhecida frase “o gigante acordou”, relacionada à eclosão dos protestos que pipocaram nas ruas do país – e principalmente de Brasília – em 2013. “O Brasil foi vivendo um processo de ebulição social muito grande, principalmente a partir dessa década de 2010”, recorda a pesquisadora, lembrando ainda que tais capítulos precederam o contexto que gerou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e reforçaram a presença permanente do Supremo e de seus ministros nos veículos de mídia tradicional e na também nas redes sociais.


Junho de 2013 ficou marcado por onda de protestos no Brasil / Reprodução

Audiência

No passado, o tribunal era menos conhecido e acompanhado não só pela população, mas também pelos próprios personagens do mundo político em geral. O livro mostra que a cobertura jornalística das atividades do Supremo e a consequente audiência dada à instituição por parte de quem joga nesse tabuleiro da política foram se ampliando conforme foi se expandindo também o poder da Corte.

“Esse aumento se deu depois da Constituição de 1988. Ela é um marco em si, mas, após a Constituição, uma série de mudanças legislativas deu mais poder o STF. A Emenda Constitucional nº 3, que regula a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), é um exemplo disso. E a gente tem vários outros exemplos, como a própria reforma do Judiciário [em 2004], como a criação das ‘súmulas vinculantes’, que faz com o Supremo possa hoje deliberar quando uma prefeitura descumpre algo que está referendado numa súmula. Se antes era preciso ir inicialmente para a primeira instância, hoje se pode reclamar diretamente ao STF”, ilustra a pesquisadora.

“Ao longo dos anos 80, 90, 2000 e até agora, o STF foi angariando poder político. Essa atenção em torno dele tem uma relação muito estreita com o incremento de poder político do tribunal. É por isso que estamos vendo essa crescente, e a política é que dá o tom da cobertura jornalística, como a gente sabe. A política é muito importante porque ela mobiliza as atenções”, continua a autora.

8 de janeiro

O resgate de fatos marcantes da linha do tempo da política nacional e da jornada recente do Supremo contribui não só para o entendimento da emergência do STF como um ator político de destaque, mas também para a interpretação do que significaram as invasões ocorridas no fatídico 8 de janeiro. Para Grazielle Albuquerque, não é por acaso que a Corte se tornou o principal alvo dos vândalos que destruíram os prédios dos três Poderes – na ocasião, a sede do Supremo foi a mais depredada pelos extremistas de direita que apoiam o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).


Estragos causados por vândalos na sede do STF atingiram diferentes espaços do prédio da Corte no 8 de janeiro / Valter Campanato/Agência Brasil

“Acho que uma das coisas que ajudam a explicar isso é o que ocorreu na quadra anterior, quando se viu um grande antagonismo entre o Executivo e o Judiciário, com aquelas declarações do Bolsonaro contestando o STF de maneira muito enfática, o que também foi personalizado na figura do Alexandre de Moraes – e dali surgiu o personagem do ‘Xandão’. Há críticas ao STF em diversos setores da população, mas invadir e destruir um prédio, um patrimônio público é algo que vem de um grupo bem definido. E esse grupo não surgiu da noite pro dia. Ele foi fermentado no período anterior. Depois as coisas explodiram.”

Para a pesquisadora, para além dos problemas da extrema direita em si, que tradicionalmente é contrária às instituições do mundo democrático, a colocação do Supremo na berlinda desse campo político não pode ser vista como algo dissociado da jornada de superexposição da Corte. “Veja que se compara muito o 8 de janeiro com o que ocorreu no Capitólio, mas nos Estados Unidos as pessoas não invadiram a Suprema Corte. Quando aqui o STF passa a ter uma voz deliberativa muito forte, todo mundo passa a gostar ou não dele, assim como se gosta ou não de um presidente da República e se vota ou não em um presidente. O problema é que o Judiciário, diferentemente dos outros Poderes, não está sob o escrutínio do voto. Tudo isso é muito representativo.”

Edição: Vivian Virissimo

‘MEU NOME É GAL’: CINEBIOGRAFIA CONTA COMO VIOLÊNCIA DA DITADURA ATRAVESSOU CARREIRA DE UMA DAS MAIORES CANTORAS DO PAÍS

Outubro 25, 2023


BRASIL DE FATO ENTREVISTA

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Em conversa com o BdF Entrevista, diretora Lô Politi fala sobre o filme, a carreira e a retomada do cinema brasileiro

José Eduardo Bernardes

25 de Outubro de 2023 –

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Longa estreou nos cinemas brasileiros no último dia 12 de outubro e já ultrapassou a marca de 100 mil espectadores – Stella Carvalho/ Divulgação

Sou favorável a que histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas mulheres

A cinebiografia da cantora Gal Costa, Meu nome é Gal estreou nos cinemas brasileiros no último dia 12 de outubro, com exibição em 200 salas. E as bilheterias do longa, até aqui, têm correspondido à potente distribuição que o filme ganhou: em quase duas semanas, mais de 100 mil pessoas já assistiram à película das diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira.


O filme conta os primeiros anos artísticos da cantora, que morreu em 9 de novembro do ano passado. Na tela são exibidas sua chegada ao Rio de Janeiro, mais especificamente no Solar da Fossa, onde Gal encontra seus amigos da Bahia: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, até o florescer de uma das maiores cantoras do Brasil, com o espetáculo Fatal, em 1971.


O recorte específico do longa culmina também com um dos períodos mais duros do país, com a instauração da ditadura militar e o seu recrudescimento, em 1968. E, para além de todos os artistas que desfilam no longa e a efervescência cultural da época, a repressão se torna um elemento central do filme.


“É um um filme que passa uma mensagem muito forte, de uma galera que lutou profundamente, teve uma coragem enorme, se posicionou fortemente contra um sistema que estava muito errado, e a gente está sempre com uma ameaça de isso voltar”, afirma a diretora do longa, Lô Politi.

Politi é a convidada desta semana no BdF Entrevista, e explica que a ditadura militar se tornou um “antagonista” no filme. “A gente apertou a mão nisso durante a montagem. A gente vai colocando esse antagonista desde o começo do filme, um pouquinho, um pouquinho, vai crescendo, crescendo, crescendo e chega na sequência quatro do filme, que é a sequência que faz a Gal ter a sua primeira explosão, que é a sequência do medo”.

Para além dos horrores da ditadura, o filme adentra os dilemas de Gal, vivida pela atriz Sophie Charlotte, que vão desde a escolha de seu nome artístico – com a ajuda do empresário Guilherme Araújo (interpretado pelo ator Luís Lobianco) e de sua melhor amiga, Dedé Gadelha (com interpretação de Camila Márdila) – até o reconhecimento nacional e a necessidade de se posicionar como artista frente à barbárie do país.

Com a parceria de Lô Politi e Dandara Ferreira – que lançou um documentário sobre a cantora em 2017 – o filme é quase em sua totalidade feito por mulheres. Para Politi, o protagonismo feminino é essencial ao contar uma história como essa.

“Eu sou muito favorável que as histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas femininas, mulheres, porque eu acho que tem sentido, tem uma outra abordagem”, diz. “Quando você faz um filme sobre alguém, mesmo que não seja alguém real, alguém vivo, é um mergulho tamanho ali, que é complicado, mesmo na ficção eu acho difícil”.

Na entrevista, Politi ainda fala sobre o espaço das mulheres no audiovisual, a retomada do cinema brasileiro após quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), sua carreira no cinema e como a morte de Gal Costa influenciou a obra. Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você está nos cinemas com o Meu nome é Gal, filme que você divide a direção com a Dandara Ferreira. É um filme feito por mulheres, para contar parte da história de uma protagonista espetacular, que é a Gal Costa. Para a própria história, era importante que ela fosse contada a partir da perspectiva feminina?

Lô Politi: Eu acho que sim. Eu sou muito favorável a que as histórias de protagonistas femininas sejam contadas por cineastas femininas, mulheres, porque eu acho que tem sentido, tem uma outra abordagem. Com algumas exceções – e ótimas exceções – eu me incomodo um pouco quando vejo um homem retratar uma mulher, porque tem um viés ali que é complicado. Eu não digo nem que é machista ou misógino, pode não ser, mas é um viés específico, daí eu acho que tem uma certa restrição.

Quando é exatamente isso o objeto do estudo do cineasta, aí eu acho que pode ser interessante. Quando você faz um filme sobre alguém, mesmo que não seja alguém real, alguém vivo, é um mergulho tamanho ali, que é complicado, mesmo na ficção eu acho difícil. Esse é o meu terceiro roteiro de ficção que é filmado, e os meus dois outros protagonistas foram homens, então eu estou falando algo contra mim mesma.

Mas assim, no caso desses dois filmes, é muito importante para o personagem – que são o Jonas e o Sol, os meus filmes anteriores – que esses personagens masculinos fossem analisados e explorados, a partir de uma visão muito feminina, isso faz parte do conceito do filme. No caso da Gal, isso jamais seria parte do conceito do filme.

Mesmo no caso de cinebiografias, por mais que você trate da realidade, explícita, você tem pontas que precisam ser amarradas. Quando você tem uma personagem feminina, talvez seja importante que essas pontas sejam amarradas por outra mulher, não?

É, não só as pontas amarradas, porque você está falando sobre ficcionalização, quando eu tenho que criar uma história que ela não necessariamente viveu, e se for do ponto de vista feminino é mais fácil, é verdade, você tem toda razão. Porém, mesmo as histórias que a gente sabe que ela viveu, a gente tem um filme que a narrativa é toda construída a partir do movimento interno da personagem.

A gente não vai, como a maioria das cinebiografias, pela carreira, pelos altos e baixos, sucessos e fracassos dessa carreira, a gente não quis fazer um filme assim. A gente vai pelo movimento interno e a carreira vem a reboque, as músicas vêm a reboque disso. Então o movimento interno de uma mulher, é melhor que seja feito por uma mulher.

A Gal, por exemplo – estou falando especialmente de roteiro – é muito diferente de mim como pessoa e como maneira de tratar os conflitos, e eu aprendi muito com a Gal, como mulher. E, obviamente, na Gal do nosso filme tem muito de mim, tem muito da Dandara e tem muito da Sophie, é uma Gal que foi transformada por nós. Acho que tanto o processo de roteiro quanto de atuação, tem uma coisa meio antropofágica, que você come aquela personagem, vai, digere e depois você volta com ela modificada dentro de você.

Isso é muito óbvio no processo do ator, a gente vê sempre isso acontecer, mas com a Sophie… Sophie ficou comendo essa personagem durante seis anos, se alimentando dela o tempo inteiro, dia, tarde e noite. E no roteiro também tem muito essa apropriação daquela personagem. Eu me senti muito tocada, muito impactada por essa mulher que foi a Gal Costa, especialmente a Gal daquele momento, do nosso recorte, que vai de 1966 a 1971, é uma Gal muito jovem, é a Gal do período da Tropicália, em um momento muito intenso fora dela, com muita coisa acontecendo, e coisas muito ricas acontecendo fora do corpo dela, mas o filme explora isso tudo dentro do corpo dela, dentro da mente dela, dentro da alma dela.

Então isso fica mais feminino ainda. Já seria apenas por ser um conceito feminino por si só, ainda mais feito por mulheres, desenvolvido por mulheres, aí acho que a gente conseguiu aprofundar bastante.

A gente vive um momento diferente no cinema, ainda longe de ser equânime, mas as mulheres têm aparecido cada vez com mais frequência nos processos criativos do audiovisual. O que falta para isso se consolidar?

Olha, realmente as mulheres têm ocupado um espaço muito maior no cinema nos últimos anos, e o cinema é um espaço muito, muito machista, muito misógino. Eu trabalho faz tempo nisso, eu entrei no cinema quando praticamente não tinha mulher nenhuma, e foi uma luta absurda, e eu sinto essa luta até hoje. Mas eu vejo, de fato, as equipes técnicas, sobretudo… Você falou da coisa criativa, eu acho mais fácil ter mulheres nas áreas criativas do que na área técnica.

Tem, hoje em dia, um número razoável de mulheres diretoras, mas até muito pouco tempo atrás, tinha quase nenhuma, e agora tem realmente muitas mulheres roteiristas. Tem uma categoria que tem muita mulher no cinema, que é a categoria da montagem e eu acho que a montagem é uma coisa essencialmente feminina, o tipo de sensibilidade que você tem. Tem mulheres na direção de arte, na fotografia também, é um lugar que hoje em dia tem muito mais mulheres. Até três, quatro anos atrás não tinha quase nenhuma…

Eram só homens, né?

Só homem. E na equipe técnica, por exemplo, a gente se surpreendeu muito no nosso filme, quando a gente olhou e viu que boa parte, ou quase toda a equipe de fotografia era de mulheres. A gente teve um diretor de fotografia homem, que é o Pedro Sotero, mas a equipe dele inteira era praticamente de mulheres, tinha um homem só na equipe dele. Eu fiquei feliz porque é um lugar tradicionalmente masculino.

E eu vi também na contrarregragem, que é um trabalho físico, sobe parede, desce parede, abre buraco, faz acontecer, uma coisa muito física mesmo, e tinha três mulheres maravilhosas fazendo com uma competência, com uma beleza, com uma suavidade. Foi muito legal, muito bonito de ver isso.

Falando sobre o filme, como a morte da Gal influenciou o trabalho de vocês nas escolhas, na montagem?

Olha, o filme já estava pronto, na verdade, já estava fechado. A gente tinha um roteiro e era um roteiro que não era de ficção, era um roteiro que não era passível de mudanças, por mais que o evento seja forte, a gente fez um filme fechado. Antes de ser uma cinebiografia, é um filme, então mesmo que a gente quisesse, não poderia mudar, a gente tem um recorte muito específico dessa Gal da juventude.

O que a gente sentiu foi um impacto muito grande, sentiu a responsabilidade crescer muito. Eu senti particularmente o peso do nome da figura de Gal Costa de uma maneira muito maior. De repente, a gente percebeu o quanto a Gal é gigante, o quanto é imensa. Ela já era, mas de repente ela virou um mito, uma coisa realmente inalcançável.

A gente parou um pouco o filme [quando a Gal morreu], mas a gente já estava na finalização. Nós paramos para entender, para digerir, na verdade, porque a gente foi impactada por isso. A gente sentiu falta depois, não de modificar o filme, mas de ter mais da Gal real no filme, porque o nosso filme não tinha nada da Gal real. A Sophie cantava todas as músicas, era uma ficção que terminava em 71, então não tinha nenhum registro da Gal daquele período.


Não é um documentário, então não tinha nem onde entrar isso. Mas a gente sentiu falta de ter a Gal de verdade mais presente, não só como uma extensão da homenagem à ela, porque o filme já é, por si, uma homenagem a Gal, mas a gente sentia a necessidade de estender essa homenagem e de trazer a Gal para as pessoas que vão ver o filme, porque dá vontade de ver a Gal.

A gente acabou trazendo, além dessa homenagem no fim do filme, que é meio tradicional em cinebiografia, a gente fez ela um pouco mais impactante, um pouco maior do que o normal, do que o esperado, e a gente trouxe algumas músicas cantadas por ela, alguns fonogramas com a voz original dela. São poucas, a Sophie continua cantando quase o filme inteiro, mas em três momentos muito específicos, de fonogramas muito conhecidos e que a gente já tem uma certa identificação a gente trouxe a voz da Gal.

Por que vocês fizeram essa opção desse recorte histórico da vida da Gal, que é entre os anos 1960 e o começo dos anos 1970?

Por uma série de motivos. Primeiro, por uma questão cinematográfica mesmo, como dramaturgia. É o momento mais interessante da vida de um personagem, quando tem um conflito, de fato. Ela chegou daquele jeito Gal de ser, super tímida, super para dentro, super introspectiva, em um lugar onde tudo está exigindo muito dos artistas, e as pessoas que ela já conhece estão muito à frente nesse processo. E ela não tinha ferramentas para enfrentar aquilo.

Então, foi um conflito muito forte para ela e ainda mais, principalmente, com a ditadura que botou um medo neles e nela, sobretudo. A gente, de fato, tinha um conflito claro e uma coisa que ela precisava superar claramente. Se a gente fosse para o sucesso da Gal, que é os anos 1980, a gente sai desse lugar. O sucesso não tem nada de interessante, daí é melhor ver o documentário que a Dandara fez, que é brilhante. A gente queria cinema e o cinema está no drama, no conflito, não tem jeito – não precisa ser o gênero drama, mas precisa ter um conflito dramático, precisa ter dramaturgia.

O outro motivo é que esse período é muito interessante, muito rico, o período da Tropicália. É, esteticamente, culturalmente, politicamente e comportamentalmente riquíssimo. Não dá nem pra dizer que isso é um pano de fundo, mas ter isso incorporado no nosso filme, a gente mergulhar nesse universo, com esse conflito da Gal, que existe por causa desse universo e contra o outro fantasma que tem ali, que também está incorporado no filme como um personagem, que é a ditadura, era muito interessante, é um caldo muito bom para dramaturgia.

Eu fiquei surpreso de ver Caetano Veloso, Gilberto Gil e entre tantos outros como Tom Zé, Wally Salomão, que são retratados, obviamente, de maneira intensa, porque eles participaram da carreira da Gal, da história da Gal, também de maneira intensa. É difícil levar dois personagens como Caetano e Gil, com esse peso para as telas e, de alguma maneira, torná-los personagens secundários da trama?

Sim, é um frio na barriga, uma loucura. Eu fiquei em pânico, eu estudei como uma louca, ainda mais porque eu também assino o roteiro, então foram anos de conceituação desse filme e um mergulho muito intenso em tudo o que eu podia, para não ser raso. É uma responsa fenomenal.

Agora, não tem como eles não estarem no filme, obviamente, e a gente lidou com certa naturalidade. A nossa sorte, nesse sentido, é que eles eram muito jovens nesse momento, então eles são muito distantes desse Gil e desse Caetano que a gente vê agora e a gente vê o tempo todo, porque eles estão muito ativos, a Bethânia também e a Gal também estava.

A gente não quis trabalhar, nem os atores queriam, de uma forma mimética, trabalhar com mimesis, a gente não queria que eles imitassem ninguém. De uma certa maneira, todos eles entraram nessa pesquisa muito profunda, para cada um poder ter um estudo muito grande do seu personagem e trazer de volta o seu personagem com sua visão. A gente está falando da Gal da Sophie, do Caetano do Rodrigo, do Gil do Dan, do Wally do George.

Para o Luís Lobianco, que fez o Guilherme Araújo, que era o empresário da Gal e pra Camila Márdila, que fez a Dedé, que é a mulher do Caetano e melhor amiga da Gal, era mais fácil porque eles não tinham referência. Do Guilherme tem referências, mas são muito poucas, da Dedé, não tem quase nada de referência, então eles puderam construir uma coisa muito mais livre.

E eles são condutores do filme, eles têm um peso tão grande quanto o Caetano e o Gil no filme. E eu acho isso bonito porque a gente não caiu nessa esparrela de pegar os famosos, os conhecidos e fazer por aí. O Wally, o Tom Zé e o Rogério Duarte são menores por causa do recorte espacial do filme, porque tem momentos que a gente está no Rio que não tem o Tom Zé, tem momentos que a gente está em São Paulo e que não tem o Wally, mas os outros são todos muito presentes, a gente está, de fato, falando de uma turma.

Então, cada um explorou muito de dentro de si e o trabalho em turma foi muito importante, porque cada um trouxe muita pesquisa sobre si, sobre o seu personagem e sobre os personagem dos outros, e trocou-se muito. Então, a gente viu isso acontecer de uma forma muito natural e orgânica. O Caetano do Rodrigo foi muito impactado pelo Gil do Dan, ou pelo Wally do George. Essa troca fez com que cada um ficasse, de fato, único.

Alguns com semelhanças muito maiores aos seus retratados, aos seus personagens do que outros. Então, você vê o Rodrigo Lélis, ele tem uma semelhança enorme com o Caetano e ele não tinha. Quando começou o filme, quando ele chegou, ele não tinha nada de Caetano. A Dandara tinha conhecido ele antes, no [Teatro] Vila Velha e ele era louro, nada a ver, uma energia completamente diferente. E ele foi se transformando no Caetano de uma maneira que agora você olha para o filme, você vê o Caetano o tempo todo, sendo que aquele nariz é totalmente diferente do Caetano, o olho é diferente do Caetano.

E aí tem o Gil, por exemplo, que é o Dan, que não se parece com o Gil. Eles não têm uma semelhança física muito forte, mas o Dan puxou um Gil de dentro dele, com um astral do Gil, com a vibe do Gil, com a energia do Gil, que as pessoas nem sabem que existia. Porque o Gil de hoje, que a gente vê, é um buda, quase.

Uma entidade, né?

É uma entidade, exatamente, obrigada pela palavra. O Gil daquele momento, com aquela energia, com aquela faca no dente, a gente nem tem essa essa referência, e o Dan foi lá e achou. Foi muito bonito ver esse processo.

E esse recorte do filme, como você falou, ele também é atravessado, do começo ao fim, pela ditadura militar. Há uma relação direta da ditadura com a violência, inclusive, que vai marcando os personagens. Muito menos como uma ideia, um conceito, mas muito mais, pela violência.

Sim, a ideia era essa mesmo, a gente apertou até a mão nisso durante a montagem, porque acho que a ditadura funciona um pouco como antagonista da personagem mesmo. A gente acabou costurando a ditadura no filme como se constrói um antagonista. A gente vai colocando esse antagonista desde o começo do filme, um pouquinho, um pouquinho, vai crescendo, crescendo, crescendo e chega na sequência quatro do filme, que é a sequência que faz ela ter a primeira explosão para fora, que é a sequência do medo, que a ditadura vai chegando perto dela.

Ela vai ficando com mais medo, mais medo, ela vê a violência na rua, vê os meninos se envolvendo de uma maneira ali que ela morre de medo nas passeatas e tal, ela vê o Caetano ser massacrado, super agredido pela plateia, no Festival [Internacional da Canção] com Proibido Proibir, por uma plateia dividida entre esquerda e direita, e os dois lados atacavam, a esquerda atacava também o Caetano, eram tempos muito loucos.

A própria Gal foi ficando com mais medo ainda, até que aquela violência entra dentro de casa e tem lá um estudante machucado violentamente. É quando ela decide que tem que se posicionar, de fato, que estava sendo cobrado dela esse tempo todo, mas ela estava nesse conflito interno. E aí ela vai pro Divino Maravilhoso com uma potência, com uma agressividade que ela nunca teve antes e depois nunca teve também.

Foi naquele momento que ela se colocou com aquela agressividade antiviolência, que cria uma reação à violência e ela não aguentou o tranco. Porque foi tão difícil furar aquela bolha, sair para fora daquele jeito, que ela caiu de cama, ficou deprimida durante muito tempo. E aí tem aquela sequência que você viu, dela sair desse lugar e tal.

A Tropicália é um movimento que, de fato, aconteceu bastante por causa da ditadura, é um movimento contracultural no mundo. É um movimento que queria colocar a guitarra elétrica, que queria trazer o mundo para dentro do Brasil, porque tinha uma resistência muito grande, culturalmente, às coisas que vinham de fora. Então, tem uma geleia geral aí que a Tropicália traz que não é só na política, é também no comportamento, é também no social e sobretudo na cultura.

Só que a ditadura faz isso chegar num lugar extremo, de necessidade de reação e de posicionamento. Esse caldo que eu estava te falando, que torna esse período muito interessante, é a junção dessas coisas muito fortes: a contracultura, uma revolução cultural, e a contraviolência contra o sistema. Isso junto é um caldo muito forte e muito violento, de fato. Então a Gal tinha que reagir e só uma coisa tão forte, tão intensa, para conseguir tirar a Gal daquele lugar que ela não conseguia sair.

Isso foi muito intencional e a gente apertou ainda mais isso na montagem, porque tem uma parte que você viu que são de imagens de arquivo e tal. A gente acabou apertando mais isso porque a gente sentiu essa força que precisava ter no filme, essa força antagonista.

A gente sabe que tudo é político, mas o teu cinema tem bebido bastante nos contextos políticos do Brasil. Você também fez o Alvorada, que assina com a Anna Muylaert, que traz os bastidores do golpe contra a presidenta Dilma. Foi uma escolha ou os caminhos foram te levando até esse lugar?

O Alvorada Dilma foi um filme de emergência, não foi um filme planejado. A gente se deu conta do que estava acontecendo e que a Dilma não tinha voz, simplesmente ela estava isolada dentro do Palácio da Alvorada e o mundo caindo, acontecendo um trilhão de coisas lá no Congresso, o Brasil em chamas e ninguém sabia o que estava acontecendo com a Dilma lá dentro.

Não à toa, várias mulheres se levantaram neste momento, não é só o nosso filme que retrata isso, tem o filme da Petra [Costa], tem o filme da Guta [Ramos], são mulheres que falaram “opa, estamos sendo caladas novamente, a gente precisa fazer alguma coisa”. E a gente foi. Eu considero o Alvorada, em todos os sentidos, uma exceção na minha vida, porque eu sou muito da ficção, eu tenho os meus três outros filmes – e agora meu quarto filme de ficção que eu estou terminando de escrever agora e devo filmar no ano que vem – num caminho muito específico da ficção.

Como você tem enxergado essa retomada do cinema brasileiro? Eu conversei há algumas semanas atrás com o Kleber Mendonça e ele falava que a colheita feita em 2019 e 2020, quando vários filmes foram premiados, ele e o Karim [Aïounz], principalmente, começou muito antes, ainda em 2014, 2015. No meio disso a gente teve um golpe e quatro anos de total desprezo pela cultura. O que esperar do cinema brasileiro daqui em diante?

É, eu acho está é mais uma retomada. Não é o primeiro baque do cinema brasileiro, mas acho que esse foi um dos mais profundos, porque acho que ele nunca tinha sido, antes, totalmente silenciado. O cinema foi apagado completamente e o que tinha antes. Tivemos um desmanche mesmo.

Agora eu estou sentindo um ar de renovação enorme, só que o trabalho é muito, muito, muito grande para reconstruir. É rápido de destruir e é muito lento para reconstruir. A gente teve, de alguma maneira, uma sorte – que não dá pra dizer sorte, porque o que fez isso acontecer foi uma coisa de azar – mas a gente tem a lei Aldir Blanc, a gente tem a lei Paulo Gustavo, que está de fato injetando bastante recurso no audiovisual agora.

Então, eu acho que tem uma possibilidade de uma retomada muito forte e, normalmente, quando a tempestade é muito grande, o sol brilha mais forte depois. Eu acho que vai vir coisa boa e estou sentindo nesse filme da Gal, em todas as entrevistas, em todas as pré-estreias, nas redes sociais, que as pessoas estão ávidas para ver um filme alegre, para ver um filme bonito, para ir ao cinema.

A gente teve uma pré-estreia aqui em São Paulo, com seis salas lotadas e metade do público teve que ir para casa, não deu para entrar. Foi chato por um lado, mas foi incrível, porque você vê que as pessoas estavam ávidas para ver o filme. E é um um filme que passa uma mensagem muito forte, de uma galera que lutou profundamente, teve uma coragem enorme, se posicionou fortemente contra o sistema, que estava muito errado, e a gente está sempre com uma ameaça de isso voltar. A gente tem que se posicionar.

É muito bom ver essa galera, que teve esse esse posicionamento, com alegria, com música, com cor. Embora tenha sido muito complicado, morreu muita gente, foi muito impactante, foi muito violento, eles se impuseram de uma maneira muito rica. Acho que isso é muito inspirador para a gente, para as novas gerações que não conhecem essas pessoas. E assim, gente, Gal Costa é um ídolo, Caetano Veloso, é um ídolo. E não é um ídolo mitológico, uma entidade, é um cara que quase mataram por fazer o que ele fez, que resultou, simplesmente, numa revolução cultural, política e comportamental no Brasil.

Edição: Thalita Pires

BIFO: CONTRA A SERVIDÃO HIGH TECH, DESERTAR DO TRABALHO

Outubro 24, 2023

Agora, são os valores humanos que se alinham à lógica das máquinas, aponta o filósofo. Sua resposta: rejeitar uma alienação ainda mais intensa, no novo mundo desterritorializado do trabalho – de onde germina o nazismo contemporâneo

OUTRASMÍDIAS

CRISE CIVILIZATÓRIA

por IHU

24/10/2023 –

Franco “Bifo” Berardi em entrevista a María Daniela Yaccar, no Página/12, com tradução no IHU

Os textos do seu livro Medio siglo contra el trabajo cobrem uma cronologia ampla, mas surpreendem pela sua atualidade. Nesta extensa entrevista, Berardi analisa, entre outras questões, os processos de ultratecnologização e a forma como a exploração do trabalho aprimorou os seus métodos.

Nos últimos 60 anos o mundo do trabalho conheceu uma enorme mudança que levou a uma “desterritorialização” das atividades. Os trabalhadores, precarizados e isolados, já não conseguem unir-se em solidariedade. Esta foi uma consequência da “contrarrevolução político-social do neoliberalismo”, que se entrelaçou com a “mutação tecnológica digital”. “O capital tecnofinanceiro não é identificável em termos territoriais ou pessoais”, o que dificulta qualquer negociação, postula o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, em entrevista concedida ao jornal argentino Página/12 por e-mail.

Outra hipótese que o pensador levanta quando questionado sobre a situação política argentina, especificamente sobre a vitória de Milei nas PASO, é que, junto com a inteligência artificial, a “demência” se expande pelo mundo: não são as máquinas que se alinham com os “valores humanos”; nossos cérebros adotam suas lógicas. “O nazismo contemporâneo nasce de um fenômeno de demência em massa”, alerta Bifo.

Os escritos que o pensador e ativista italiano produziu entre os anos 1970 e a hoje estão compilados em Medio siglo contra el trabajo. Canon Bífido, seu mais recente livro publicado na Argentina pela Tinta Limón. Para o autor, esse material permite aos seus leitores “compreender a evolução” do seu pensamento. Há ideias que pertencem claramente ao seu tempo – como o sonho de uma grande revolução do poder dos trabalhadores –, alimentadas pela participação do seu autor em movimentos que enfrentaram lutas específicas. Há outros que não envelheceram e é surpreendente que as tenha proposto tão cedo: já na década de 1970 falava dos impactos da tecnologia no local de trabalho; e na década de noventa alertou sobre os graves problemas que a sua invasão na vida cotidiana começava a provocar nos corpos e nas mentes.

Bifo nasceu em Bolonha em 1949. Participou das revoltas juvenis de 68; foi amigo de Félix Guattari; frequentou Foucault. Fundou revistas, rádios alternativas e canais de TV comunitários. Alguns de seus livros são La fábrica de la infelicidadTelestreetGeneración post-alfaEl sabio, el mercader y el guerreroFélixLa sublevación e Umbral. Crónicas y meditaciones.

Nos anos setenta fez parte de uma estratégia política da esquerda radical e dos movimentos contraculturais que propunham a rejeição do trabalho. Este é o fio condutor das intervenções incluídas no livro, mas a verdade é que se trata de uma combinação explosiva de quase 500 páginas em que percorre vários temas: “as transformações da dominação capitalista, o sofrimento psicológico, o domínio tecnológico, as práticas artísticas, os processos de subjetivação, as psicopatologias da comunicação, os neofascismos, o ocaso do futuro, a sensibilidade, a amizade e a guerra”.

Este é o resumo que aparece na contracapa do texto, editado por Federico Campagna, seu “curador”. Nesta entrevista, Bifo dá respostas sobre alguns destes temas e acrescenta a sua visão sobre o conflito no Oriente Médio. Recentemente Lobo Suelto publicou um artigo seu sobre o assunto (Ojo por ojo y el mundo está ciego). É um diário que reúne os acontecimentos anteriores à declaração de guerra, com uma introdução na qual salienta que a imprensa italiana nunca se refere aos israelenses como terroristas.

Eis a entrevista.

Quais as principais mudanças que se observam no mundo do trabalho desde a década de 1960 até hoje?

A contrarrevolução político-social do neoliberalismo, entrelaçada com a mutação tecnológica digital, produziu um efeito de desintegração e de precarização do trabalho: a precariedade, na sua vinculação com a desterritorialização da atividade, significa essencialmente a ausência de uma dimensão territorial comum aos trabalhadores. Além disso, o trabalhador precário encontra-se numa situação persistente de concorrência. Isso desintegrou a solidariedade na frente de trabalho. Estas transformações destruíram as próprias condições de solidariedade social e estabeleceram as condições da escravidão high tech.

Quem é o inimigo contra quem se rebelar hoje? Você disse que enfrentamos a novidade de que a burguesia não existe mais.

A burguesia era uma classe territorializada, especificamente identificável em seres humanos que podiam tomar decisões nas negociações com os sindicatos. Hoje é difícil identificar o capital tecnofinanceiro em termos territoriais ou pessoais, o que dificulta a negociação, a pressão social para obter melhorias salariais, etc. Ao mesmo tempo, a decisão humana perdeu força e autonomia porque a força que decide é a cadeia de automatismos técnicos incorporados nas máquinas de produção e especialmente na rede financeira. Não existe um inimigo específico, mas uma cadeia de abstrações que se pretendem naturais, inevitáveis.

Na década de 1980, você descreveu a transição do trabalho fabril para uma submissão à atividade criativa, científica e intelectual. Surge então o termo “cognitariado”. É um conceito que ainda nos ajuda a pensar esta época?

No segundo volume dos Grundrisse, no “Fragmento sobre as máquinas”, Marx fala da formação in fieri (“em processo”) do general intellect, a forma social na qual o conhecimento produtivo é incorporado. Esta intuição de Marx ganha corpo quando a rede digital possibilita um crescente poder produtivo da informação. Proletários da cognição: cognitários. A auto-organização do trabalho cognitivo seria a única forma de iniciar um processo de desconstrução do poder tecnofinanceiro automatizado. Dado que o fascismo e a violência se espalham por todo o planeta, não me parece que as condições para um processo de auto-organização do cognitariado ainda sejam possíveis. A alternativa é a barbárie desencadeada, a guerra e, em última análise, o fim da civilização.

Entre os trabalhadores precários é comum ver que alguns preferem não ter sindicato nem horário fixo; eles dizem que se sentem confortáveis como “empreendedores”. Na Argentina, observa-se isso entre os entregadores e os trabalhadores da tecnologia. Por que isso acontece?

A individualização da relação entre trabalhador e empresa tem sido uma das armadilhas que tem permitido ao capital maximizar os lucros e reduzir os salários. A ideologia de sermos free agents, autoempreendedores, foi muito forte na década de 1990, no período do surgimento das chamadas ponto.com, pequenas empresas de criação digital que faliram durante a crise digital do início do novo século. Os trabalhadores das ponto.com perderam o controle do seu trabalho e das suas criações; eles foram subjugados pelas grandes empresas digitais que se formaram nesse período. Desta forma, os autoempreendedores foram proletarizados, mas a ideologia totalmente falsa do autoempreendedorismo continua vigente.

Um livro de Byung-Chul Han, intitulado Capitalismo e impulso de morte (Vozes, 2021), contém uma polêmica entre o filósofo coreano e Toni Negri. Enquanto este último confia na “resistência”, uma “multidão” capaz de derrubar o império, Byung-Chul Han acredita que nenhuma revolução é possível hoje. Os trabalhadores são empreendedores de si mesmos, autoexplorados. As pessoas estão exaustas, deprimidas, isoladas. Que posição você assume neste debate?

Não me interesso muito pela retórica negriana, me parece um pouco falsa e antiga. O discurso de Byung-Chul Han parece-me ser uma reproposição tardia das intuições de Baudrillard. “Multidão” é uma palavra que não significa muito, mas a afirmação de que nenhuma revolução é possível parece-me banal. O problema é como se pode alcançar alguma autonomia relativamente à atual forma de capitalismo tecnofinanceiro e tecnomilitar. Minha resposta é: deserção. Desertar do trabalho, do consumo, da política institucional, da guerra, da procriação.

O que significa “desertar do trabalho”? Como poderíamos fazer isso quando precisamos dele para sobreviver?

Nas grandes fábricas italianas a expressão “rejeição do trabalho” circulava abertamente (na década de 1970): significava a rejeição de uma alienação intolerável para os jovens migrantes que vinham das cidades do sul, da Sicília, da Calábria, de Nápoles. Paralisação das linhas de montagem, sabotagem e greves selvagens eram comuns na Fiat, na Alfa Romeo, na indústria metal-mecânica e nas indústrias químicas. Hoje não há nada semelhante.

A rejeição não é efeito de uma energia coletiva e consciente, mas de uma deserção passiva, de um sentimento de esgotamento. 350 mil trabalhadores ingleses não voltaram ao trabalho após a pandemia. Chamam este fenômeno de long covid, mas não está claro que seja isso. É uma manifestação de cansaço físico e mental que tem uma dimensão muito grande. Na América, chamam-no de “a grande demissão” de 4 milhões e meio de trabalhadores. Na Itália, os concursos públicos para os quais no passado havia 100 mil candidatos para dez postos de trabalho estão agora desertos.

Quem disse que não podemos desertar do trabalho mesmo quando precisamos dele para subsistir? Existem maneiras de sobreviver sem consumir quase nada, nem roubar. Alguns podem pensar que é melhor morrer de fome do que aceitar a humilhação deprimente do trabalho.

O que você acha da tendência global de redução da jornada de trabalho?

Esta possibilidade talvez já seja ouvida há 40 anos em alguns setores do trabalho industrial. Mas estas são experiências isoladas, enquanto nos setores menos protegidos – a grande maioria – a exploração aumenta, assim como o tempo de trabalho. Os trabalhadores do sul da Espanha ou do sul da Itália, na sua maioria migrantes africanos, trabalham 12 horas, e não oito. A grande maioria dos trabalhadores cognitivos não tem horário. Os jornais dão muita publicidade a algumas experiências de redução, mas não falam muito sobre as condições dos novos escravos.

Já na década de 1990 você fazia um alerta sobre o pânico, a depressão, a angústia; os transtornos que a tecnologia pode gerar nos seres humanos. Na década de 2000, você falou de “saturação patológica” em massa. Que panorama você vê agora?

Os psiquiatras falam de depressão em massa. A taxa de suicídio aumentou especialmente entre os adolescentes. O distanciamento obrigatório durante a pandemia produziu um efeito de medo e angústia, que poderia ser definido como uma sensibilização fóbica ao corpo do outro. O efeito é que a agressão e a guerra se espalham por toda parte.

Na Argentina estamos perto das eleições gerais e para muitos a vitória de Javier Milei nas primárias gerou um choque, uma surpresa. Você tem acompanhado as notícias do país? Como analisa o fenômeno Milei?

Enquanto a inteligência artificial se espalha, paralelamente se espalha a demência natural. Não é uma brincadeira: é um diagnóstico. Os efeitos do alinhamento do cérebro humano com a inteligência artificial funcionam de maneira contrária ao que dizem os apologistas da ética para máquinas. Não são as máquinas que se alinham aos valores humanos (que não existem, que são critérios de seleção histórica e antropologicamente determinados). O cérebro humano está cada vez mais alinhado com a lógica técnica da máquina inteligente. Em 1919, Sándor Ferenczi, psicanalista da primeira geração freudiana, disse que o maior problema era que não sabemos como curar a psicose em massa. A psicose em massa evolui para o totalitarismo nazista nas décadas seguintes.

Hoje o problema é o mesmo: a humilhação, a solidão e a pobreza produziram efeitos de depressão em massa entre os jovens, e de demência senil, de agressividade nos impotentes. Já que os trabalhadores não podem se rebelar contra os exploradores, manifestam sua agressividade contra aqueles que são mais pobres e mais impotentes, os migrantes. O nazismo contemporâneo nasce deste fenômeno de demência em massa, que não sabemos como curar.

Por que o fato de o cérebro humano adotar a lógica das máquinas é um indicador de demência em massa?

Antes dos computadores, as crianças aprendiam a operação matemática da divisão. Hoje ninguém aprende a dividir 100 por 5. A automatização de processos cognitivos produz necessariamente a anulação de competências. A virtualização do contato corporal produziu um enorme efeito incapacitante nas (competências) afetivas. A frequência de encontros sexuais caiu drasticamente nos últimos 30 anos (David Spiegelhalter, Sex by numbers; Jean Twenge, I-Generation).

A humanidade está perdendo habilidades cognitivas e emocionais. O efeito é, por um lado, a depressão psicológica produzida pela solidão, o reverso paradoxal da hipercomunicação virtual. Por outro lado, a explosão de agressividade acumulada e não expressa. Ao mesmo tempo, devemos considerar a demência senil em massa, um efeito do prolongamento do tempo de vida em condições cada vez mais preocupantes de isolamento social.

A IA, um “perigo para a paz”

Qual é a sua opinião sobre a inteligência artificial?

Lembro-me do que disse Humpty Dumpty. Alice pergunta: “Qual é a raiz do significado das palavras?”. Ao que ele responde: a questão é quem é o chefe. Quem comanda estabelece o significado das palavras. O mesmo acontece quando falamos de inteligência artificial. Quem comanda? O nazista Elon Musk, as grandes empresas tecnofinanceiras. Consequentemente, a inteligência artificial é um perigo para a liberdade, mas também para a paz. A primeira aplicação da IA ocorre naturalmente no sistema militar. Consequentemente, podemos imaginar que a decisão de lançar a bomba depende cada vez mais de uma cadeia de automatismos lógicos e tecnológicos.

Qual é a missão da IA? Eliminar a desordem. Quem é a desordem? Eu sou a desordem, e você, e todos os humanos. Acho que Stephen Hawkins estava certo quando disse que a IA é o maior perigo para o futuro da humanidade. Mas podemos parar o processo de controle e morte? Em condições de concorrência econômica e militar, nada pode ser detido. Se eu não produzir a morte tecnológica, o meu inimigo o fará.

As guerras

A respeito da guerra Rússia-Ucrânia, você afirma no livro: “É a culminância de uma crise psicótica do cérebro branco”. Você também diz que, para analisá-la, necessitamos de uma “geopolítica da psicose”. Por quê?

A guerra Rússia-Ucrânia e o extermínio recíproco israelo-palestino são uma prova clara de que estamos numa fase de violência psicótica acelerada. A causa mais profunda é a incapacidade do mundo branco (judaico-cristão) de aceitar o declínio do Ocidente. O declínio demográfico, o envelhecimento da população e o esgotamento psíquico produzem um efeito de reação impotente e furioso que se manifesta como uma verdadeira demência senil coletiva chamada fascismo. O Ocidente não pode impedir esta tendência, mas a sua reação é pura violência, sem estratégia, futuro ou esperança. A derrota do Ocidente é inevitável neste sentido, mas pode-se temer que a sua demência senil prefira o suicídio nuclear ao colapso do domínio imperialista.

“A vingança é tudo o que resta para aqueles que são submetidos à violência e à humilhação sistemáticas”, escreveu no seu artigo sobre o conflito no Oriente Médio, no qual detalha as agressões de Israel contra os palestinos. Você pode resumir sua posição?

Estamos diante de um fenômeno de fúria desencadeada de ambos os lados. O Hamas é uma organização suicida, porque o suicídio tornou-se a única forma eficaz de luta. Marek Edelman – o único membro do grupo ZOB (Organização Judaica de Combate) que sobreviveu à revolta dos judeus do gueto de Varsóvia – a quem foi perguntado o porquê de tal revolta suicida, respondeu: “Decidimos livremente quando e onde morrer”.

Os terroristas do Hamas podem dizer a mesma coisa. Só o desespero pode explicar o que está acontecendo: uma onda de fúria desesperada, de um lado e de outro. Não acredito que Israel sobreviverá à explosão de loucura exterminadora que foi desencadeada após a criminosa agressão palestina. Olho por olho, o mundo ficou cego. Acredito que depois deste horror Israel se desintegrará.

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IHU

O principal objetivo do Instituto Humanitas Unisinos – IHU é apontar novas questões e buscar respostas para os grandes desafios de nossa época, a partir da visão do humanismo social cristão, participando, ativa e ousadamente, do debate cultural em que se configura a sociedade do futuro. Para isso, o Instituto assume cinco grandes áreas orientadoras de sua reflexão e ação, as quais constituem-se em referenciais inter e retrorrelacionados, capazes de facilitar a elaboração de atividades transdisciplinares.

PETRÔNIO PORTELA FILHO: O ARADO TORTO DOS QUILOMBOLAS

Outubro 23, 2023

23 de outubro de 2023 –

O Arado Torto dos quilombolas

 por Petronio Portella Filho

Com 400 mil exemplares vendidos, Torto Arado é um fenômeno de vendas. Escrito por Itamar Vieira Júnior, um afrodescendente quase desconhecido, o livro foi publicado e premiado primeiro em Portugal, depois no Brasil. Ele recebeu cotação máxima, cinco estrelas, na Amazon Brasil.

É leitura essencial para entender quem são os quilombolas, embora a palavra praticamente não seja usada no livro. O autor procura narrar vidas, sem tinturas ideológicas. Só lá pela metade do livro, o autor menciona a cor da pele dos protagonistas. São negros retintos, descendentes de escravos, que vivem “de favor” em uma grande fazenda. São três os personagens principais: Zeca Chapéu Grande, líder religioso e curandeiro, e suas filhas Belonísia e Bibiana. São vidas interessantes e dignas, apesar da pobreza extrema.

A abolição da escravatura e as fugas de escravos deixaram muitos negros sem moradia e sem trabalho. Foram acolhidos por proprietários rurais que lhes ofereciam trabalho e o direito de construir casas de barro, sem alvenaria. Não recebiam salário e viviam daquilo que plantavam, dividindo parte da colheita com o dono da terra.

Os quilombolas da primeira geração sabiam o que era vagar sem eira nem beira. Eram analfabetos. Não recebiam salário, viviam em situação análoga à escravidão, mas se sentiam em dívida com os que os tinham acolhido. Só os da segunda geração aprenderam a ler e tomaram conhecimento dos direitos trabalhistas. Foi quando surgiu o conflito social. Começaram a lutar pelo direito à terra que cultivaram durante um século sem remuneração.

Torto Arado nem sempre é leitura leve. Há muita pobreza, sofrimento e injustiça. Só na terceira e última parte os personagens quilombolas conseguem justiça. O final é surpreendente e muito original, mas prefiro não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. O fato é que nós, brasileiros, precisamos parar de nos vangloriar de sermos uma democracia racial e conhecer melhor nossa história. 

O Brasil teve sua economia ligada ao trabalho escravo durante 388 (74% de sua história). Dois pesquisadores da Universidade de Cambridge, David Eltis e David Richardson, passaram 12 anos analisando os registros das 35 mil viagens de navios negreiros. Dos 12,5 milhões de africanos sequestrados, dez milhões sobreviveram, dos quais 5,8 milhões vieram para o Brasil. Portugueses e brasileiros foram os maiores traficantes de escravos da história. Além disso, o Brasil foi o maior importador de escravos e o último país das Américas a abolir a escravatura.

Torto Arado mostra que o drama dos afrodescendentes não terminou com a Lei Áurea. Eles saíram da escravidão para um tipo cruel de servidão. Felizmente as novas gerações têm lutado por seus direitos. O direito dos quilombolas à terra que ocuparam tem respaldo constitucional desde 1988. Nos termos do art. 68 da ADCT, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Infelizmente, 34 anos mais tarde, o art. 68 da ADCT ainda não foi devidamente cumprido. O IBGE, através do Censo 2022, contou pela primeira vez a população quilombola do Brasil. São 1.327.208 pessoas, das quais apenas 62.859 (4,3% do total) residiam nos 147 territórios quilombolas oficialmente titulados.

 Petronio Portella Filho é doutor em Economia pela Unicamp e consultor concursado do Senado Federal

BADI ASSAD APRESENTA ‘ILHA’, NO SESC EM SÃO PAULO

Outubro 22, 2023

Cantora, compositora e violonista fará show de lançamento de disco que tem parcerias com Chico César, Alzira E, Dani Black entre outros.

Redaçãojornalggn@gmail.com

Gal Oppido

Entre uma viagem e outra pelo Brasil e pelo mundo, e completando 35 anos de carreira, a cantora, compositora e violonista Badi Assad apresentará no dia 22 de outubro, às 18 horas, no SESC 24 de Maio, Ilha, show baseado em seu mais recente disco. Nesse álbum, a artista tem parcerias com grandes nomes da música popular Brasileira. No show, Badi (voz e violão), estará acompanhada por Meno Del Picchia (contrabaixo e samples) e Décio 7 (bateria e samples).

O repertório é composto por seis canções inéditas e duas recém lançadas, a autoral “Eterno” e a composta em parceria com Lucina, “Fruto”. “Do silêncio veio o som”, “Traga-me”, “Ilha das Flores”, “Olhos d’água” e “Palavra” foram compostas em parceria com Chico César, Alzira E e Lívia Mattos. “Ilha do Amar”, com Dani Black. “São reflexões e sentimentos sobre o lugar de onde viemos, sobre as energias opostas e complementares feminina e masculina, sobre ter encontrado um lugar seguro, representado por uma Ilha”, explica Badi.

SERVIÇO: BADI ASSAD apresenta ILHA

Data e horário: 22 de outubro, às 18 horas

Local: SESC 24 de Maio – Rua 24 de maio, 109 – República – São Paulo – SP – Tel.: (11) 3350.6300

Preços: R$ 40 (inteira), R$ 20 (meia) e R$ 12 (credencial plena)

Ingressos: https://www.sescsp.org.br/programacao/badi-assad-6/ (compra on line a partir de 10/10)

Duração: 90 minutos

Sobre Badi Assad

“One woman band” (Uma mulher banda). Foi dessa forma que a imprensa Norte-americana carinhosamente apelidou Badi Assad, diante de seu virtuosismo ao misturar sua voz, seu violão e percussão em suas composições. Não por acaso, a Guitar Player a escolheu entre os 100 melhores artistas do mundo e Classical Guitar considerou-a, junto com artistas como AniDiFranco, Ben Harper e Tom Morello, um dos 10 jovens talentos que revolucionariam o uso dos violões nos anos 1990. Batizada como Mariângela Assad Simão, nasceu em 1966, em São João da Boa Vista (SP), mudando em seguida para o Rio de Janeiro, com seus pais, que decidiram proporcionar aos seus irmãos Sérgio e Odair, aulas de violão clássico. Em meados dos anos 1980, já como Duo Assad, eles ganharam reconhecimento e popularidade internacionais. Badi seguiu os passos dos irmãos.

Aprendeu piano ainda criança, mas já aos 14 anos, conquistava o primeiro prêmio como violonista. E então são 19 álbuns ao longo da carreira, sendo que um deles, o Wonderland (2006), selecionado entre os 100 melhores da BBC de Londres e um dos 30 melhores da Amazon. Em 1998, se mudou para os EUA, para investir em sua carreira e lançou ‘Chameleon’, com repertório composto majoritariamente por suas músicas, em parceria com o ex-integrante da banda ‘Megadeth’, Jeff Scott Young. O álbum foi um sucesso internacional e sua música ‘Waves’ ficou entre as dez mais tocadas durante semanas na Espanha, assim como foi escolhida para integrar a trilha do filme ‘It runs in the family’ (com Michael e Kirk Douglas). Badi também compôs para o público infantil, conquistou diversos prêmios e foi incluída na lista dos 70 mestres da história Brasileira do violão, sendo uma entre as três mulheres, assim como a única representante feminina de sua geração, pela Rolling Stones/BR.

Não por acaso, a Guitar Player a escolheu entre os 100 melhores artistas do mundo e Classical Guitar considerou-a, junto com artistas como AniDiFranco, Ben Harper e Tom Morello, um dos 10 jovens talentos que revolucionariam o uso dos violões nos anos 1990. Em 2015, Badi foi convidada para trabalhar com a organização, sediada em Chicago, GATC (Genesis at the Crossroads), que tem como foco principal a construção da paz mundial. Com eles Badi integra, como violonista e vocalista, o grupo multicultural Saffron Caravan, ao lado do vocalista marroquino Aaron Besoussan, do virtuoso alaudista israelense-árabe, Haytham Safia e do percussionista venezuelano Javier Saumme. Além disso, ela atua como palestrante nas mesas redondas promovidas pela GTCA sobre artes e transformação de conflitos, assim como é responsável pelo programa de música para o Genesis Academy Summer Institute, um programa educacional de treinamento de liderança e construção da paz para jovens internacionais de áreas de conflito.

Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=I8UovyWlWX0

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