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LANÇAMENTO DO LIVRO “BAGULHÃO”: A VOZ DOS PRESOS POLÍTICOS CONTRA OS TORTURADORES

Junho 17, 2014

Livro

A Comissão Estadual da Verdade de São Paulo lançou o livro, “Bagulhão”: A Voz dos Presos Políticos Contra os Torturadores. O livro tem como conteúdo depoimentos de presos políticos que foram torturados no período da ditadura civil-militar no Brasil entre os anos de 1964 e 1985.

O livro, além dos depoimentos, traz cartas dos presos e inicia com uma escrita no dia 23 de outubro de 1975 pelos presos políticos do Presídio Barro Branco, em São Paulo, e que foi enviada ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Caio Mário da Silva Pereira que indagado em uma entrevista ao jornal que ajudou a ditadura, Folha de São Paulo, se havia tortura no Brasil afirmou que não tinha conhecimento de denúncias concretas sobre tortura.

Como os olhos paranoicos da ditadura era quase que onipresente, os presos, para fazerem a carta chegar até o destinatário, resolveram camuflar a parte interna da parede de uma garrafa e a sua parte térmica. Nesse espaço, eles colocaram as páginas dos documentos. O que não comprometia o café. Como o café seria servido aos advogados dos presos, eles perceberam o lance genial e conseguiram pegar a carta e entrega-la ao presidente da OAB.

O episódio foi contado pelos ex-preso político, Reinaldo Morano Filho que era membro da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e que ficou preso dentre os anos de 1970 e 1975.

“Como sobreviventes, nos colocamos como testemunhas de assassinatos e perseguição política que se fazia naquele momento. Daí resultou nessa carta”, disse Reinaldo Filho.

“Nós, presos políticos abaixo-assinados, recolhidos no Presídio da Justiça Militar Federal, São Paulo, tomamos conhecimento das declarações emitidas por Vossa Senhoria lamentando não haver conseguido ‘especificações objetivas’ por parte de pessoas vítimas de prisão irregular e arbitrariedades policiais. (…) Embora cientes das muitas denúncias concretas já havidas – inúmeras delas inclusive divulgadas mais recentemente por jornais brasileiros – vimo-nos na obrigação, como vítimas, sobreviventes e testemunhas de gravíssimas violações dos direitos humanos no Brasil, de encaminhar a Vossa Senhoria um relato objetivo e pormenorizado de tudo que nos tem sido infligido, nos últimos seis anos, bem como daquilo que presenciamos ou acompanhamos pessoalmente dentro da história recente do país”, diz trecho da carta.

De acordo como Reinaldo nenhuma ação negou a veracidade do conteúdo da carta. Para o ex-ministro da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, do governo Lula, e membro atual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, a carta é uma prova cabal de houve tortura.

“Esta é mais uma evidência, muito importante para o relatório final, para que não pairem dúvidas de que houve excessos e de houve dúzias de torturadores sádicos e que o regime criou uma estrutura de violações e a apoiou. Este é um documento curto, fácil de ler e que precisa ser multiplicado para que todos o conheçam”, disse o ex-ministro.

 O livro também traz as fotografias dos torturados para que eles sejam identificados pela sociedade pelos crimes que cometeram. Alguns já morreram, mas outros ainda encontram-se livres e impunes, como do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra que comandou o Doi-Codi de São Paulo. Local onde o jornalista Wladimir Herzog foi assassinado sob tortura comandada pelo coronel Ustra, mas ele nega que havia tortura.  E é dele a primeira fotografia no livro. 

Carta de Glauber Rocha para Alfredo Guevara

Outubro 16, 2013

Carta de Glauber Rocha para Alfredo Guevara, presidente do ICAIC em Cuba.

Santiago do Chile, maio de 1971

Querido Alfredo,

Estou doente no quarto 736 do Hotel Carrera-Sheraton, centro do contrabando de dólares e de agentes da CIA. Os médicos me examinaram e meu estado físico é bom. Mas tenho congestões musculares, frios na espinha, braços, pernas, e momentos de alucinação.
Isto sempre acontece quando vou fazer ou termino um filme. Quando estava mixando Terra em Transe fiquei paralisado da perna esquerda. É isto mesmo, meu caro Alfredo, sou um sujeito hipersensível. Miguel Torres me deu três exemplares de Cine Cubano (66 a 68). Li com muita atenção vários artigos: a revista está muito boa. É uma revista franca, honesta, inteligente, revolucionária e popular. Um médico brasileiro passou toda a tarde lendo Cine Cubano e discutimos sobre a qualidade revolucionária do tema. Eu considero o cinema cubano a vanguarda do cinema socialista do mundo. Querido Alfredo: quero que você publique esta carta em português porque as traduções me apavoram. Na entrevista que te  andei pelo Miguel Torres dei um quadro geral do fascismo brasileiro e sua repercussão sobre o cinema. Falei francamente com Miguel o que sempre tinha evitado falar, mas falei de uma forma geral. Quero que aquela entrevista seja publicada mas esta carta pretende detalhar aspectos complicados do assunto “cinema novo” no Brasil. O que me alertou para isto foi o artigo de Pietro Domenico. Este artigo faz parte de uma longa série de provocações indiretas que o “cinema novo” sofreu das esquerdas brasileiras e latinas nos últimos anos sem que nenhum de nós nos (eu, Hirszman, Andrade, Diegues, Guerra, Nelson etc.) respondêssemos.
Os ataques da esquerda brasileira ao “cinema novo” começaram em 1962/63, na época dos Centros de Cultura Popular, ligados à União Nacional dos Estudantes, quando nós nos recusamos a participar da visão cultural paternalista em moda e preferimos fazer um cinema político que não tivesse a ingenuidade demagógica de se justificar como principal “instrumento revolucionário”. Desta época são as minhas polêmicas com Carlos Estevão, então teórico cultural do CPC que, num artigo tropical-stalinista, nos ameaçava de fuzilamento porque combatíamos a chanchada, gênero preferido pelo povo… É ridículo mas verdadeiro. Nessa época eu te escrevi algumas cartas nas quais fazia minhas críticas ao janguismo e, de certa forma, previa o golpe militar.
No auge daquela euforia esquerdizante, a censura janguista proibiu Barravento (um ano) por “subversão” e não houve nem protesto porque poderia comprometer a política revolucionária de Goulart. Barravento foi também proibido pelo Ministério de Relações Exteriores, 1962, para ir ao Festival de Karlov Vary, e todos os diplomatas “progressistas” lamentaram o fato de eu ter feito um filme “sobre negros, um tema que criava uma má imagem do Brasil”. Barravento obteve um prêmio em Karlov Vary mas mesmo assim a imprensa liquidou o filme no Brasil. Vidas Secas, Os Fuzis, Ganga Zumba e Deus e o Diabo na Terra do Sol foram realizados sob sabotagem cultural do janguismo. As esquerdas “revolucionárias” do momento defendiam a chanchada, o esclerosado neo-realismo, o populismo soviet-socialista e outras alienações provocadas pela colonização cultural. O CPC queria nos obrigar a discutir nossos roteiros com um grupo de críticos, escritores, atores e jornalistas que nem entendiam de cinema e eram péssimos profissionais em suas atividades. Apenas Rui Guerra cedeu a essa pressão e submeteu o roteiro de Os Fuzis a uma discussão que não serviu para nada. O primeiro destes filmes a ser exibido foi Ganga Zumba. Na sessão especial vi a direita e a esquerda se retirarem indignadas. Os direitistas diziam que Diegues deveria ser preso e que Ganga Zumba deveria ser queimado por ser um filme subversivo sobre negros.
Os esquerdistas (falo sempre dos “líderes” intelectuais, dos censores ideológicos e não do público) acusavam Diegues de irresponsável, de artista, de fascista. Vi estas cenas e participei das discussões: desde então estava claro que o movimento do “cinema novo” seria uma frente de cultura revolucionária isolada no Brasil pela direita e pela esquerda e que iria sobreviver apenas devido ao apoio político do cinema cubano e de algumas esquerdas européias.
O golpe de 1964, mês de abril, encontro prontos para serem exibidos Vidas Secas, Os Fuzis e Deus e o Diabo. Em março, o Ministério de Relações Exteriores janguista enviou, com “reservas”, Deus e o Diabo e Vidas Secas a Cannes. Os filmes já estavam na França quando estalou o golpe. Oficiais apreenderam as cópias e ameaçaram queimá-las. Os diplomatas encarregados da indicação para Cannes foram intimados. Na mesma época os filmes passaram em Cannes: grande sucesso para Vidas Secas e grande polêmica para Deus e o Diabo. Vidas Secas tinha sido liberado pela censura janguista. Deus e o Diabo continuou proibido, nas seguintes circunstâncias: liberado para Rio de Janeiro (censura de Lacerda, então Governador, descentralizada) e proibido por Brasília. Paulo Emílio Salles Gomes promoveu uma sessão especial na Universidade de Brasília. Vieram dois jeeps militares e seqüestraram a cópia. Conseguimos permissão para esta exibição. No dia seguinte os censores, provavelmente impressionados pelo sucesso, liberaram o filme sem cortes. Os Fuzis, meses depois, foi premiado em Berlim. Uma comissão de militares opinou que o filme deveria ser liberado porque mostrava os militares como machos (?). Os Fuzis foi atacadíssimo pela direita e pela esquerda. Embora eu tenha escrito um artigo (O Jornal, 1964) defendendo o filme, fui também envolvido pela onda anti-Guerra. A tese era absurda: setores irresponsáveis e provincianos criaram uma falsa concorrência entre Deus e o Diabo e Os Fuzis e por isto tanto eu como Guerra fomos levados a contra-ataques individuais com a finalidade de defender a própria obra.

Mais tarde compreendemos que a unidade do “cinema novo”estava acima de disputas pessoais e que, “sobretudo”, ninguém que não estivesse no front da luta poderia opinar sobre esta luta. O sucesso internacional de Ganga Zumba, Vidas Secas, Os Fuzis e Deus e o Diabo era uma contradição no momento em que a ditadura de Castelo Branco começava a destruir o Brasil. Uma contradição? Estes filmes não eram uma resposta revolucionária? Não eram os primeiros filmes políticos do Terceiro Mundo, ao lado dos filmes cubanos? O sucesso mundial nascia desta novidade. O Brasil estava sendo conhecido por estes quatro filmes e logo por Maioria Absoluta, o documentário-dinamite de Hirszman sobre os camponeses de Pernambuco. E a ditadura estava sendo contestada por estes filmes.
E toda uma civilização oprimida estava sendo discutida e examinada por estes filmes em vários níveis de conhecimento sócio-político-antropológico. O “cinema novo” não havia escolhido o caminho da demagogia política. Buscava a verdade da cultura revolucionária. Nessa época eu escrevi a Estética da Violência. Era a ruptura com a cultura colonizadora.
Era uma afirmação muito radical para ser compreendida pelas classes intelectuais do Brasil, composta de literatos decadentes, de colonizados perdidos em baixa política literária.
O “cinema novo” passou a ser odiado pela maioria dos intelectuais da esquerda do Brasil. Estes levaram a vida negando o cinema. Não podiam admitir que um grupo de jovens cineastas pudesse desencadear uma revolução cultural no Terceiro Mundo, através da expressão mais moderna, o cinema. Vi em Sestri Levante, 1965, as delegações africanas saírem emocionadas da exibição de Ganga Zumba e abraçarem Diegues. Era muito diferente da reação dos brasileiros esquerdistas, que tinham vergonha de admitir uma cultura negra que fosse revolucionária e não folclórica. Uma cultura negra que “cortava cabeças de brancos opressores” e afirmava sua superioridade cultural em gritos, música e danças.
Vi em vários lugares do mundo a comoção das platéias diante de Maioria Absoluta.
E nós tivemos a sabedoria de não fazer nenhum manifesto teórico, nenhuma crítica moralista a outros cinemas, nenhuma “palavra de ordem” oportunista. Apenas apresentamos a Estética da Violência. Anos depois, em Viña del Mar (não me lembro o ano), fomos surpreendidos pela acusação de Solanas: para ele, e para um grupo de cineastas revolucionários apressados, La Hora de Los Hornos era o verdadeiro cinema revolucionário e nós, os brasileiros, que lutávamos contra uma ditadura implacável, éramos “comprometidos com o sistema”. La Hora de Los Hornos, alardeando sua novidade formal, incluía, ironicamente, um trecho de Maioria Absoluta de Hirszman. Nós não lançamos nenhum manifesto inventando o cinema verdade político, mesmo depois do êxito de Maioria Absoluta ou de Viramundo. Nós, os cineastas do “cinema novo”, queríamos a unidade do cinema latino-americano. Logo depois o “cinema do terceiro mundo”, inspirado na Tricontinental de Che.

Publiquei na Cahiers du Cinema, em 1967, o manifesto do cinema Tricontinental. Foi um manifesto não moralista, não demagógico, não autopromocional.Mas nesta época nós já sabíamos que os setores mais covardes e medíocres do cinema brasileiro se uniam a nossos “concorrentes” latino-americanos para nos combater.
É a triste característica da vida cultural latino-americana. Li o discurso do Fidel no Gramma, onde ele se refere ao caso Padilla. Tem razão. Os intelectuais são um produto de uma concepção aristocrática-burguesa, herdada pelo academicismo cultural do Partido Comunista. Este conceito gera privilégios, vedetes, concursos, prêmios, festivais e mentiras traiçoeiras como a de Solanas contra o “cinema novo” em Viña del Mar. Solanas me confessou depois em Roma que tinha sido vítima de uma intriga feita por franceses e brasileiros.
Acredito na honestidade de Solanas, gosto de La Hora de Los Hornos, mas devo esclarecer que ele, como um cineasta revolucionário, não tinha o direito de julgar o “cinema novo” baseado em informes de outros “brasileiros” ou “franceses”. Salto épocas, mas quero lembrar outros episódios. O Desafio, de Saraceni, foi o primeiro ato artístico brasileiro a atacar diretamente a ditadura, em 1965. Realizado em 12 dias, montado em 20 dias, proibido mais de quatro meses pela censura, foi massacrado pela esquerda brasileira.
Terra em Transe, realizado em condições semiclandestinas, com duas visitas de policiais na Mapa Filmes, em busca do roteiro, proibido pela censura, vetado pelo Ministério das Relações Exteriores para Cannes, enviado ilegalmente para o festival, com apoio europeu e cubano (você e Saul foram os primeiros latinos a verem o filme), foi violentamente atacado por todas as áreas de esquerda do Brasil. Promoveu-se, inclusive, uma discussão no Museu da Imagem e do Som, no Rio, onde fui acusado publicamente de fascista por um líder da esquerda radical porque o personagem Paulo Martins dizia que “tinha a fome do absoluto”. É triste lembrar estes episódios.
O artigo de Pietro Domenico, em Cine Cubano, nasce de informações falsas fornecidas pela Cinemateca do Rio e pela Escola de Comunicação de São Paulo.
Vamos aos fatos: os filmes da Escola de Comunicação de São Paulo são filmes péssimos (vocês já viram?) financiados pelo governo fascista. A única forma de justificar o fracasso individual e de encobrir a conciliação em que estão metidos é criticar o “cinema novo” inventando teses falsas e teorias vazias. Questão medíocre: o “cinema novo” é a história da revolução cultural em permanente êxito, de Vidas Secas (1963) a Macunaíma (1969). Por exemplo: o livro de Jean-Claude Bernardet, Brasil em Tempo de Cinema, é completamente falso. E foi apoiado pela esquerda justamente porque era falso e porque atacava o “cinema novo”, veladamente, com informações mentirosas e conclusões absurdas. Tentava reduzir a um fenômeno contestatório de classe média uma revolução cultural que tinha retirado o Brasil da inexistência cinematográfica. O próprio livro era conseqüência disso. O rancor dos cineastas de São Paulo (que várias vezes fracassaram e continuam fracassando) contra o “cinema novo” (um fenômeno de Rio e Bahia) levava um crítico inteligente como Bernardet a nos trair da forma mais amigável possível. E mais uma vez não respondemos.

Foi um erro? Meu caro Alfredo: desde que surgiu o “cinema novo” saímos do provincianismo cultural.
Não podíamos cair em discussões não políticas. Não podíamos atacar e denunciar companheiros de esquerda à ditadura da mesma forma que estes companheiros nos denunciavam e nos desmoralizavam diante da direita. Só tínhamos uma resposta: filmes. E nossos filmes, por todos estes anos, estiveram entre os melhores revolucionários do mundo. (…)
Os filmes dos jovens fracassaram. O êxito de 1969 continuou a ser do velho “cinema novo”: Antônio das Mortes, Macunaíma, Os Herdeiros. O Ato Institucional de 1968 nos deu a consciência de que aqueles eram nossos últimos filmes. Estávamos todos perseguidos, exilados, desorientados. A Cinemateca do Rio, a Escola de Comunicação de São Paulo, os jovens cineastas “vanguardistas”, a imprensa de direita e os jornalistas de esquerda ali instalados desencadearam a mais violenta campanha contra o “cinema novo”.
O Pasquim, um jornal onde trabalho, publicou uma entrevista de Sganzerla na qual o jovem cineasta classificava o “cinema novo” de um grupo de “direita” e dizia que Antônio das Mortes, Brasil Ano 2000 e Macunaíma eram os três piores filmes brasileiros.

Estas declarações foram publicadas com “destaque”. Os jornalistas incentivaram o ataque. Pura vingança cultural contra o “cinema novo”. Um ano antes, durante o Festival de Cinema do Rio, 1969, o “cinema novo” protestava publicamente. Era o primeiro ato contra o Governo depois do Ato Institucional de 13 de dezembro de 1968. O mesmo Sganzerla não só tinha inscrito seu filme O Bandido da Luz Vermelha no festival (o filme foi recusado) como se negou a protestar contra a prisão de Joaquim Pedro de Andrade durante o próprio festival. Neste dia apenas uns dez integrantes do “cinema novo” rondavam a sede do festival em busca de apoio das delegações internacionais para exigir a libertação de Joaquim Pedro, sob a fiscalização de mais de duzentos e cinqüenta policiais. Disse textualmente Sganzerla à imprensa: “Não me solidarizo. Pedro, além de comunista, é um péssimo cineasta”. Num país fascista como o Brasil, estas frases de efeito fazem sucesso para uma imprensa responsável. O Pasquim, um jornal de protesto, deu apoio a este tipo de ataque. (…) Ninguém se lembrou de observar que Macunaíma era um êxito de público, descolonizador.

Quando os estudantes de Sorbonne apresentavam uma tese demonstrando que Weekend, Prima della Rivoluzione e Terra em Transe tinham sido os filmes que mais influenciaram os estudantes no movimento de maio de 1968, a revista direitista Fatos e Fotos publicou a notícia em tom de denúncia política. Os poucos veículos de esquerda ainda existentes não só não noticiaram corretamente o fato como estavam publicando críticas virulentas contra Macunaíma, Antônio das Mortes, Os Herdeiros.
(…)
Por que esta conspiração que se unia ao Instituto Nacional de Cinema, à Censura, ao Serviço Nacional de Informações, ao Ministério de Relações Exteriores para exterminar o “cinema novo”? É uma explicação ao nível da mediocridade cultural dos países colonizados: o nível de liberação cultural do “cinema novo” e seu conseqüente êxito em filmes e não em manifestos e artigos protecionistas, sua independência política diante de formulações sentimentais e esquemáticas da situação brasileira, o colocaram numa inversão cômica, como bode expiatório de todas as deficiências da cultura brasileira.
Porque hoje, meu querido Alfredo, posso afirmar com serenidade que o “cinema novo”, embora destruído, é ainda a vanguarda cultural do Brasil, explicando-se cultural não como “culturalismo” mas como uma linguagem que expressou as linhas fundamentais de uma civilização colonizada. Um país subdesenvolvido e fascista não poderia suportar uma tal ambição lingüística.

(…)
Meu querido Alfredo: num momento em que abandono definitivamente o Brasil para iniciar um trabalho contra a ditadura brasileira, lhe envio esta carta onde somente a verdade é dita, sem que nenhum argumento seja truncado em função de minha defesa ou de qualquer outro companheiro. Não poderia o “cinema novo” se dissolver sem que pelo menos os fatos verdadeiros fossem noticiados. Não é uma defesa crítica.
É uma história sobre a insuficiência cultural de muitas facções das esquerdas latino- americanas.

(…)
Um trecho do discurso do Fidel sobre os problemas culturais me fez escrever este relatório: se nós, revolucionários, temos medo de dizer nossas idéias por que somos então revolucionários? (…) A vanguarda revolucionária é a descoberta permanente das novas qualidades do ser humano e sua relação com a sociedade. A História é uma projeção das idéias.

Marx projetou a luta de classes e hoje vivemos em função do sonho socialista libertador. Todo um povo pode ser criador, artista – e este seria o sentido total de uma revolução pela qual minha ação se arrisca até a morte. Mas não faço da morte o heroísmo autopunitivo.
A revolução, para mim, significa a vida, e a plenitude da existência é a liberação mental: esta, para os homens mais sensíveis, se expressa pela fantasia. A minha fantasia é o cinema.

Pode ser uma iluminação surrealista na Espanha, em Cadaqués, onde Buñuel filmou o início de L’Âge d’Or (falo de Cabezas Cortadas), ou pode ser este filme que realizo agora em Santiago (Estrela do Sol), onde tento levantar um quadro humano dos revolucionários brasileiros. Não estou preso nem à Panavision nem ao Videocassete. (…) As velhas interpretações econômicas, sociológicas e antropológicas pouco valem diante do desafio tecnológico e místico que o país nos impõe. Macunaíma, com o sentimento da verdade sem pudor, tenta resolver um pequeno capítulo deste misterioso questionário. Antônio das Mortes, por todos os Santos e Orixás, amém! – tenta responder outro capítulo, porque precisamos também dos Santos e Orixás para fazer nossa revolução, que há de ser sangrenta, messiânica, mística, apocalíptica e decisiva para a crise política do século XX.
A vitória do revolucionário brasileiro dependerá de sua ambição revolucionária. Teremos, para isto, de negar a razão colonizadora e superar o moralismo dogmático que amesquinha os heróis.

Com um abraço do Glauber Rocha