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A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, VISTA POR QUEM SEGUIU SUA CHAMA

Junho 4, 2020

Livro de Luiz Pericás desenha, em mosaico, uma história do esforço para superar o capitalismo no país. Para fazê-lo, regata e articula 19 textos escritos, entre os anos 1920 e 80, por participantes diretos da luta revolucionária.

Por Deni Alfaro Rubbo

O enigma da revolução

As revoluções fazem parte dos grandes mistérios da história que despertam anseios, inquietações e esperanças. Essa “imprudência criadora”, como falava Daniel Bensaïd, carrega a imagem de um mar agitado, moldada por reviravoltas imprevisíveis. “Elas nascem no nível do solo, do sofrimento e da humilhação”i. Plurais em sua natureza, as revoluções são temidas e desejadas, tecidas por múltiplos processos em ritmos desiguais e combinados.

E, na periferia do capitalismo, especialmente no Brasil, teria ocorrido uma revolução? Ela é, afinal, uma ação, um processo ou um acontecimento? Definitivamente a resposta não é fácil. Desvendar o enigma da revolução brasileira (mesmo em sua imaginação histórica-sociológica) implica equacionar a formação social do país e suas idiossincrasias culturais, com a dinâmica contraditória do capitalismo e as antinomias da modernidade. Este é o assunto do livro Caminhos da revolução brasileira, organizado pelo historiador Luiz Bernardo Pericás. Um de seus grandes méritos é salvar do esquecimento ou da indiferença textos e autores – uns mais, outros menos – da tradição marxista brasileira que, longe ser homogênea, revela uma longa controvérsia pluralista, de seus termos, formas e conteúdos adotados.

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Pericás faz uma introdução crítica de praticamente noventa páginas e apresenta um caleidoscópio de “intérpretes” que deslindaram sobre a revolução brasileira, estruturada em diversos períodos na história política do país no século XX. Em sua prosa sóbria e objetiva, cercada por um extenso aparato bibliográfico, costura pacientemente os nexos entre autores, textos e contextos. De partida, é possível constatar rapidamente que os profusos usos da noção “revolução” pelo campo da esquerda brasileira (ainda que a direita também a incorpore) parece, muitas vezes, mais um sofá velho e grande, em que todos os segmentos se acomodam, cada qual na peleja sobre a “melhor” definição. Segundo o autor:

No painel ideológico daquele momento, ativistas de diferentes vertentes políticas, debateram intensamente os caminhos da revolução no território nacional. Nesse sentido, é possível perceber claramente, nas discussões sobre o assunto ao longo das décadas, um amplo leque de influências sobre as distintas tendências e partidos, como o leninismo clássico, o stalinismo, o trotskismo, as políticas khruschovianas, o maoísmo e as ideias de Fidel Castro e Che Guevara, assim como aquelas oriundas do arcabouço teórico cepalino, do nacionalismo de esquerda e da T[eoria] M[arxista] [da] D[ependência]ii.

É mais do que claro, por conseguinte, que mediações políticas e ideológicas tiveram um peso significativos nos esquemas de explicações sobre a “revolução brasileira” entre as décadas de 1920 e 1980. Muitos dos personagens trazidos no livro viveram intensamente o desenvolvimento cultural e político do país, o que inclui oposição ou colaboração com governos, criação de editoras, participação de coleções, edição de revistas e jornais, militância em partidos, debates públicos, presença em universidades e produção de textos. Embora a “realidade nacional” fosse o prato principal, a maior parte das abordagens realizadas cruzava-se umbilicalmente com acontecimentos internacionais, como a Revolução Russa e a Revolução Cubana, bem como as revoluções anticoloniais e lutas de libertação nacional na África e na Ásia.

Uma (longa) controvérsia pluralista

Eis aqui os nomes e as respectivas datas de seus textos dos dezenove autores presente no livro. Octavio Brandão (texto de 1924), Luiz Carlos Prestes (de 1930), Caio Prado Júnior (de 1947), Astrojildo Pereira (de 1948), Leôncio Basbaum (de 1960), Alberto Passos Guimaraes (de 1960), Ana Montenegro (de 1960); Nelson Wenerck Sodré (de 1962), Elias Chaves Neto (de 1963), filiados ao Partido Comunista do Brasil (PCB); Mário Pedrosa e Lívio Xavier (de 1930), de origens trotskistas; Roberto Sisson (de 1935) da Aliança Nacional Libertadora (ANL); Carlos Marighella (de 1966) da Aliança Libertadora Nacional (ANL); Franklin de Oliveira (de 1962), Florestan Fernandes (de 1964) e Luciano Martins (de 1965), sem partido; Luiz Alberto Moniz Bandeira (de 1957), Ruy Mauro Marini (de 1969) e Éric Sachs (de 1970) da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop); Theotonio dos Santos (de 1985), ex-militante da Polop e do Partido Democrático Trabalhista (PDT).

São manifestos, palestras, programas, textos publicados em jornais, revistas e mimeografados. Muitos dos “intérpretes” (eram, em sua maioria, jornalistas e professores universitários) produziram avaliações durante décadas, e, portanto, na medida em que os câmbios políticos e históricos se alteravam, mudaram de posicionamento sobre suas ideias políticas, bem como nem sempre permaneceram na mesma agremiação. Por exemplo, o texto redigido por Moniz Bandeira “O caráter socialista da revolução no Brasil”, ainda que antecipasse caminhos da Polop, havia sido elaborado antes de sua fundação.

A seleção de textos nos conduz ao âmago das preocupações do sentido da revolução brasileira: cortes cronológicos na formação histórica (chegada da família real em 1808, abolição da escravidão de 1888, “revolução” de 1930, o Estado Varguista, o “desenvolvimentismo” de Juscelino Kubitschek, o golpe civil-militar de 1964 etc.); possíveis alianças entre grupos sociais e políticos (burguesa “nacional”, pequena burguesia urbana, campesinato e proletariado); caráter da revolução (“agrária”, “nacional”, “anti-feudal”, “anti-imperialista”, “democrático-burguesa”, “socialista”).

De maneira geral, a tradição comunista do PCB, com exceção de Caio Prado Júnior, encontrou mais um refúgio no dogmatismo de textos teóricos do que uma reflexão profunda sobre as peculiaridades do Brasil. Tudo parecia ser definido a priori. Sob um prisma eurocêntrico e positivista, o desenvolvimento socioeconômico do Brasil seguia a evolução histórica da Europa através de uma concepção de história por etapas inexoráveis. Baseada na ideia de que o “atraso” era passível de “superação”, fazia-se uma apologia do “desenvolvimento” industrial para remoção dos resquícios “feudais” do país e projetava-se aliança com uma “burguesia local” que compartilhasse com as classes subordinadas o projeto “emancipatório”. A revolução (burguesa) brasileira parecia que tinha hora marcada para ocorrer de acordo com o relógio mórbido da Internacional Comunista e do stalinismoiii.

A tradição dissidente do marxismo, por seu turno, ainda que com contradições e posições eventualmente voluntaristas, conseguiu interrogar-se com mais êxito sobre as particularidades históricas do país e permanecer mais distante do etapismo mecanicista, que vigorou com força na tradição “oficial” no marxismo do século XX. O arcaico versus moderno, era substituído por uma análise mais matizada em um país que trazia em sua historicidade múltiplas temporalidades que não obedeciam às “leis” das sociedades da Europa Ocidental. O Brasil lançava-se no mundo capitalista “ocidental” de um modo singular e problemático, e, desse modo, sua revolução também seria necessariamente um não enquadramento de seu modelo “clássico”. A situação de dependência ao imperialismo estadunidense, os arranjos internos de uma burguesia aliada aos proprietários de terras e com poder econômico construído por meio da especulação financeira são indícios da impossibilidade de um programa de autonomia nacional conduzida por ela.

Ainda que muitos de seus intelectuais tenham nuances significativas em seu pensamento sobre a revolução brasileira, trata-se de um material de pesquisa de extrema relevância. Pericás não apenas traz autores consagrados e banidos, mas optou por textos desconhecidos mesmo por autores mais renomados. Por exemplo, “Os fundamentos econômicos da revolução brasileira”, de Caio Prado Júnior, publicado em 1947 no Boletim de Discussão do órgão A Classe Operária; “A ‘revolução brasileira’ e os intelectuais”, de Florestan Fernandes um discurso de paraninfo para a turma da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em 1965.

É claro que toda seleção de documentos históricos suscita objeções sobre a ausência de textos e autores, quase como um efeito natural desse tipo de investigação. Dissabores à parte, o livro não pretende esgotar o tema, tampouco os autores e textos eleitos. Aliás, no minucioso prefácio elaborado por Pericás, ele não somente analisa e contextualiza os dezenove intelectuais-militantes e seus respectivos textos, mas insere outros personagens nos registros sobre as discussões em torno do Brasil e a revolução. Aparecem em cena Jacob Gorender, Maurício Tragtenberg, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Osvaldo Peralva, Charles Wagley, Celso Furtado, Alberto Guerreio Ramos, Moisés Vinhas, Roland Corbisier, etc. Outro empreendimento similar a esse, organizado também por Luiz Bernardo Pericás (e Lincoln Secco), Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes renegados (2014)iv, obra em que resgatam trajetórias de “intérpretes” do Brasil, pode-se apreciar igualmente de maneira positiva.

O rescaldo de Caminhos da revolução brasileira, portanto, é um mapeamento vigoroso ao remexer nos alicerces de uma parcela heterogênea da tradição marxista brasileira. Nessa fornada de avaliações, frequentemente arriscadas e polêmicas, sob um frenético cabo de guerra, nem toda abordagem é aceita enquanto potência de análise, o que não significa que devemos ignorar as “ilegítimas”. Com todas as discordâncias que se faça sobre alguns diagnósticos, elas merecem ser conhecidas e estudadas para que se possa fazer um incontornável balanço crítico.

O Brasil hoje: a contrarrevolução armada

O desenho dos horizontes intelectuais e políticos sobre os impasses históricos da revolução brasileira termina na década de 1980, seguindo a narrativa do organizador do livro. O fim da ditadura civil-militar, o advento da Nova República e o fim do socialismo de Estado abriram uma nova fase da história do Brasil e de renovação da esquerda tradicional. Nas décadas subsequentes a “globalização e o “neoliberalismo” moldaram uma nova fase do capitalismo contemporâneo. A tradição intelectual de esquerda apegada a um projeto de modernização capitalista mostrara sinais de esgotamentov. Seria preciso romper com dos ciclos vertiginosos do “progresso” e do “desenvolvimento” que, são, na realidade, condutores performáticos da nova exclusão. Todo “progresso” (das mineradoras ao agronegócio que desterritorizam a vida e a natureza) se reatualiza como catástrofe social sob um capitalismo dependente e destruidor.

Um livro com todos os temperos de Caminhos da revolução, lançado em meio a um país imerso a uma crise política, social e econômica sem precedentes, suscita um comentário final. Nesse compasso, resgatamos outro intérprete dissidente da “revolução” no Brasil e um dos intelectuais que buscou compreender o caráter especial da periferia diante do “neoliberalismo”, exemplo paradigmático e conhecido por suas críticas agudas em relação à tradição intelectual e política “desenvolvimentista”: Francisco de Oliveira (1933-2019).

Em seu ensaio “Vanguarda do atraso e atraso da vanguarda: globalização e neoliberalismo na América Latina”, de 1997, publicada na extinta revista Praga, o sociólogo pernambucano analisava os componentes da singularidade histórica e contemporânea do Brasil diante da nova posição subalterna nos processos de expansão global capitalista. Segundo ele, o “atraso da vanguarda” são “complexos processos de nova direitização, neoconservadorismo, racismo físico e cultural, intensa transformação dos sujeitos sociais, desemprego que no fundo expressam uma radical exasperação dos limites da mercadoria. Uma crise da modernidade que volta a tangenciar os limites do totalitarismo, numa espécie de Auschwitz sem chaminés de crematório”vi.

O retorno de um suposto totalitarismo transformado pelas mesmas instituições que processam a democracia traria seu antípoda, a “vanguarda do atraso” que, em linhas gerais, “consiste em chegar aos mesmos limites superiores do capitalismo desenvolvido sem ter atingido seus patamares mínimos”. Trata-se de contradições internas que se cruzam e intercruzam com o capitalismo mundial: “É nisto”, sentencia Oliveira, “que consiste tanto a especificidade quanto a singularidade do subdesenvolvimento como a negação do desenvolvimento linear”. Chico prognosticou de maneira lapidar o buraco que nos enfiamos. Não se trata mais de uma “nação” em construção, mas de um resultado, de uma hecatombe social gestada através do “circuito global de apropriação colonial”, como falava Florestan Fernandesvii, entregue irrestritamente às exigências de uma economia internacional agroexportadora, da dominação territorial e de políticas diuturnamente racistas e misóginas. Vivemos uma naturalização extrema do estado de exceção, da desigualdade impiedosa e da destruição avassaladora. Como vaticinou Chico de Oliveira: “É a absoluta transparência, colada imediatamente em si mesma. É o ‘ovo da serpente’ bergamiano, a violência sans ambagesviii.

Discutir os desafios de uma “revolução brasileira” é também estar conectado com uma memória das lutas do passado e do presente de um Brasil profundo, renegado e rebelde, distante dos centros metropolitanos. Isso perpassa as heresias indígenas em suas retomadas por terras e nas lutas constantes dos povos quilombolas. São mediações fundamentais – e não meros apêndices – para o entendimento da formação social brasileira, enquanto sujeitos sociais históricos atuantes. Desse modo, à luz do contexto das dinâmicas do capitalismo contemporâneo na formação periférica de origem colonial, com reiterados processos de espoliação e de opressão sobre as classes subalternas, o tema da revolução brasileira não se extingue. Ao contrário: ganha mais complexidade diante de novas relações sociais e mentais, em nível teórico e político.

i Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

ii Luiz Bernardo Pericás, Introdução: caminhos da revolução brasileira. ____ (org.). Caminhos da revolução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 14.

iii Sobre o eurocentrismo no marxismo latino americano, ver Michael Löwy, Introdução: Pontos de referência para uma história do marxismo na América Latina. ___ (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Perseu Abramo, 1999, p. 9-66.

iv Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.

v Osvaldo Coggiola, A agonia da tradição crítica brasileira e latino-americana. Crítica Marxista, Campinas, pp. 90-110, 2005.

vi Francisco de Oliveira, Vanguarda do atraso, atraso da vanguarda: globalização e neoliberalismo na América Latina, Praga, São Paulo, Hucitec, 1997, p. 33.

vii Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.

viii Francisco de Oliveira, Diálogo na nova tradição: Celso Furtado e Florestan Fernandes. Adauto Novaes (org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 480.

Deni Alfaro Rubbo é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS).

Victor Jara faria 85 anos, sua obra permanece atual na América Latina

Outubro 8, 2017

À direita, Victor Jara participa de ato político durante a campanha de Allende

Em 12 de setembro de 1973, cerca de 600 professores e estudantes da Universidade Técnica do Estado (UTE), em Santiago, faziam vigília no campus. O grupo manifestava seu apoio ao presidente Salvador Allende, deposto na véspera por um golpe militar patrocinado por Augusto Pinochet, quando foi conduzido ao Estádio Chile. Era um ginásio de esportes no qual se realizavam shows, partidas de vôlei e basquete, que tinha sido convertido desde o dia anterior em centro de detenção e quartel general da repressão. Entre os presos estava um conhecido compositor de cabelo encaracolado, logo identificado por um dos soldados. “Não o tratem como mulherzinha”, orientou o oficial. Seu nome era Víctor Jara.

Professor da Faculdade de Comunicação da UTE, Víctor Jara militava no Partido Comunista, havia apoiado a eleição de Allende pela Unidade Popular em 1971, e firmava-se como o maior nome da canção de protesto em seu país. Instantes depois de pisar no Estádio Chile, Víctor Jara foi brutalmente espancado. Seu rosto vertia sangue quando lhe esmigalharam também as mãos, a coronhadas, diante de todos. Seus torturadores afirmavam fazer aquilo para que ele nunca mais empunhasse um violão.

Cinco dias após a prisão, Víctor Jara foi assassinado. O laudo emitido após a autópsia, feita quando localizaram o cadáver num matagal, indicou uma porção de ossos quebrados e 44 marcas de balas. Antes de morrer, conseguiu redigir um poema, entregue aos companheiros de cárcere, que providenciaram cópias e conseguiram preservá-lo, dando-lhe mais tarde o título de “Estádio Chile“: “Somos cinco mil aquí/ en esta pequeña parte de la ciudad/ (…) Seis de los nuestros se perdieron/ en el espacio de las estrellas./ Uno muerto, un golpeado como jamás creí/ se podría golpear a un ser humano./ Los otros cuatro quisieron quitarse/ todos los temores, / uno saltando al vacío,/ otro golpeándose la cabeza contra un muro/ pero todos con la mirada fija en la muerte./ ¡Qué espanto produce el rostro del fascismo!”. Trinta anos depois, em setembro de 2003, o mesmo Estádio Chile foi nomeado Estádio Víctor Jara.

Filho de lavrador, Víctor Jara tocava e cantava num grupo de música folclórica quando conheceu Violeta Parra, na segunda metade dos anos 1950, e foi convencido por ela a continuar insistindo na carreira. Em 1965, já tinha gravado um disco com o conjunto quando passou a frequentar a Peña de los Parra. Seus dois primeiros LPs como artista solo foram lançados em 1967.

Aos poucos, a canção folclórica e os temas rurais foram cedendo espaço para a música de protesto, mais urbana e, ao mesmo tempo, profundamente alinhada às bandeiras políticas da época. Víctor apoia o líder vietnamita Ho Chi Min, citando-o nominalmente em plena guerra fria na canção “El Derecho de Vivir en Paz“. Grava “Cruz de Luz”, de Daniel Viglietti, solidarizando-se com o padre e guerrilheiro colombiano Camilo Torres. Monta um repertório com canções em homenagem a Pancho Villa, Che Guevara e Salvador Allende. Musica o poema de Neruda “Aquí me Quedo“: “Eu não quero a pátria dividida / cabemos todos na minha terra”.

Mais conhecido como compositor de “Te Recuerdo Amanda”, gravada por Mercedes Sosa, Joan Baez, Ivan Lins e muitos outros, Víctor Jara registrou sua missão na primeira estrofe da canção “Manifesto“: “Eu não canto por cantar/ nem por ter uma voz bonita/ Canto porque o violão/ tem sentido e razão.”

TRÊS POEMAS DE MATHEUS BARBOSA

Abril 16, 2017

Publicamos abaixo três criações poéticas de Matheus Barbosa, estudante do segundo ano do ensino Médio da Escola Estadual Engenheiro Artur Soares Amorim.

Lá e cá

“Lá e cá lá e cá,
passam sem parar,
pessoas formigas,
sem deixar pensamentos voar.

Lá e cá lá e cá,
utopia destruída,
pessoas corroídas,
trabalham sem parar.

Sociedade cega,
civilização dominada,
florestas por dinheiro,
E o amor? Não existe mais nada.

Direção infinita,
inimigo a vista,
acorda marinheiro,
trabalhar, trabalhar,
ganhar dinheiro. “

Humor-colia

“Em poemas,
escrevo minha dor,
a dor que o mundo oferece.

Obrigado mundo,
por oferecer essa dor,
que em meus poemas escreves.”

Pátrialogia

“Se for pra morrer queimado,
que queimem meu coração,
pois de coração quente,
as pessoas precisam.

Se for pra morrer baleado,
baleias minha mente,
Para que se exploda de criatividade.

Não morro por vaidade,
não morro por agonia,
morro por minha pátria,
que irá melhorar um dia.”

Um ano sem Umberto Eco, o último renascentista

Fevereiro 20, 2017

170219-Eco

A erudição e o diálogo entre as disciplinas humanas parecem hoje derrotados pelos “especialistas” e a cegueira neoliberal. Porém, resistimos: nada está consumado

Por Fran Alavina

Neste fevereiro completa-se um ano da morte do pensador italiano Umberto Eco (1932-2016). Conhecido pelo público não acadêmico a partir do sucesso do romance O nome da Rosa, depois convertido em filme, hoje é possível afirmar que o profundo significado da morte de Eco no plano da cultura ficou velado pela repercussão midiatizada de sua partida. Não morria, em 19 de fevereiro de 2016, um simples intelectual acadêmico que, vez ou outra, falara ao grande público. Tratava-se de alguém que sabia se movimentar com desenvoltura entre os meios universitários e os espaços midiáticos, sem se deixar contaminar pela artificialização de uns, ou pelo isolacionismo de outros.

Quase todos os jornais italianos apegaram-se aos elementos midiáticos da profícua carreira intelectual e literária de Eco. Celebraram seu fim como fazem com a morte de algum astro pop: com um rápido jogo de imagens rememorativas que não passam da superficialidade da retina, acompanhadas por uma falação ininterrupta que retira qualquer reverência ante o silêncio da morte. Nas mãos da velha mídia, quem morre se transforma em um ente cinicamente celebrado, pois não se morre, vira-se notícia. Repetiram, com exaustão, que Eco era um homem de cultura extensa, um erudito reconhecido internacionalmente, por isso um italiano memorável. Ressaltou-se, por fim, que seu velório seria um sóbrio ato laico. Na Itália cabisbaixa pela crise, Eco era um dos poucos motivos de orgulho. Sua obra relacionava saber e vida civil: algo que outrora era uma construção tipicamente italiana, hoje um liame corroído pela ideologia daespecialização e pela negação das ciências humanas.

Parece quase uma trama tecida pela fortuna com os fios da ousadia, que a última obra de Eco fosse justamente um romance sobre o jornalismo faccioso e sensacionalista, o romance Número Zero. Uma visão sobre a manipulação jornalística e suas mazelas. A mentira, que uma vez tornada notícia, acaba por se apresentar como se verdade fosse. Era como se antes de sua morte, Umberto Eco, por meio de sua erudição aguda e crítica, já tomasse parte na querela sobre a pós-verdade, que no ano mesmo de sua partida, se tornou o mote explicativo de todos os nossos problemas. Ironia que o autor de Apocalípticos e Integrados, uma das mais lúcidas análises sobre os mass media, perde a posição de “meio-termo” que defendera para tornar-se integrado. Uma integração proporcionada por sua morte e que lançou sombras sobre o liame que unia a diversidade de sua produção. Talvez a mais perversa expressão dessa integração tenha sido a definição simplória de Umberto Eco como sendo o erudito pop.

É nesse quadro – mesmo repercutindo e ressaltando o significado de um velório laico no país de um catolicismo que oscila entre o apelo turístico-museológico e o fortuito carisma de seus papas – que os jornais e a TV fechavam os olhos para a relação essencial entre toda a vasta produção de Eco e a tradição da cultura das letras e humanidades. Ora, esta longa tradição perpassa a própria formação da identidade nacional italiana na medida em que lá se iniciou e se fundamentou aquilo que posteriormente se convencionaria denominar de saberes humanísticos, (os studia humanitatis). Tradição das humanidades que tem perdurado na longa tradição da história italiana, mesmo sofrendo ininterruptos ataques. Dificilmente nos esquecemos, após um primeiro contato, que Dante, Maquiavel ou Michelangelo eram italianos; porém, raramente, por exemplo, relacionamos os dramas de Shakespeare com a sua Londres elisabetana.

A morte de Umberto Eco não foi, para os italianos, apenas a despedida de um compatriota reconhecido internacionalmente, mas também a perda simbólica de um dos liames de identidade nacional. Já para todos nós, sua partida significou a morte do último dos renascentistas, talvez o fim de uma cultura educacional na qual certo ideal de erudição e diálogo entre as disciplinas humanas reconhece sua derrota ante a apologia da especialização e o simulacro do homem multimídia. Aqui, certamente o leitor mais atento indaga-se: como um notório medievalista pode ser denominado de renascentista?

TEXTO-MEIO

Denominá-lo de renascentista, ainda que ele fosse um grande medievalista, não é anacronismo ou ironia. Podemos caracterizar Umberto Eco como o último dos renascentistas justamente em função do ideal de erudição crítica que animou toda sua produção intelectual: das obras de estética filosófica e semiótica aos seus romances e crônicas. O ideal de sujeito erudito, capaz de criar e se expressar nas mais diferentes disciplinas e saberes humanísticos era o próprio fundamento da cultura renascentista.

O literato deveria ser tão capaz de filosofar, quanto o filósofo deveria ser capaz de criar poemas e construir narrativas ficcionais; o historiador deveria ser tão desenvolto em criar a beleza pictórica, quanto o pintor deveria ser em compreender o passado e narrar o presente. Ademais, cumpria nunca perder de vista a relação entre o saber e suas determinações históricas. Jamais contentar-se com a mediocridade: esta era a norma para se criar o novo. O exemplo mais popular e lendário desse modelo é Leonardo Da Vinci – o homem universal. Porém ele não era a exceção genial, mas a regra comum de um modelo de orientação dos saberes. Galileu foi capaz de apresentar suas descobertas astronômicas através de um diálogo ficcional. Maquiavel, sempre mais difamado que compreendido, escreveu uma história de Florença e três peças teatrais; Lorenzo, il magnifico, ao mesmo tempo que exercia o poder dos médicis sobre os florentinos, foi poeta admirado.

Não se tratava de mero ecletismo, mas de reconhecer o vínculo comum que une todos os saberes dos círculos humanísticos. Vínculo este, que hoje, após a orientação das universidades para as especializações minimalistas, é enfraquecido cada vez mais. Bem antes que a interdisciplinaridade fosse apresentada como grande novidade, a regra era nunca contentar-se com uma só forma de saber. Já nos alertavam os renascentistas que todo saber em si mesmo, por mais que aspire à universalidade, é sempre uma visão fragmentada do mundo – portanto incapaz de falar sobre o todo, mas apenas sobre a parte em que se debruça. E aquele que conhece bem, mas apenas a parte, ao tentar compreender o funcionamento do todo, não fará mais que falseá-lo, e, assim, ainda que conhecendo estará preso ao erro. O bom saber é aquele capaz de ir sempre além de si, jamais fazendo uma apologia cínica de suas próprias parcialidades. Qualquer distância quilométrica entre este ideal formatado na Renascença e a nossa atualidade, que é presa fácil de um uso tecnicista do saber, não é mera coincidência. Por isso, a importância de Eco; Sua produção ousou ao não submeter-se às especializações minimalistas que nos acostumam à parcialidade e mediocridade; ao ficcionar, mas sem deixar de compreender o presente histórico; ao demonstrar que erudir-se não é o exercício fútil de colecionar informações díspares e exóticas; ao testemunhar que as humanidades não são saberes menores e inúteis, mas que sem o seu fortalecimento estamos fadados a nunca compreendemos as contradições de nosso tempo.

Umberto Eco reconhecia o vínculo das humanidades, e se inseria na tradição humanista renascentista que perdurou na vida cultural italiana: passando por Leopardi e chegando a Pasolini. Vinculando-se, portanto, àqueles que foram capazes de estender sua vontade de saber para além de uma só forma de conhecimento e de criação. Eco não foi apenas o excelente ficcionista de O pêndulo de Foucault e a Ilha do Dia Anterior. Também era um teórico da literatura e da linguagem; não apenas refletiu filosoficamente sobre a estética medieval, como também teorizou sobre o “fascismo eterno” e as anomalias e vulgarizações criadas pelo poder midiático. Seu talento como escritor ficcional não era menor que sua capacidade de pensar criticamente a realidade — ou melhor, conforme uma de suas expressões, de viajar na irrealidade cotidiana. O quanto teríamos perdido se Eco houvesse se contentado em ser apenas um especialista em estética e filosofia medieval, lugar de sua primeira formação acadêmica?

Há um ano se foi o último dos renascentistas, e não sabemos se, em breve, veremos surgir um outro como ele. Não em virtude da uma genialidade, que embora singular, supõe-se inalcançável, mas porque o âmbito dos saberes humanísticos é cada vez mais ferido de morte: a grande mídia faz crer que informar-se é o mesmo que conhecer e a cegueira neoliberal nos guia para um mundo no qual as ciências humanas seriam apenas diletantismos de alguns. Assim, talvez o próximo continuador da trilha feita por tantos outros antes de Eco, e continuada por ele, tenha sido tirado arbitrariamente do caminho por ações como a reforma-desmache do ensino médio que vemos hoje no Brasil: um genocídio educacional que fere as disciplinas humanas e mata os talentos antes que eles possam nascer.

O bravo cinema que antecede o golpe

Dezembro 31, 2016

Em 2016, filmes como “Aquarius” e “Que horas ela volta” expressaram esperança num novo país. Neles repousa inspiração para resistir a quem nos exige humildade obrigatória.

Por Juliana Magalhães

Em um ano especialmente conturbado para a história recente do Brasil, ainda há muitas dificuldades em explicar os acontecimentos presentes sob uma limpidez inquestionável e ainda mais difícil interpretar tais explicações complexas sem um aglomerado de dúvidas que esvoaçam sobre a cabeça. Nos momentos iniciais e angustiantes do pós-golpe, vê-se o extermínio dos direitos sociais conquistados até aqui cada vez mais próximos. Há muito o que refletir sobre a miséria dos capítulos que se aproximam do tangível e que irá ruir as estruturas – ainda imaturas – de ascensão social das regiões mais pobres do país. E junto com a ruína dessa estrutura, vai-se também um bem imaterial construído com os programas sociais que impulsionaram o direito à dignidade: a autoestima – ainda fragilizada – dos brasileiros mais pobres.

Em meio às cinzas do céu de Brasília que expande para todos os céus do país e uma óbvia crise de humanidade, filmes grandiosos para o cinema brasileiro que imprimem traços do nosso tempo surgem no ano de 2015 e 2016: por exemplo Que horas ela volta, de Anna Muylaert e Aquarius, de Kléber Mendonça Filho. É o cinema do natural absurdo: filmes que nos apresentam forças que se colidem e nos fazem refletir, sobretudo, sobre o valor das pessoas e suas variáveis. Anna Muylaert nos apresenta esse desequilíbrio que sustenta e reflete os golpes diários: a ausência total da autoestima de uns e a presença excedida em outros. Esses “outros” que por possuírem essa característica tão acentuada, ainda consideram o direito à autoestima um artigo de luxo, que de forma alguma pode ser facilmente acessível para “qualquer um”.

Anna Muylaert recriou um espelho dramático do Brasil ao desafiar às leis físicas que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A cineasta apresenta esse confronto tácito como uma guerra fria entre esses dois corpos biologicamente e fisicamente iguais, mas de berços completamente diferentes. Um corpo é nascido no Nordeste do Brasil – que realiza esse movimento Nordeste – SP desde o século 19. Há nesse corpo uma humildade obrigatória e imposta nas entrelinhas por estar “invadindo” um território que não lhe pertence. E há outro corpo.  Esse corpo que é da elite da cidade de São Paulo – essa figura imponente e historicamente superior que “abre as suas portas” para os brasileiros que saem de seus estados em busca de uma vida melhor.

Vem deles essa quase exigência de que o invasor de terras alheias seja extremamente modesto e reconheça o seu lugar no mundo. Que para ser mais confortável, deve ser precisamente abaixo dele. No quarto dos fundos, longe da inteligência, das universidades, das obras de arte, do sorvete mais caro e da autoestima.  Ao “invasor” de bom senso, cabe o exercício diário de se olhar no espelho e reconhecer a pequenez de sua existência diante da grandeza do patrão.  Cabe esse respeito genuíno às leis da supremacia.

O incômodo é gerado quando uma nordestina se comporta como gente “normal” e subverte a ordem do cada lugar na sua coisa. Essa nordestina tem um problema irritante e estranho: é segura demais de si. Ela acha que tem valor (mas quem ela pensa que é para achar que tem?). Ela vai tentar entrar numa universidade concorrida. Ela é inteligente. Ela gosta de arte.

Como ela ousa ser tão suficientemente boa?

O cinema que antecedeu o golpe tem algo importante a nos dizer sobre os últimos anos: esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos “subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos anos está começando a ocupar lugares jamais imaginados – nem por eles, e nem pelos “outros”. Para esses “outros”, é inimaginável uma situação em que um “suburbano” tenha o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução, inteligência ou autoestima que ele. É preciso possuir aquele ar acuado – sem nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade histórica. Após anos e anos de conquistas que fizeram muitos brasileiros acreditarem que podem ser gente e sonhar sonhos de gente – assim como a nordestina descrita acima –  chegamos a um ponto trágico da história: o pós Michel Temer que irá congelar os gastos sociais e destruir aos poucos essa ideia tão recente de que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente. O pós golpe é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não poderá mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos de gente.

Fonte: Outras Palavras

O bravo cinema que antecede o golpe

Dezembro 28, 2016

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Em 2016, filmes como “Aquarius” e “Que horas ela volta” expressaram esperança num novo país. Neles repousa inspiração para resistir a quem nos exige humildade obrigatória

Por Juliana Magalhães

Em um ano especialmente conturbado para a história recente do Brasil, ainda há muitas dificuldades em explicar os acontecimentos presentes sob uma limpidez inquestionável e ainda mais difícil interpretar tais explicações complexas sem um aglomerado de dúvidas que esvoaçam sobre a cabeça. Nos momentos iniciais e angustiantes do pós-golpe, vê-se o extermínio dos direitos sociais conquistados até aqui cada vez mais próximos. Há muito o que refletir sobre a miséria dos capítulos que se aproximam do tangível e que irá ruir as estruturas – ainda imaturas – de ascensão social das regiões mais pobres do país. E junto com a ruína dessa estrutura, vai-se também um bem imaterial construído com os programas sociais que impulsionaram o direito à dignidade: a autoestima – ainda fragilizada – dos brasileiros mais pobres.

Em meio às cinzas do céu de Brasília que expande para todos os céus do país e uma óbvia crise de humanidade, filmes grandiosos para o cinema brasileiro que imprimem traços do nosso tempo surgem no ano de 2015 e 2016: por exemplo Que horas ela volta, de Anna Muylaert e Aquarius, de Kléber Mendonça Filho. É o cinema do natural absurdo: filmes que nos apresentam forças que se colidem e nos fazem refletir, sobretudo, sobre o valor das pessoas e suas variáveis. Anna Muylaert nos apresenta esse desequilíbrio que sustenta e reflete os golpes diários: a ausência total da autoestima de uns e a presença excedida em outros. Esses “outros” que por possuírem essa característica tão acentuada, ainda consideram o direito à autoestima um artigo de luxo, que de forma alguma pode ser facilmente acessível para “qualquer um”.

Anna Muylaert recriou um espelho dramático do Brasil ao desafiar às leis físicas que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A cineasta apresenta esse confronto tácito como uma guerra fria entre esses dois corpos biologicamente e fisicamente iguais, mas de berços completamente diferentes. Um corpo é nascido no Nordeste do Brasil – que realiza esse movimento Nordeste – SP desde o século XIX. Há nesse corpo uma humildade obrigatória e imposta nas entrelinhas por estar “invadindo” um território que não lhe pertence. E há outro corpo.  Esse corpo que é da elite da cidade de São Paulo – essa figura imponente e historicamente superior que “abre as suas portas” para os brasileiros que saem de seus estados em busca de uma vida melhor. Vem deles essa quase exigência de que o invasor de terras alheias seja extremamente modesto e reconheça o seu lugar no mundo. Que para ser mais confortável, deve ser precisamente abaixo dele. No quarto dos fundos, longe da inteligência, das universidades, das obras de arte, do sorvete mais caro e da autoestima.  Ao “invasor” de bom senso, cabe o exercício diário de se olhar no espelho e reconhecer a pequenez de sua existência diante da grandeza do patrão.  Cabe esse respeito genuíno às leis da supremacia.

O incômodo é gerado quando uma nordestina se comporta como gente “normal” e subverte a ordem do cada lugar na sua coisa. Essa nordestina tem um problema irritante e estranho: é segura demais de si. Ela acha que tem valor (mas quem ela pensa que é para achar que tem?). Ela vai tentar entrar numa universidade concorrida. Ela é inteligente. Ela gosta de arte.

Como ela ousa ser tão suficientemente boa?

O cinema que antecedeu o golpe tem algo importante a nos dizer sobre os últimos anos: esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos “subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos anos está começando a ocupar lugares jamais imaginados – nem por eles, e nem pelos “outros”. Para esses “outros”, é inimaginável uma situação em que um “suburbano” tenha o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução, inteligência ou autoestima que ele. É preciso possuir aquele ar acuado – sem nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade histórica. Após anos e anos de conquistas que fizeram muitos brasileiros acreditarem que podem ser gente e sonhar sonhos de gente – assim como a nordestina descrita acima –  chegamos a um ponto trágico da história: o pós Michel Temer que irá congelar os gastos sociais e destruir aos poucos essa ideia tão recente de que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente. O pós golpe é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não poderá mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos de gente.

“Na morte de Fidel” – um poema

Novembro 30, 2016

 

“É urgente um verso vermelho | que ponha de novo em movimento os comboios da imaginação | azeite puro em manivelas de razão quente”

Por Boaventura de Sousa Santos*, no blog Outras Palavras

É urgente um verso vermelho
que suspenda a animação deste desastre
pensado para durar depois do inverno

É urgente um verso vermelho
com todas as cores do arco iris
e o vento natural do universo

É urgente um verso vermelho
que ponha de novo em movimento os comboios da imaginação
azeite puro em manivelas de razão quente
o peso da história de novo levíssimo
a rodar sobre perguntas livres e ruínas vivas
a paisagem mudar primeiro lentamente
enquanto vão entrando vozes ainda submersas
e corpos mal refeitos da desfiguração da guerra e do comércio
das crateras e promoções

É urgente um verso vermelho
que desate os nós da memória e do medo
e resgate os rios da rebeldia
a palavra cristalina inabalável
inconfundível com as mordaças sonoras
à venda nos supermercados da ordem

É urgente um verso vermelho
para anunciar barco polifónico da dignidade
pronto a navegar
os rios libertos das barragens calcinadas
dos sistemas de irrigação industrial da alma

É urgente um verso vermelho
uma luz manual portátil que vá connosco
sem esperar a que virá no fundo do túnel se vier
porque a cegueira da viagem é sempre mais perigosa
que a da chegada
talvez só entrega
talvez só paragem

É urgente um verso vermelho
que trace um território inacessível
aos vendedores de mobílias espirituais
e turismo de acomodação

É urgente um verso vermelho
vinho de bom ano para acompanhar
sonhos sãos e saborosos
preparados em brasas de raiva e a brisa da alegria

É urgente um verso vermelho
sem solenidades nem códigos especiais
para devolver as cores ao mundo
e as deixar combinar com a criatividade própria dos vendavais

*Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa – todos da Universidade de Coimbra.

Teatro Oficina prepara rito-orgia contra o golpe

Outubro 19, 2016

coro_bacantes-2016_foto-jennifer-glass-1POR REDAÇÃO

Companhia de Zé Celso reapresenta e ressignifica “Bacantes”. Escrita por Eurípedes há 2,5 mil anos, peça propõe estraçalhar e devorar poder absoluto e impostor

Pelo Núcleo de Comunicação do Oficina


Bacantes, de Eurípedes, Zé Celso e Teat(r)o Oficina
Em São Paulo
+
De 21 a 23 de Outubro no Sesc Pompeia
+ De 28 de Outubro a 23 de Dezembro no Oficina
Sábados e domingos, às 18h (duração: 5h40)
Participantes de Outros Quinhentos pagam R$ 20 (preço normal: R$ 60)

Bacantes põe em cena
o poder da presença
diante da presença do poder.

Como a ascensão da direita e riscos de fascismo em tantas partes do mundo, As Bacantes, de Eurípedes — peça que o Teatro Oficina estreia nesta sexta-feira, em São Paulo, ganha nova potência política. O rito vive a chegada de Dionyzio (Marcelo Drummond), filho de Zeus (Sergio Siviero) e da mortal Semelle (Camila Mota), em sua cidade natal, Tebas, que não o reconhece como Deus. Trava-se o embate entre o mortal Penteu (Fred Steffen), filho de Agave (Joana Medeiros), que, através de um golpe de estado, tomou o poder do avô, o governador Kadmos (Ricardo Bittencourt e Sergio Siviero) e tenta proibir a realização do Teatro dos Ritos Báquicos oficiados por Dionyzio e o Coro de Sátiros e Bacantes nos morros da cidade.

Penteu é a personagem mais contemporânea da peça. Ele está presente na cabeça dominante do golpe no Brasil, herança de nosso legado racista, patriarcal, escravocrata e sexista, que tem na propriedade privada a legitimação de genocídios; é a possibilidade concreta de Donald Trump tornar-se presidente dos Estados Unidos; é o discurso de grupos de ódio que não conseguem contracenar com as diferenças; é a cara nova, do privatizante e “apolítico” projeto neoliberal.

 

No terceiro ato, o coro de Bacantes e Sátiros estraçalha e devora Penteu, num trágico banquete antropofágico. Bacantes e Sátiros presentificam a multidão – as lutas sociais, o movimento das mulheres que reexiste frente ao machismo. São conduzidos por sua mãe. É um rito de adoração da adversidade, que abomina práticas de neutralização ou extinção de outras culturas, pensamentos, estéticas e visões de mundo.

Nesse movimento, o coro se revela mais contemporâneo que Penteu, pois vai em direção ao primitivo, num retorno ao pensamento em estado selvagem com percepção da cosmopolítica indígena. Esta nos mostra, hoje, como totemizar a predação e o trauma social do capitalismo e do antropocentrismo que atravessam continentes e séculos carregando a mitologia do Progresso a qualquer custo.

Com músicas compostas por Zé Celso e seu amadorismo de macaca de auditório da Rádio Nacional, incorporando o Teatro de Revista,Bacantes vai muito além do musical norte-americano. Além disso, depois de 20 anos da estreia, a evolução musical do Coro do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, desde as montagens de Os Sertões até as imersões nas obras de Villa Lobos e Paul Hindemith, preparou a companhia para a atuação nesta ópera eletrocandomblaica com a qualidade que lhe é devida. A música é executada ao vivo pelos coros & banda.

A peça e a cosmogonia de uma encenação: da Grécia Antiga ao Teatro Oficina

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405 a.C.

Bacantes, Bakxai, é a última tragédia escrita por Eurípedes, o terceiro grande dramaturgo grego, que dedicou a maior parte de suas peças a um conteúdo social, onde era frequente a ausência de mitos. Na velhice, é exilado na Macedônia em uma casa situada ao lado de um terreiro de velhas bacantes, onde escuta celebrações dos ritos da origem do teatro, preservados por elas. Eurípedes documenta e reconstitui esses ritos, bem mais remotos que ele, em 25 cantos e cinco episódios.

1983 – 1986

O Teatro Oficina prepara a primeira versão do texto, finalizada em 1987. Nos anos 80, a companhia realiza diversos trabalhos de coro, composição de músicas e constrói uma dramaturgia antropófaga. São co-autores dytirambistas dos tyasos dionizíacos Eurípedes, Zé Celso, Catherine Hirsch, Denise Assunção e Marcelo Drummond.

Segundo Fernando Peixoto, em texto sobre a tradução feita pela companhia,

José Celso é mais dionisíaco que Eurípedes. Seu texto, proposta para um espetáculo, estímulo para a encenação, partitura de palavras em busca de uma partitura musical com estrutura de ópera, avassalador e criativo vômito de frases poéticas que incorporam até mesmo como citação explícita elementos da vida nacional e popular do Brasil de hoje, não é nem uma acadêmica tradução e muito menos uma livre e desenfreada adaptação. As Bacantes que ele elabora como texto ou pré-texto para um projeto de espetáculo capaz de integrar o terreiro de nossas religiões afro com a múltipla presença de aparelhos de vídeo, necessitando música que mescle o atabaque com o sintetizador eletrônico, é fruto de uma insólita e mediúnica parceria: Eurípedes–José Celso. Direitos autorais a serem divididos 50% (…) E ambos devem parte de seus direitos às mais autênticas, espontâneas e transgressoras religiões-tradições de de seus povos: Eurípedes seria pobre sem os mitos da religião grega, assim como José Celso seria mais pobre sem os rituais das religiões

 

1993

O texto de 1987 é matriz e incorpora em sua estrutura poética peças que serão encenadas a partir da década de 90. E antes da montagem do espetáculo, a dramaturgia se materializou na construção do terceiro Teatro Oficina, de Lina Bo Bardi e Edson Elito, paradoxalmente inaugurado com Ham-Let, de Shakespeare, em 1993, e com projeto arquitetônico inspirado diretamente nas necessidades dos elementos da arquitetura cênica de Bacantes: terreira eletrônica, extratoporto, chão de cimento com tira de terra crua, céu aberto em teto móvel para comunicação com os urânidas, jardim túmulo de Semele, fogo, fonte de Dirce – cachoeira. Esse espaço, dramaturgicamente arquitetado, em 2015, foi eleito o melhor teatro do mundo, segundo o The Guardian.

A peça é a grande diretora da linha estética desenvolvida pela companhia: tragykomédyOrgyas, óperas de carnavalelektrocandomblaicas.

bacantes

Penteu estraçalhado pelas Bacantes (de um afresco em Pompeia)

1995

Bacantes teve sua primeira montagem encenada no Teatro de Arena de Ribeirão Preto. Uma multidão lotou o teatro ao ar livre em uma sessão realizada pelo Sesc no dia 11 de agosto, aniversário do Dionyzio Marcelo Drummond.

1996 – Público atuador

Estreou em 1996 no Teatro Oficina, já terreiro eletrônico de Lina Bo Bardi e Edson Elito, encenada como ópera de Carnaval para cantar o nascimento, morte e renascimento de Dionyzio, Deus do Teatro, do vinho e do carnaval.

O público, apaixonado pela pulsão teatral, na primeira temporada de Bacantes passou pelo rito de passagem à outra Re-iniciação: do Teatro Orgyástico, aberto para todas as democracias, vivo, como a Multidão nos Coros da Tragédia Grega ou nos antígos carnavais. Foi o embrião de um coro que nas décadas seguintes atuou no dia a dia dos espetáculos da companhia.

1997 – 2011

O texto phalado em brazyleiro, pra boca de todos, é encenado em diversos teatros de estádio – espaços cênicos construídos com estrutura semelhante ao Teatro Oficina, sempre em formato de pista, e Bacantesé apresentada para multidões em muitas cidades do Brasil e do Mundo: Araraquara, Brasília, Salvador, Recife, Belém, Manaus, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Liége e Lisboa.

 

Campo Grande e as crianças invisíveis

Junho 14, 2016

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POR :JOSÉ GERALDO COUTO

Filme de Sandra Kogut expõe desigualdade social brasileira com estética depojada porém perturbadora, na qual o mundo surge um lugar confuso e inóspito

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Crianças pobres só atraem nossa atenção, e com grande estardalhaço, quando estão envolvidas em tiroteios, assaltos, estupros ou assassinatos. No restante do tempo são invisíveis. É como se não existissem.

Campo Grande, de Sandra Kogut, rompe com essa indiferença passiva ao trazer para diante dos nossos olhos dois desses pequenos seres, os irmãos Ygor (Ygor Manoel), de uns oito anos, e Rayane (Rayane do Amaral), de uns seis. Eles aparecem de surpresa no apartamento de Regina (Carla Ribs), uma mulher de classe média e meia-idade, que não sabe quem são e nem o que fazer com eles.

Não cabe reproduzir aqui a saga de Regina em busca da família dos dois irmãos ou, na falta dela, de um abrigo adequado para eles. O que importa é que, o tempo todo, essas duas criaturas ariscas e lacônicas apresentam-se à personagem (e por extensão a nós, espectadores) como um enigma a ser decifrado. Sua irrupção no apartamento de Regina não apenas desarranja sua vida como também revela a distância entre dois mundos, o abismo vertiginoso entre Copacabana e Campo Grande, bairro da zona oeste carioca que dá título ao filme e de onde os irmãos dizem ter saído.

Na aflição de Regina há um movimento pendular entre o desejo de livrar-se logo do problema e a necessidade de compreender aquelas crianças, de protegê-las de algum modo das durezas do mundo. Entram em jogo também suas próprias carências afetivas de mulher recém-separada e com um relacionamento difícil com a filha (Julia Bernat).

Mundo fragmentário

Resumindo assim, pode-se dar a impressão de um melodrama social corriqueiro, mas o filme não é nada disso. Sua força e sua originalidade estão no seu modo de construção, que preserva e exacerba o caráter fragmentário, truncado, incompleto do espaço físico, bem como da identidade dos personagens e das relações entre eles.

A paisagem urbana que o filme apresenta é de um grande canteiro de obras, com tapumes e guindastes obstruindo parte do quadro, sob o som de motores, serras e bate-estacas. A câmera é colocada no mais das vezes ao nível do olhar das crianças, o que torna tudo mais ameaçador e opressivo. O mundo é um lugar confuso e inóspito, sobretudo para esses pequenos personagens a quem todos olham com desconfiança ou indiferença, quando olham.

A relação tensa e instável entre a adulta Regina e o menino Ygor faz lembrar em alguns momentos Gloria (1980), de John Cassavetes, e sua mal disfarçada versão brasileira, Verônica (2008), de Mauricio Farias. Só que de Campo Grande o crime está ausente, bem como as armas e a violência explícita.

No filme de Sandra Kogut não há maniqueísmo, nem discurso sociológico, nem ênfase declaratória, nem resquício de pieguice. O olhar da diretora é ao mesmo tempo delicado e franco. Equilibra admiravelmente o registro documental, vívido e despojado (graças em grande parte à habilidade do diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo), com a segurança narrativa que faz tudo aos poucos se esclarecer, mas de modo indireto, solicitando a participação ativa do espectador.

As coisas parecem se passar naturalmente diante de uma câmera invisível – não no sentido da invisibilidade “clássica”, em que a decupagem cria uma continuidade macia, sem tropeços, mas sim no de uma captação espontânea e provisória, que colhe os acontecimentos de modo parcial, quando já estão em curso (in media res, para dizer de um modo pernóstico). Não há descuido aqui: os enquadramentos são sempre os mais expressivos e ricos de informação. Mas há uma porosidade que permite que a cidade respire e pulse como os próprios personagens.

Atores mirins

Uma última palavra sobre o elenco. Se Sandra Kogut já demonstrara, em Mutum (2007), uma grande competência para dirigir crianças, aqui esse talento se mostra prodigioso: raras vezes se viu na tela um desempenho tão crível e pungente como o de Ygor e Rayane. Carla Ribas, que até agora teve poucas mas marcantes aparições no cinema (O outro lado da rua, A casa de Alice, O abismo prateado) oferece aqui sua mais tocante e corajosa atuação.

Por fim, cabe lembrar que o filme não estava programado para nenhuma das dez salas de cinema existentes no bairro de Campo Grande, quase todas ocupadas com blockbusters americanos, mas um movimento de moradores conseguiu que fosse exibido num shopping local. Agora outros bairros periféricos do Rio, sobretudo da zona norte, mobilizam-se para ver Campo Grande. Essa pressão para a ampliação do circuito de certa forma é um desdobramento do projeto político, ético e estético do filme, de abertura, inclusão, conhecimento e troca.

Cinema francês

O cinema francês realiza uma bem-vinda invasão das telas brasileiras. Até o próximo dia 22, a sétima edição do Festival Varilux exibe quinze filmes recentes e inéditos em cinquenta cidades do país. No Rio, uma das salas exibidoras é o Instituto Moreira Salles.

Entre os destaques estão Chocolate, de Roschdy Zem, em que Omar Sy (o astro de Intocáveise Samba) encarna o ex-escravo que se tornou o primeiro clown negro da França, no final do século 19; o drama de amor Meu rei, dirigido pela atriz Maïwenn, que deu a Emmanuelle Bercot o prêmio de atriz em Cannes; a animação Abril e o mundo extraordinário, de Christian Desmares e Franck Ekinci, ganhadora do festival de Annecy; e Um belo verão, de Catherine Corsini, história do romance entre duas jovens no início dos anos 1970.