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DO “TORORÓ” DE ANITTA AO CHORO DE GUSTAVO LIMA: ENTENDA A “CPI DO SERTANEJA”

Maio 31, 2022
  1. CULTURA

TRETA NA CULTURA POP

Crítica de Zé Neto à cantora pop deu início a turbilhão nas redes sociais; Ministério Público investiga shows de Lima

Redação

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

 31 de Maio de 2022 –

Anitta, alvo de críticas de Zé Neto, e Gusttavo Lima: “CPI do Sertanejo” movimenta as redes sociais e causa cancelamento de shows – Reprodução/Instagram e Reprodução/Twitter

Um dos temas que dominaram o debate nas redes sociais nos últimos dias no Brasil, a “CPI do Sertanejo” não é, ao menos por enquanto, uma Comissão Parlamentar de Inquérito de fato. Entretanto, as investigações iniciadas por Ministérios Públicos estaduais para apurar possíveis irregularidades em contratações de artistas por parte de administrações abalam o mercado da música no país. E tudo começou com uma crítica a uma tatuagem íntima da cantora Anitta, feita pelo sertanejo Zé Neto, que faz dupla com Cristiano.

Era 12 de maio quando a dupla fazia um show em Sorriso (MT). Entre uma música e outra, Zé Neto disparou: “Não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no ‘toba’ pra mostrar se a gente tá bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta”. As imagens (e o áudio) viralizaram nas redes sociais, e abriram o debate: de um lado, os apoiadores do sertanejo. Do outro, os que foram defender a cantora.

Apesar da crítica à Lei Rouanet, um levantamento feito pelo UOL dois dias depois já mostrava que o show da própria dupla de Zé Neto custou R$ 400 mil aos cofres públicos. Com o dinheiro pago para outros shows no mesmo evento, o valor chegou a R$ 1 milhão, segundo o Portal da Transparência. 

Leia mais: Lei Rouanet: alvo de desinformação numa guerra anticultura

Uma semana mais tarde, em show em Dourados (MS) no dia 19 de maio, Zé Neto voltou ao tema. Após parte do público puxar um coro ofendendo Anitta – em repercussão do debate que já estava em alta nas redes sociais, ele interrompeu a plateia e, em tom irônico, insinuou que quem o critica não conhece a realidade do país.

“Vamos rezar por essas pessoas e que Deus abra a mente delas e que elas entendam (…) Que venha um dia, que um dia só na vida, calce uma botina amarela, entre num curral cheio de b*sta para separar o gado, tirar um leite, ‘passar peia’ num bezerro. E ver que a vaca não dá leite, você tem que ir lá tirar. O leite que você compra na caixinha não vem bonitinho da caixinha, alguém tirou”

Outro nome entrou na polêmica no dia 21: o cantor Gusttavo Lima, quando realizou um show em Brasília. Em um intervalo de sua apresentação, um locutor fez um discurso questionável com críticas ao que entende ser “o comunismo” – que, para ele, é o oposto de “democracia”. A fala do locutor inflamou ainda mais os ânimos polarizados nas redes, em especial entre os bolsonaristas que enxergam o fantasma do comunismo como um legítimo culpado para qualquer mazela, mesmo que não seja verdade. 

“Na vida é Deus, pátria, família e liberdade. Liberdade para pensar, liberdade para agir, liberdade para vencer, liberdade para conversar, liberdade para estar na internet, liberdade de expressão, liberdade de conquista. E a gente tem que conquistar essa p*rra. Porque o Brasil é nosso”, bradou o locutor.

Mas em nota enviada dias depois à Folha de S. Paulo, a assessoria de Gusttavo Lima disse que o cantor não influenciou no discurso. “Respeitamos a posição política de todos, independentemente de partido e não vamos mais comentar o assunto”, resumiu a nota.

Entretanto, o assunto voltaria a ser comentado, desta vez, pelo próprio cantor. Em live no Instagram na última segunda-feira (30), ele disse que as críticas estão fazendo com que ele esteja perto de “jogar a toalha”, sem deixar claro o que isso quer dizer.

Lima, que já criticou o que ele chama de “geração mimimi” quando foi questionado por incentivar aglomerações no auge da pandemia, chorou ao dizer que estava sendo muito criticado. Dono de um avião de R$ 250 milhões e de um barco que comprou por R$ 25 milhões do cantor Roberto Carlos, ele disse ser “um trabalhador normal” e que “não compactua com dinheiro público”. Porém, contraditoriamente, na mesma live, deixou claro que faz shows pagos com dinheiro público.

“Se eu custo ‘um’, não é a prefeitura que vai me pagar ‘meio’. Todos nós temos contas para pagar, seja para prefeitura ou para shows privados. Eu sou um cara que faço pouquíssimos shows de prefeitura e, quando a gente às vezes faz algum, a gente é massacrado como se fosse um bandido, como se fosse um ladrão que tivesse roubando dinheiro público”.

Zé Neto, que acendeu a faísca com a crítica à tatuagem íntima de Anitta, comentou a live de Lima. Solidário, disse que “quem tem que dar satisfação sou eu”. Disse ainda que está “atravessando uma fase ruim” e que a situação não tem “nada a ver” com Lima.

gusttavolima

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Foto do perfil de gusttavolimagusttavolimaVerificadoParem por favor…Editado · 16 h

hugoeguilhermeVerificadoEstamos com vc, meu amigo! 🫶🏼 A VERDADE sempre vem à tona, mais cedo ou mais tarde.7.499 curtidasResponder

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juniorgomesVerificadoIrmão pode dormir com sua consciência limpa. Seu trabalho e seu valor você trabalhou pra conquistar. Povo ta distorcendo uma coisa que não é problema seu!7.942 curtidasResponder

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juniormarquescantorVerificadoVocê é um ser humano incrível @gusttavolima que Deus abençoe mais ainda sua vida e te livre de toda essa inveja, força irmão. 🙏🏻🏛♥️5.130 curtidasResponder

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marquinhos_malaquiasVerificadoAmigo… vc é referência! Estão batendo pra dar mídia! Uns falam outros fazem! T admiro estamos juntos!3.644 curtidasResponder

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drviottoVerificadoDeus é contigo irmão!!!!!!!
Um cara incrível e abençoado!!!!!
Não existe inveja nem mentira q sobreponha a verdade! E vc está c a verdade!! Do lado de Deus
E quem te conhece sabe!!!
Isso tb vai passar meu amigo !!!!
Deus abençoe vc e sua família!!!! 🙌❤️🙏2.204 curtidasResponder

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renatosertanejeiroVerificadoO Brasil tá com vc! Fica em paz6.560 curtidasResponder

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thiagobravaVerificadoSempre com vc até o fim BB, quem te conhece sabe do que vc sempre fez pelos seus e por todos. Pra cima 🙌🙌❤️❤️6.727 curtidasResponder

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jujubacompositorVerificadoEstou com você irmão!!!!!2.220 curtidasResponder

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lucasrochaoficialVerificadoVocê é um ser humano incrível, o Brasil inteiro está contigo! Fica em paz meu irmão! Deus te abençoe e proteja de toda inveja e perseguições 🙏🏽♥️2.196 curtidasResponder

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fernandinVerificadoIrmão, dorme em paz! o cara lá de cima sabe do ser humano que você é! e isso ninguém tira! 🙏🏻❤️3.629 curtidasResponder

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brunoedennerVerificadoA gente sabe o seu tamanho gigantesco como artista e como ser humano. Estamos com você sempre ❤️5.713 curtidasResponder

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flaviobolsonaroVerificadoFique firme, meu irmão! Você é um cara do bem! Deus proverá! 🙏8.707 curtidasResponder

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ojonatasdiasVerificadoBom gente invejosa , nojenta é muito pouco informada 🛑😡 Amigo !!! Você disse tudo !! Quem conhece sabe , quem não conhece também sabe da sua índole e do seu caráter …. Só Deus em nossas vidas , isso é coisa do inimigo e como nós que somos anjos de Deus aqui na terrra , inimigo não vai ter chance . Fique firme e continue focado em seu trabalho o resto é resto , não se preocupe com mas nada !! Fica com Deus BB ❤️ Eu estou com você , o Brasil 🇧🇷está com você e o mundo 🌍 está com você irmão 👏🔥🙏2.816 curtidasResponder

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israelnovaesVerificadoManchetes semeadoras de dúvidas!
Lidas por “muitos”analfabetos funcionais, com o objetivo de indiretamente gerar difamação pelo leitor aos que nem irão ler. E ainda replicam “informações falsas” como verdade sem antes ser interpretar!

( corrigido ) 😉4.052 curtidasResponder

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israelnovaesVerificadoManchetes semeadoras de dúvidas!
Lidas por “muitos”analfabetos funcionais, com o objetivo de indiretamente gerar difamação pelo leitor aos que nem irão ler. E ainda replicam “informações falsas” como verdade sem antes ser interpretar!

( corrigido )2.185 curtidasResponder

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fefrancooficialVerificadoDeus abençoe irmão, vc é foda. 👊♥️2.163 curtidasResponder

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Mesmo que não tenha “nada a ver”, Gusttavo Lima já sentiu os efeitos das respostas às críticas de Zé Neto a Anitta. O Ministério do Público (MP) do Rio de Janeiro abriu investigação sobre um contrato milionário para um show do cantor na cidade de Magé. O MP de Roraima abriu investigação semelhante por contrato para show do cantor na cidade de São Luiz, que tem 8 mil habitantes, por R$ 800 mil. E a prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG) anunciou cancelamento de show do cantor, assim como de apresentação da dupla Bruno e Marrone.

Jornalistas e veículos que cobrem o dia a dia do mercado de música sertaneja disseram que Zé Neto está enfrentando uma grande crise, e que nos bastidores tem sido duramente criticado por colegas que estão sofrendo as consequências diretas das críticas. Enquanto isso, Anitta se pronunciou pela primeira vez sobre o caso no último domingo (29), em curta mensagem no Twitter: “E eu achando que tava só fazendo uma tatuagem no ‘tororó'”.

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Anitta

@Anitta

E eu achando que tava só fazendo uma tatuagem no tororó

10:26 PM · 28 de mai de 2022·Twitter for Android

Edição: Rodrigo Durão Coelho e Felipe Mendes

LUIZ MARQUES: QUEM TEME A ARTE E A CULTURA?

Maio 30, 2022

 ARTIGOS | CULTURA

A arte tem função catártica (purgação, alívio de tensão), para uns. Para outros, de conscientização política. Em comum, o questionamento da realidade

 30/05/2022

O Grito/Munch – Museum

 A subversão da liberdade

A ideia de “liberdade” é subvertida na ruminação bolsonariana. O fim almejado com a prestigitação é um regime de exceção, no país. O meio para alcançar a meta implica assumir uma subjetividade dúbia, entre a hipocrisia (quando oculta a intenção de enganar) e o cinismo (quando exibe a intenção de enganar), no trabalho diário de solapa das instituições.      

A liberdade atenta contra si mesma, no bolsonarismo. Proíbe as mostras de obras artísticas que problematizam os valores do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo), com métodos intimidadores – vandalização das peças, agressão aos artistas e ao público nas exposições. O obscurantismo não ousa colocar em questão a própria visão de mundo. Os protestos de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), depois de 2013, desmarcaram diversos eventos em nome da normoheterossexualidade e das hierarquias tradicionais de mando / obediência. Jogou-se simpatia no moinho da extrema-direita e cancelamento no ímpeto criativo.

A cinebiografia de Marighella, com direção de Wagner Moura e o talento de Seu Jorge no papel principal, lançada e premiada em Berlim em 2019, só desembarcou nos cinemas brasileiros em 2021, por pretextados “problemas burocráticos”. O guerrilheiro foi tido como Inimigo Público N° 1 da ditadura militar. O personagem foi transformado em Inimigo Público N°1 pela Secretaria de Cultura, do Inominável. E perseguido, agora, não pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), mas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). Daí a demora em estrear em solo pátrio. No ínterim, a direita procurou desqualificar o filme sob a alegação fake de que o cofundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN) era branco. Mentira, era negro, o que aumentou a sede de vingança das furibundas elites escravagistas, desafiadas pelo baiano.

Os valores democráticos encarnados pelo líder revolucionário interpelavam a imposição no território nacional de uma “tirania”, motivo da revolta dos grupos políticos que pegaram em armas para reaver a democracia. Deve-se a um dos fundadores do liberalismo, o principio do “direito à rebelião” dos governados contra os governantes que assumem o poder de Estado, sem dispor do consentimento explícito do povo, lê-se nos capítulos finais do Segundo Tratado do Governo Civil (1662), de John Locke. Marighella não precisava de Marx para legitimar a opção pela guerrilha, bastava-lhe evocar o ícone liberal. Injustificada era a covarde ditadura.

Em prol da dominação do capital, a reação verde-oliva combateu a coragem idealista. A intolerância atrasou em vinte e um anos o relógio da civilização. A contradição dos conservadores, ontem e hoje, reside em habitar uma sociedade em movimentação e achar que podem parar o ciclo com assertivas a-históricas diante das mudanças políticas, sociais e de costumes. “O projeto de Bolsonaro, para ser executado com ingredientes de sangue e morte, depende da utilização de mecanismos de controle e coerção sobre a sociedade”, diz Heloísa Starling, in: Linguagem da Destruição (Companhia das Letras, orgs. H. Starling, M. Lago e N. Bignotto). Sai da frente, gente.

O cinismo deu as caras na fala do vice Hamilton Mourão sobre as escaramuças pela volta do regime de caserna. O general fez uso do nonsense, ao aplicar o predicado da liberdade de expressão para acabar com a democracia. Fez de conta que a liberdade está descontextualizada do processo cumulativo de valores civilizatórios, quando era óbvio o apelo golpista contrário à Carta Magna. É o que se aprende na Escola Superior de Guerra (ESG)? Reinaldo Azevedo acerta: “os bolsonaristas creem que a liberdade de expressão confere o direito de cometer crimes”.

A ira dos pré-modernos

Os remanescentes da pré-modernidade não descansam. Em suas insônias, sempre aparece o receio dos avanços igualitaristas em face da dinâmica do progresso. Não surpreende que se indignassem perante o quadro de Gustave Courbet, no Museu d’Orsay, focado no ventre e no sexo da mulher. A Origem do Mundo é a criação plástica mais censurada em séculos. Prova da interseccionalidade existente entre o capitalismo e a imemoriável repressão do feminino.

Pintada em 1866, a obra veio a público em 1995. A censura impedia que fosse admirada até em sala privée. A tela pertenceu a Jacques Lacan. A família doou-a ao Estado francês, após a morte do psicanalista. Há imagens de uma artista que, de costas para a moldura, abre as pernas e expõe a genitália. Seguranças do Museu tentam cobrí-la, circunstantes a aplaudem.

A arte tem função catártica (purgação, alívio de tensão), para uns. Para outros, de conscientização política. Em comum, o questionamento da realidade. Para Martin Heidegger, o papel da arte é desocultar a verdade de um ente, revelar o seu ser e abrir uma perspectiva que desacomode o observador, e o situe na história. Não espantam os ataques à arte e à cultura.

O mais destacado representante do conservadorismo contemporaneamente, Roger Scruton, em Pensadores da Nova Esquerda (Realizações), refuta a concepção de Sartre que considera o livre agir dos indivíduos capaz de gerar a si mesmo e o mundo ao redor – lançando um no outro. A objeção descortina o núcleo anti-humanista da posição scrutoniana.

“Qualquer adoção de um sistema de valores, que seja representado de modo tão objetivamente justificado, constitui uma tentativa de transferir minha liberdade para o mundo dos objetos, de forma a perdê-la. O desejo por uma ordem objetiva (onde podemos escolher) é prova de má-fé e perda da liberdade, sem a qual nenhuma ordem moral seria concebível”, disparou com irritação o fellow da British Academy. Faltaria transcedentalismo ao humanismo.

A liberdade teria pressupostos que não se subsomem à racionalidade das escolhas na realidade. Afinal, qual o lugar de Deus na arquitetura das decisões existenciais imaginadas pelo pensador francês? Nenhum. A liberdade não reside na possibilidade do livre-arbítrio, mas no compromisso com o transcendental. A crítica é típica dos conservadores, que recorrem a instâncias divinas para explicar atos moralistas em temas como o aborto ou a eutanásia. O antídoto está na historicização para desperenizar suas convicções, com o recurso da razão dialética.

A pulsão pela destruição

“O discurso de Bolsonaro é direcionado àquele que tem poder, ainda que dentro de uma situação subalternizada. É o dono de uma birosca que tem poder sobre o garçon, o pastor de porta de garagem sobre seu fiel, o marido que deseja submeter sua esposa, o guarda da esquina que tem poder sobre os transeuntes, o motorista que tem poder sobre pedestres e ciclistas, o cafetão que tem poder sobre a prostituta, entre outros. Bolsonaro assobia para quem tem poder e a mensagem é clara: não tenha medo de exercê-lo”, debulha Miguel Lago (op. cit.). O sartreano se debruça sobre a a consciência para decidir. O bolsonariano exerce a vontade de potência.

O fechamento de mais de trezentos Pontos de Cultura e o veto à Lei Paulo Gustavo, que direcionava R$ 3,86 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC) aos estados e municípios, para fomento de atividades e produtos culturais, moveram-se pelo temor do estímulo no plano do pensar / sentir a um contrapoder frontal à pasteurização das percepções. Os minguados aportes à educação e à ciência em 2020, 2021 e 2022 foram os mais baixos desde os anos 2000. Neste ano, o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações (R$ 720 milhões) ficou 78% abaixo do registrado em 2010 (R$ 3,34 bilhões). Sem que o titular da pasta tugisse. No Ministério da Educação (MEC), os recursos à pesquisa diminuíram (87%) na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Dados do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “O Brasil não é para amadores”, comentava Tom Jobim.

A destrutividade que alia o neoconservadorismo ao neofascismo e ao neoliberalismo é devastadora. O caos é planejado. Tudo vai de mal a pior porque tudo vai bem, capiche?

O presidente em decurso é um saudosista do rumor de botas, orientado pela pulsão de destruição do modelo político e social que desenhou a Constituição de 1988, depois de uma década marcada pelas maiores mobilizações populares já vistas na trajetória da República Federativa. Sem o que o genial Sistema Único de Saúde (SUS) jamais teria vindo à tona. As políticas educacional e cultural são emblemáticas da lógica beligerante que guia o combate à intelligentsia.

Mas nada evoca mais o elã desconstrutivo do que o poder fatual, em revanche, de Bolsonaro sobre os oito mil militares na administração central, incluso generais. Todos devendo continência ao tenente desqualificado por indisciplina, e aposentado como capitão aos trinta e três anos de idade. Somente por subterrâneas injunções, não foi expulso das Forças Armadas.

“Os fardados repetem de forma protocolar o respeito e a consideração aos valores republicanos. No entanto, nos momentos de crise, suas falas revelam o autoritarismo e o espírito antirrepublicano que circundam seus corações e mentes”, anota Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital). Voltem aos quartéis; política é para civis. É hipocrisia querer contar votos nas eleições. Melhor contar árvores na Amazônia, antes que na cara de pau o Miliciano-em-Chefe entregue para o multibilionário Elon Muskas as riquezas florestais . Por ora, com as milícias de garimpeiros e madeireiros ilegais, de fazendeiros e agroindustriais invasores de terras indígenas e públicas.

 O bolsonarismo subverte o conceito de liberdade para mentir sobre la verità effettuale della cosa. A devastação da Amazônia, que aturde o planeta, é negada na Organização das Nações Unidas (ONU). “O fato de ser uma floresta úmida, não pega fogo”, disse o Pinóquio. Claro, espontaneamente, não pega, exceto se alguém provocar o incêndio. Passados quatro anos da posse, a fala do mandatário em março de 2019 nos Estados Unidos foi a única profecia, com efeito, realizada num mandato em que nada construiu: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”. A desconstrução da arte e da cultura é para que não propaguem práticas de emancipação da opressão.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

BOLSONARISMOCULTURALIBERDADE DE EXPRESSÃO

AS REVOLUCIONÁRIAS QUE QUERIAM MODA PARA TODOS

Maio 29, 2022

Na União Soviética, designers ocuparam fábrica têxtil para repensar o vestir. A partir do trabalho e da arte, viam-no como motim às convenções e possível forma de libertação. Tentaram caminhos para superar reino do luxo e torná-lo acessível

OUTRASMÍDIAS

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Por Jacobin Brasil

Maio/2022 –

Por Chris Randle, na Jacobin Brasil

Em outubro de 1923, enquanto Vladimir Lenin, de seu leito de morte, pairava como sombra sobre a recém-formada União Soviética, uma das maiores fábricas de Moscou tornou-se domínio de duas artistas determinadas a moldar um estilo para a população. 

A experiência tinha um quê de desespero. Após o colapso do regime imperial da Rússia durante o clímax da Primeira Guerra Mundial, suas facções políticas engajaram em batalhas internas, até que o Exército Vermelho finalmente derrotou uma desagradável leva de monarquistas, latifundiários e generais que aspiravam ao cargo de Líder Supremo. Milhões de russos pereceram por assassinato ou fome; a produção industrial caiu a uma fração de seu nível pré-guerra. 

Poucas coisas poderiam ainda dar errado na Primeira Fábrica Estatal de Impressão em Algodão, para usar seu título pós-revolucionário. Mas o diretor da fábrica não convidou Liubov Popova e Varvara Stepanova, respectivamente uma pintora rica e outra proletária, para vir trabalhar ali sem razão. Ele acreditava em seu movimento, que argumentava que os artistas soviéticos tinham que reimaginar as facilidades da vida diária e coletivizar a economia do desejo. Os trabalhadores mereciam tanto pão, quanto cetim.

A pintora e estilista russa da classe trabalhadora Varvara Stepanova com seu marido, o vanguardista Alexander Rodchenko, em 1920. (TASS via Getty Images)

“Eu queria produzir objetos reais“, contou Stepanova em uma entrevista ao jornal teatral Zrelishcha, “um ambiente totalmente material sobre qual o material vivo humano pudesse agir”. Muitos dos seus companheiros construtivistas chegaram a essa revelação pelo mesmo caminho, que permeava a vanguarda de Moscou no final da década de 1910, brincando com a abstração. Agora, queriam “destruir o valor sagrado” do trabalho artístico individual. 

Desenho de Varvara Stepanova, 1921

Os construtivistas exaltavam pôsteres, fotomontagens e a luz ondulante do cinema, todos objetos de produção em massa. Em seu livro Imagine No Possessions: The Socialist Objects of Russian Constructivism [Imagine Não Haver Posses: Os Objetos Socialistas do Construtivismo Russo, em tradução livre], Christina Kiaer escreve: “A estética construtivista foi uma tentativa de enriquecer o corpo do sujeito socialista através de formas mais apropriadas de objetos modernos – usar a tecnologia industrial para ampliar a experiência sensorial, ao invés de sedá-la ou amortecê-la, como se fez durante o capitalismo… o amortecimento dos sentidos que era a resposta natural ao choque sensorial da fábrica, da ferrovia, da metrópole.”

Diferentemente das pinturas de sua amiga mais velha Popova, as de Stepanova eram recebidas com frieza: o artista modernista franco-russo Marc Chagall havia descrito sua única exposição em galeria, na exibição estatal de Moscou em 1920, como “desequilibrada” e “desgovernada”. Ao ver uma dessas telas no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque alguns anos atrás, eu amei o movimento que sugeria, com algumas linhas curvas, como as cores se agitavam dentro da figura dançante. A despeito da indiferença da crítica à pintura de Stepanova, ela tinha renome pelos figurinos que produzia para peças de teatro experimentais – ela achava que cada profissão deveria ter seu uniforme customizado, numa ode ao trabalho. 

Esse sonho não se realizou, mas os trajes que ela chegou a fazer transformaram seu trabalho em espetáculo. As roupas de Stepanova enfatizavam materiais leves e cortes confortáveis, enquanto os tecidos entrelaçavam as formas em geometrias radiantes. A gerência da fábrica rejeitou um deles por parecer “um metrô”, como o efeito zootrópico de um túnel de metrô passando sob os olhos.

Sob a longa sombra do luxo

O luxo jamais esteve apartado da história, especialmente quando parecer fora de moda era uma preocupação nacional. Achando seu domínio tsarista muito cafona, e ambicionando um império mais moderno, Pedro, o Grande, decretou, em 1701,  que todos os moscovitas usassem roupas germânicas; qualquer um pego vendendo estilos tradicionais encararia “punições terríveis”, uma promessa sinistra, já que Pedro havia torturado seu próprio filho até a morte. 

Christine Ruane, em seu livro de 2009, The Empire’s New Clothes [As Novas Roupas do Império, em tradução livre], registra como a moda ditava a política russa durante esse período imperial: o governo inicialmente permitia o comércio livre de roupas estrangeiras, esperando encorajar seu uso, mas mais tarde impôs altas taxações para tentar apoiar a indústria doméstica. Como o resto da imprensa, revistas do tipo da Vogue eram vistas com suspeita, e em uma ocasião, censores chegaram a declarar um conto sobre a Revolução Francesa “inapropriado” para tais publicações.

Projetos de Stepanova para kit esportivo unissex, 1923

Enquanto a monarquia dos Romanov perdia força em 1905, centenas de vendedores de lojas de varejo andavam pelas ruas do centro de Moscou, as mesmas ruas nas quais rebeldes construiriam barricadas apenas alguns meses depois. The Empire’s New Clothes nota que os trabalhadores da moda frequentemente representavam “o lado radical” dos grupos de esquerda: os estágios como aprendizes faziam com que tivessem intimidade com a cidade, e quando seus mestres os enviavam para fazer alguma entrega, eles confrontavam a burguesia em suas próprias casas. 

Um protesto trabalhista dos cortadores e costureiros de São Petersburgo transformou-se em uma greve maior, a qual o Estado tentou reprimir exilando os líderes sindicais.

“Talvez como retaliação,” escreve Ruane, “ladrões arrombaram a loja de roupas Viennese Chic… Roubaram milhares de rublos em roupas e destruíram as mercadorias deixadas para trás”. Imagine trabalhadores posando em peles roubadas, como se fossem príncipes e condessas de uma aristocracia invertida.

Muitos conservadores russos consideravam a moda em si uma depravação moral porque dava liberdade às mulheres. Christine Ruane cita Epidemic Insanity: Toward the Overthrow of the Yoke of Fashion [Epidemia de Insanidade: Em Direção à Destruição do Jugo da Moda, em livre tradução], um texto de 1914 da autora direitista Iulii Elets:

Esse livro sobre a mais premente e dolorosa questão na vida social moderna e familiar parece um grito de desespero a respeito de como as mulheres desfiguram seus corpos com roupas feias e absurdas, como são extorquidas quantias absurdas de dinheiro, como a libidinagem e a desintegração são introduzidas nas famílias pelos constantes desejos pelo mais recente apelo sem sentido da moda, como trapos coloridos cultivam o vazio nos corações e mentes femininos, como muitos crimes são cometidos por causa das leis impensadas da moda e sobre quantas pessoas perecem por causa disso!

Socialismo fashion

A opulência imperial saiu de moda com a revolução, mas a pergunta permaneceu: o que substituirá cada blusa ou rádio cobiçados depois que o mercado desaparecer? Artistas como Stepanova apartaram-se dos comunistas mais ascetas para propor um novo tipo de materialismo. Ela faria coisas que respondessem à vida em seu entorno – companheiros de viagem, não bugigangas acumuladas. Socialismo, mas na moda.

“A luz do Leste não é somente a libertação dos trabalhadores,” escreveu o amigo de Stepanova, Alexander Rodchenko. “A luz do Leste é a nova relação com a pessoa, com a mulher, com as coisas. Nossas coisas e nossas mãos devem ser iguais, camaradas, e não devemos ser escravos enlutados.”

Um exemplo dos designs têxteis de Stepanova.

Os construtivistas tinham um aliado estrangeiro no crítico Walter Benjamin, que acreditava que uma cultura de massas continha potencial revolucionário; ele descreveu tais revelações lindamente como “aquilo contido no que foi une-se em um instante com o que é para formar uma nova constelação.” Benjamin atribuiu à moda um poder quase místico: 

Cada coleção traz, em suas novas criações, vários sinais secretos do porvir. Quem entender como ler esses semáforos saberá antecipadamente não apenas sobre as novas correntes nas artes, mas também sobre os novos códigos legais, guerras e revoluções. Nisto, certamente, encontra-se o maior charme da moda, mas também a dificuldade em tornar o que é charmoso em algo frutífero. 

Dentro do interminado Arcades Project, a colagem literário-histórico-marxista de Benjamin sobre passar tempo no shopping center, lê-se: “O eterno é, em qualquer instância, muito mais a prega de um vestido do que alguma ideia”. Mas o ciclo do estilo pode colapsar a história num momento imediato.

Ao obscurecer a dominação que o dirige, o capitalismo esconde essas colisões entre passado e presente, reduzindo o mais belo enfeite a um cadáver rígido. Desconecta os objetos de seu contexto social, do mundo sensual. Nós os liberamos brevemente, como o sonhador não atingido pela gravidade: amigos passando um isqueiro, amantes dividindo roupas. A maioria dos meus trajes favoritos – um suéter com estampa de flores negras da Commes des Garçons, uma jaqueta cor de sangue com dourado da Haider Ackermann – vieram de brechó, e constantemente penso nas pessoas que as desenharam, costuraram e vestiram. 

Stepanova posa com roupas que desenhou, 1923.

A vasta riqueza e a ruína ecológica causadas pelas redes de fast-fashion dependem de um trabalho obscurecido e exaustivo: essas companhias só podem criar seus estoques tão rápida e lucrativamente por causa dos trabalhadores que exploram. A socióloga Madison Van Oort já descreveu como é trabalhar nesse tipo de loja, incapaz de reconhecer as mudanças na disposição dos objetos: “Eu perambulava em círculos no meu departamento, tentando incessantemente encontrar uma blusa que sabia ter visto recentemente.” A lógica do pesadelo capitalista faz o vendedor se perder dentro da própria butique. 

Os próprios construtivistas notaram a hesitação de seu país em escapar desse sistema integralmente; durante os anos de 1920, a União Soviética encorajava empreendimentos privados limitados por puro desespero econômico, permitindo que financistas ganhassem montanhas de dinheiro. A liderança bolchevique concedeu a todos esses antigos pintores uma tolerância divertida, mas pouco financiamento. (“Gostos variam”, disse Lênin a um grupo de artistas vanguardistas. “Sou um homem velho.”)

O arquiteto construtivista Vladimir Tatlin propôs seu Monumento à Terceira Internacional, uma hélice dupla idealizada para transmitir todas as formas de mídia, girando sem parar em torno de seu eixo. Nunca se tornou mais que um modelo em escala, e mesmo este teve que usar madeira. A maioria das ideias de seu movimento tiveram o mesmo destino, permanecendo em plantas e protótipos. Dos escombros, os construtivistas imaginaram motores enormes, paisagens de vidro e aço, manifestos refletidos no céu: uma fantasia da modernidade. Quando vestiam um vestido melindroso desenhado por Popova ou Stepanova, as pessoas comuns podiam tocá-lo.

É tentador pensar naquele mundo como um paraíso negado, mas também seria uma traição política. Os construtivistas queriam enfatizar o presente, mesmo enquanto o desafiavam. Eram os mais práticos dos utópicos: após sua torre não ser erguida, Vladimir Tatlin dedicou-se a construir um fogão melhor. “O vestido de hoje precisa ser visto em ação,“ escreveu Stepanova. “Para além disso, não há vestido, assim como uma máquina que não pode ser concebida para além do trabalho que deve desempenhar.”

Os Resultados do Primeiro Plano Quinquenal, uma fotomontagem de Stepanova, 1932.

Ela também argumentou que a emancipação da mulher era evidenciada pela moda. Com suas formas andróginas, suas espirais e grades escandalizantes, as roupas de Stepanova eram um motim às convenções. (Parece injusto que ela nunca tenha conhecido Rick Owens.) Sem nenhum desleixo, Popova uma vez produziu uma estampa com martelos e foices pequenos e elegantes. De acordo com o crítico, Iakov Tugendkhol’d, elas “romperam a Bastilha do conservadorismo fabril”.

Uma fatia do tempo

A experiência da Primeira Fábrica Estatal de Impressão em Algodão durou apenas um ou dois anos. Embora Popova e Stepanova quisessem se juntar aos processo industrial, não conseguiam nenhum horário no laboratório de pesquisa e a gerência da fábrica ainda relutava em aceitar duas forasteiras. Mas as designers se popularizaram, sendo vistas por toda a Moscou e mais além. 

Stepanova com bússola e cigarro.

Atingida pela febre escarlate em 1924, uma doença que já havia matado seu filho, Popova disse que nunca sentiu-se mais satisfeita como artista do que quando via uma camponesa ou trabalhadora usando uma de suas estampas. Em Imagine No Possessions, Kiaer tenta resumir a profecia socialista de Stepanova: “As roupas sairiam de moda, não porque começassem a parecer estranhas quando o mercado gerasse uma nova moda, mas pelas condições do byt [o dia-a-dia, principalmente no sentido de trabalho enfadonho] terem mudado, necessitando de novas formas de vestimenta.” Por causa disso, ela passou a costura.

A fotografia mais conhecida de Stepanova a mostra posando com seu compasso e cigarro entre os lábios. Os construtivistas gostavam de brincar com sua própria imagem heróica, mas aqui o conselho da fábrica acharam hilário que uma artista precisasse de tais ferramentas para passar uma linha, sem se dar conta que Stepanova queria desenhar de forma não natural. Uma outra foto dela me cativa: Stepanova fumando outro cigarro, o braço cruzado atrás da cabeça, meio sorrindo para a câmera. Percebe-se logo que foi tirada por seu amante. A foto tem mais cem anos, mas poderia ter sido tirada uma hora atrás. 

“A moda oferece de forma acessível a um conjunto de linhas e formas predominantes de uma dada fatia de tempo,” escreveu Stepanova, “os sinais externos de uma época nunca repete as formas que já encontrou.” Suas próprias roupas estão perdidas na memória, junto com a utopia construtivista que ela almejava decorar, mas podemos usá-las como um buraco de minhoca, entrando na história por novos ângulos. Uma vida de apocalipse permanente, fazendo compras no abismo – isso tudo nunca foi inevitável. O que é o glamour sem o império para acumulá-lo? Que uniformes usaremos depois que as classes forem abolidas? Discretamente, podemos reconhecer a sofisticação de um mundo ainda porvir.

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DA SOLIDÃO À LEITURA COLETIVA: CLUBES DE LEITURAS AMPLIAM A DISCUSSÃO DA LITERATURA

Maio 28, 2022
  1. MOSAICO CULTURAL

LITERATURA

Da solidão à leitura coletiva: Clubes de leituras ampliam a discussão da literatura

Em expansão no país encontros fomentam à leitura e ampliam as percepções sobre os livros

Anelize Moreira

28 de Maio de 2022 –

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O Mulheres Negras na Biblioteca promove clube de leituras em bibliotecas e centros culturais de SP – Acervo Mulheres Negras na Biblioteca

Precisamos pensar em como viabilizar o acesso aos clubes de leitura

Os clubes de leitura ganharam o Brasil nos últimos anos. Tem para todos os gostos, livros escritos por mulheres, infanto-juvenil, sobre a América Latina, clássicos da literatura, política, literatura brasileira, entre outros.  

Os clubes são organizados por editoras, livrarias, bibliotecas e por quem é entusiasta da literatura e são espaços de compartilhamento de ideias de quem leu cada livro. Geralmente funciona assim: o livro do mês é divulgado e, na data marcada, participantes e mediadores conversam presencial ou virtualmente sobre as várias leituras possíveis daquele livro. Em alguns, o próprio escritor ou especialista na temática também participa dos encontros que acontecem em bibliotecas, escolas ou centros culturais. 

Mulheres

Um dos clubes que mais se destacam – e bem antes da pandemia – é o ‘Leia Mulheres‘, que completou sete anos em março e já está presente em mais de cem cidades brasileiras, de todos os estados do país e no exterior, em países como Suíça, Berlim e Portugal.   

O Leia Mulheres surgiu em 2015, a partir de uma mobilização da escritora Joanna Walsh que propôs o projeto #readwomen2014 (#leiamulheres2014) que consistia em promover a leitura de escritoras.

Artigo | Expressão Popular: “Pediria meio pão e um livro”

Uma das três organizadoras do Leia Mulheres” é a coordenadora de marketing na Editora Nós, Michelle Henriques. Ela explica que, em cada cidade, o clube ganha um enfoque. No caso de São Paulo, são selecionados previamente os livros, alternando diferentes editoras, gêneros literários e o país de origem das escritoras para passar pelos mais diversos tipos de literatura. 

“A leitura sempre foi um ato muito solitário para mim e creio que para outras pessoas da minha geração, que antes do boom da internet liam o livro e não tinham com quem falar sobre ele. As redes sociais ajudaram no compartilhamento de leituras e os clubes também tem isso, você chega no encontro, ouve opiniões diferentes e cria uma nova ideia sobre o livro”, relata.  

::“Para as mulheres pobres a dificuldade é maior de se imaginarem escritoras”, diz pesquisadora::

Ao longo destes sete anos, são incontáveis as escritoras que foram tema do Leia Mulheres desde escritoras independentes até os clássicos e para diferentes públicos, entre elas, estão Elena Ferrante, Carolina Maria de Jesus, Aline Bei,  Rupi Kaur e Judith Butler.. 


Encontro Leia Mulheres em São Paulo com a participação da escritora Aline Bei / Leia Mulheres

Segundo Henriques, a leitura pode ser uma arma para combater a misoginia no atual cenário político brasileiro.

“Esperamos que a leitura possa reverter essas ideias e pensamentos errados que foram normalizados nos últimos anos de governo Bolsonaro. A literatura é transformadora e os debates podem trazer mudanças positivas para a situação que o país está vivendo agora”, afirma. 

Diálogos

A escritora Thais Campolina está à frente de dois clubes: é organizadora do Clube Cidade Solitária e mediadora do Leia Mulheres em Divinópolis (MG). Ela diz que se descobriu apaixonada por esse processo que acontece a partir da troca sobre o mundo literário. Para Thais, o clube proporciona um exercício estético e político, mas também vai além do livro, pois tem a ver com escuta e respeito.  

::Hilda Hilst e a fé na palavra: conheça a escritora que investiga a solidão, a loucura e o tempo::

“Quando a gente incentiva a leitura e o acesso à cultura, os clubes de leituras são muito importantes, porque eles encorajam pessoas a lerem mais que não necessariamente é em quantidade, mas em qualidade também. Porque quando você lê para discutir, você lê mais atento e diferente e essa leitura é importante incentivar em uma era em que têm tudo está na palma da mão”, assegura.

Diversidade

Campolina ressalta que há muitas iniciativas para promover a leituras de livros escritos por mulheres, LGBTQIA+, e negros e mas para popularizar a leitura é preciso promover o acesso à literatura para esses grupos. 

“O clube de leitura é o jeito mais fácil de atrair novos leitores, mas é difícil chegar até eles, porque o país tem pouca tradição de leitura não só por causa de questões culturais, mas principalmente pela desigualdade social, que estamos vivendo um momento que muita gente está com dificuldade de sobreviver, de pagar aluguel e conseguir comida, então é muito desafiador incentiva a leitura quando a gente está enfrentando todos esses problemas”. 

Bibliotecas

Os clubes de leituras também acontecem em espaços como bibliotecas. O Mulheres Negras na Biblioteca surgiu em 2016 quando em um curso de biblioteconomia em que as três únicas alunas da sala perceberam que na biblioteca da instituição não havia obras de escritoras negras. 

A partir de então, foi feito um levantamento nas bibliotecas de São Paulo sobre a presença da literatura negra nos acervos, porque não estava presente e se o público se interessava por essas obras. O resultado foi que alguns espaços diziam que não havia demanda e foi aí que elas assumiram a responsabilidade de formar esse público leitor, como explica Juliane Sousa, uma das mediadoras do projeto. 

“A gente vem entendendo através das nossas atividades que é preciso tirar o que seria o empecilho do público de se aproximar do texto. A nossa estratégia foi promover a leitura de contos de escritoras negras, porque o conto é um texto curto, a pessoa só precisa chegar até o encontro ou se tiver passando, é só ela sentar e ali ela já vai sair com um texto lido de uma mulher negra”, afirma.  

Mulheres Negras na Biblioteca faz também parceria com as editoras para sortear no clube de leitura exemplares dos livros selecionados. “Estamos falando de todo universo de leitura que envolve editoras, festivais e escolas que não olha para essas autoras negras como interessantes para o mercado editorial. Então quando o público passa a levar pra casa esses livros e comprar de outras autoras negras, a editora e as instituições entendem que têm público, a gente começa a mobilizar”. 

A dica de Thais para quem quer começar é buscar assuntos que te causam curiosidade ou interesse e participar de clubes online.

Conheça:

Leia Mulheres

Clube Cidade Solitária

Querido Clássico

Coletivo Escreviventes 

Nossa Literatura

Mulheres Negras na Biblioteca 

Edição: Daniel Lamir

MASP ACEITA INCLUIR FOTOS VETADAS DO MST E CURADORAS QUEREM ACESSO GRÁTIS À MOSTRA

Maio 27, 2022
  1. CULTURA

RECUO

Sandra Benites e Clarissa Diniz aceitaram a proposta de retomada do núcleo

Caroline Oliveira

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Maio de 2022 –

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Fotografia que mostra integrantes do MST foi uma das imagens vetadas na exposição do Museu de Artes de São Paulo (Masp) que deve ser aberta em julho
Fotografia que mostra integrantes do MST foi uma das imagens vetadas na exposição do Museu de Artes de São Paulo (Masp) que deve ser aberta em julho – Foto: André Vilaron

As curadoras Sandra Benites e Clarissa Diniz propuseram nesta quinta-feira (26) ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) a gratuidade no acesso à exposição Histórias Brasileiras, depois que o museu propôs adiar a abertura da mostra e reorganizar o cronograma para incluir o núcleo Retomadas.

Benites e Diniz haviam cancelado o Retomadas em protesto contra a não inclusão das fotos, imagens do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da luta indígena. O Masp justificou a ausência dizendo que seus prazos internos para o processamento das fotografias não foram cumpridos. 

A proposta e outras cinco foram endereçadas, por meio de uma carta a dirigentes do Masp: o presidente do conselho deliberativo, Alfredo Egydio Setúbal, o diretor presidente, Heitor Martins, e o diretor artístico, Adriano Pedrosa. 

::“É difícil lidar com um sistema que engessa a gente”, diz curadora indígena que deixou o Masp::

“Sugerimos que, durante o período desta exposição, o Museu possa suspender sua usual cobrança de ingressos como exercício de um dos princípios ético-políticos das Retomadas: a redistribuição dos territórios, capitais e privilégios historicamente concentrados nas mãos das elites”, afirmam as curadoras em nota.  

“Se puder interromper a cobrança de ingressos ou, alternativamente, ampliar os dias de gratuidade durante Histórias Brasileiras, ao salvaguardar acesso gratuito a seus espaços, exposições e demais atividades, o Masp certamente reforçará seu compromisso com a democratização, a inclusão e a diversidade.” 

As curadoras aceitaram a proposta de retomada do núcleo, que também prevê a inclusão das seis fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar que haviam sido vetadas pelo museu, o que resultou no cancelamento do núcleo. Além do acesso gratuito, Benites e Diniz propõem, inclusive, a aquisição das seis fotografias. 

::Veja fotos do acervo do MST que foram vetados em exposição do Masp, e entenda o caso::

Benites e Diniz também propuseram mudanças legais que haviam sido estabelecidas em contrato anterior. Segundo as curadoras, o Masp tem os direitos de propriedade intelectual do trabalho realizado até o momento, o que impede a realização do Retomadas em outros lugares, estando inevitavelmente atrelado ao Masp. 

Nesse sentido, as curadoras propõem que o Masp não “detenha os direitos autorais patrimoniais referentes ao Retomadas, assegurando que, na condição de suas curadoras, tenhamos nossa propriedade intelectual reconhecida pelo MASP em nossos distratos e/ou contratos”. 

Numa segunda proposta, Benites e Diniz pedem que, “reconhecidos os direitos autorais patrimoniais”, o Masp retire qualquer barreira para utilizar, difundir ou modificar o trabalho. “Como esta é uma luta coletiva, não nos interessa submeter as Retomadas às normas de proteção de propriedade intelectual”, defendem.  

Clique aqui para ver a nota completa das curadoras e todas as propostas. 

Relembre o caso  

No começo de maio, o Masp vetou seis fotos da exposição Retomadas, parte da mostra Histórias Brasileiras, prevista para ocorrer em julho. Quatro das fotos retratam momentos de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras duas da luta indígena, de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ, respectivamente.  

Segundo Sandra Benites e Clarissa Diniz, o Masp alegou que as fotografias não poderiam ser expostas, pois o prazo estipulado para incluir as obras teria sido extrapolado. As curadoras, entretanto, dizem que não foram avisadas pela instituição sobre a data limite. “O Masp nunca mandou para gente o cronograma. A gente achou que estava tudo bem, porque a gente não tinha cronograma”, disse Benites ao Brasil de Fato.  

Em nota, as curadoras também reforçaram a inexistência de um prazo. “Reiteramos: nunca nos foi informado um cronograma de Histórias Brasileiras e nunca atrasamos a definição da lista de obras do Retomadas, como alega o MASP, tentando nos imputar uma imagem de incompetência.”  

Para elas, a mostra revelou “a urgência de revermos as éticas e políticas coloniais de nossos territórios, línguas, corpos, representações e museus”. Por isso, Benites afirma que o “sistema colonial”, cujos valores ainda seguem presentes nas instituições e normas, é “opressor”.  

Com a negativa às seis imagens, as curadoras decidiram, então cancelar a mostra. “Aceitar a exclusão das imagens das retomadas em nome da permanência do núcleo nos levaria a ser desleais com os sujeitos e movimentos envolvidos na nossa curadoria – contradição que não estamos dispostas a negociar por não concordar com tamanha irresponsabilidade”, afirmam as curadoras, em nota. “A gente não podia seguir em frente”, disse Benites.  

O MST também se posicionou sobre o caso. Em nota, o movimento disse que “ao inviabilizar a inserção da totalidade desses documentos”, o Masp coloca em prática “a exclusão de um dos maiores movimentos sociais da história contemporânea brasileira e latino-americana”.  

Eles ainda afirmam que a decisão “aponta para uma construção de conhecimento histórico distorcido e comprometido com uma cultura deturpadora da real complexidade da história política brasileira”.  

Por sua vez, o Masp informou à imprensa que recebeu as obras com cerca de três meses de antecedência, sendo que o prazo padrão do Masp é de quatro a seis meses, portanto, depois do prazo que teria sido estipulado.    

::Jaider Esbell: “Arte indígena desperta uma consciência que o Brasil não tem de si mesmo”::

“No entanto, o museu conseguiu atender sim um dos pedidos das curadoras, de maneira excepcional, para incluir as obras pertencentes ao acervo do Movimento Sem Terra, um total de sete cartazes e documentos. O que não foi possível incluir foram seis fotografias de três fotógrafos. Embora esse material representasse o eixo central do núcleo, foi entregue ao museu fora do prazo”, escreveu a instituição em nota. 

Veja a nova nota do Masp na íntegra

“O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand vem a público com um novo posicionamento sobre o cancelamento do núcleo Retomadas, que fazia parte da mostra coletiva Histórias Brasileiras, a ser inaugurada em 1º de julho próximo. A exposição faz parte da série de Histórias, que incluiu Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-Atlânticas (2018), Histórias Feministas (2019), entre outras. 

O Museu tem refletido muito sobre o atual momento e, como um museu vivo, busca aprender com este episódio, inclusive observando falhas processuais e erros no diálogo com as curadoras Clarissa Diniz e Sandra Benites, responsáveis pelo núcleo Retomadas. A instituição lamenta publicamente o cancelamento do núcleo, tão importante para a exposição, e a saída das curadoras do projeto. 

Pretendendo avançar para que episódios semelhantes não se repitam no futuro, estamos abertos a ouvir Benites e Diniz, com a finalidade de aprendermos com essa experiência e aprimorarmos processos e modelos de trabalho. 

Nesse sentido, caso as curadoras concordem, propomos adiar a abertura da exposição e reorganizar o seu cronograma para que possamos incluir o núcleo Retomadas na mostra. 

Outra medida que estamos propondo é a realização de um seminário público durante a exposição sobre o núcleo Retomadas com a participação das curadoras. 

Por fim, iremos propor a incorporação ao acervo do Museu, das 6 fotografias de autoria de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar, caso seja do interesse dos artistas, como registro da importância dessas imagens para a história do MASP e reconhecimento do trabalho desenvolvido pelas curadoras junto ao Movimento Sem Terra—MST. 

O MASP está comprometido com a abertura de novos espaços de escuta, na certeza de que o que queremos é um Brasil mais plural, inclusivo e democrático – que só pode ser construído coletivamente, a partir do diálogo aberto, empático e colaborativo.” 

Edição: Rodrigo Durão Coelho

UM FREIO À MINERAÇÃO NO BRASIL DE TORTO ARADO

Maio 26, 2022

Comunidade quilombola, na Bahia, da mesma luta que inspirou o romance, conquista a interdição da Brazil Iron. Responsável por destruição e ameaças às famílias, mineradora atuava sem estudos ambientais e recursos para indenizações por danos

OUTRASMÍDIAS

MOVIMENTOS E REBELDIAS

Por Repórter Brasil

Maio/2022 –

A quilombola Bibiana, responsável pela cerimônia de encomendação das almas, luta para resistir e sobreviver aos impactos negativos causados em sua comunidade após a chegada da Brazil Iron (Foto: Fernando Martinho)

Por Daniel Camargos, na Repórter Brasil

A imagem de Iemanjá está ao lado de Cristos crucificados, pôsteres do Vasco da Gama, fotos dos netos e de uma Nossa Senhora segurando uma folha de espada de São Jorge. As paredes de barro da casa de Leonisia Maria Ribeiro estão repletas de crenças, mas nos últimos anos ganharam marcas que até a sua fé duvida. São rachaduras que atravessam os tijolos de adobe e desassossegam a benzedeira. “Essas bombas só faltam matar a gente”, lamenta.

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As bombas a que Leonísia se refere são dinamites usadas pela mineradora inglesa Brazil Iron para extrair minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina, em Piatã, na Bahia. A benzedeira é moradora da comunidade quilombola da Bocaina, vizinha do empreendimento, e aponta o impacto das explosões como cicatrizes que racham as paredes de sua casa. 

“Essas bombas do minério estrondam a casa todinha. Tem hora que até as coisas da casa a gente vê sacudindo. Eu estou com medo dela [a casa] cair. Eu tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez”.

Semanas depois de a equipe da Repórter Brasil entrevistar Leonísia, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão ambiental do governo baiano, fiscalizou as instalações da mineradora e decidiu interditá-la temporariamente. A interdição vigora desde 26 de abril e foi motivada por pelo menos 15 irregularidades, entre elas não prever recursos para recuperar as casas rachadas da comunidade. 

A reza de Leonísia é forte. Enquanto mostra as rachaduras na parede, ela lembra do passado, quando caminhava quilômetros pelas estradas de terra para participar aos finais de semana de uma celebração religiosa repleta de sincretismo. Aos 76 anos, fechou os olhos, franziu a testa e puxou na memória a música que cantava enquanto benzia as pessoas: “Vem, vem, vem, vem Espírito Santo”. 

A poucos quilômetros dali, Ana Joana Bibiana Silva, de 81 anos, toca matraca e canta as ladainhas da encomendação das almas se preparando para a Semana Santa. A sala de sua casa está toda enfeitada com fitas coloridas que descem do teto e ornam com a parede vermelha, um resquício da última folia de reis, quando recebeu os moradores da comunidade para a festa.

Leonísia e Bibiana nos transportam imediatamente para Belonisia e Bibiana, as irmãs protagonistas do best-seller ‘Torto Arado’, do escritor baiano Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020. É impossível conhecer as comunidades quilombolas de Bocaina e Mocó, na Chapada Diamantina, e não associar ao que é narrado no livro, cuja trama acontece na mesma região. A ligação fica mais intensa por causa da coincidência de nomes entre as personagens da vida real e as da ficção – encharcada de realidade.  

Enquanto no livro Belonisia e Bibiana têm a vida atravessada por um acidente com uma faca e pela intervenção dos seres encantados manifestos no Jarê (religião de matriz africana típica da Chapada Diamantina), na vida real, Leonísia e Bibiana também têm a trajetória permeada pelo sincretismo religioso e enfrentam juntas os efeitos da mineração.

Um dos problemas enfrentados pela quilombola Leonisia são as rachaduras em suas paredes, causadas pelas detonações da mineradora: ‘Essas bombas estrondam a casa todinha. Eu tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez’ (Foto: Fernando Martinho)

Projeto bilionário 

As duas comunidades quilombolas comemoraram a interdição temporária da mineradora. Para o coletivo de moradores SOS Bocaina e SOS Mocó, a interdição deveria ter acontecido antes, pois a mineradora estava atuando sem as devidas licenças ambientais.

Além da fé e da luta das duas comunidades, um episódio catalisou a atenção para a mineradora Brazil Iron. Em 28 de março, a equipe da Repórter Brasil foi até a sede da empresa, no centro de Piatã, solicitar uma entrevista com algum representante. Ao invés de respostas, o gerente de logística da Brazil Iron chamou a polícia para os jornalistas. O episódio provocou protestos de diversas entidades, como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e o Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ).

Ao ser questionado pela reportagem, em 11 de abril, sobre o histórico de infrações da Brazil Iron, o Inema não respondeu imediatamente. Decidiu enviar uma equipe para fiscalizar a empresa e retornou, semanas depois, dizendo que havia interditado as operações da mineradora. Listou 15 infrações, entre elas ausência de estudos para depositar rejeitos da mineração, deixando nascentes e rios vulneráveis, e falta de previsão orçamentária para reparar 18 casas danificadas pelas explosões (leia nota na íntegra). 

A Brazil Iron estima um prejuízo de R$ 200 mil para cada dia parada. Ao todo, as perdas somam R$ 4,4 milhões. Em nota, a mineradora disse que recebeu “com profunda surpresa e desapontamento” a interdição, negou cometer as infrações e avalia que a medida gerou “medo e insegurança” nas famílias que dependem do emprego na mineradora. (leia a nota na íntegra).

Mais próxima da mineradora, a comunidade de Mocó sofre com o pó de minério, que matou as plantações e que faz os moradores se sentirem em uma vila industrial (Foto: Fernando Martinho)

A mineradora é a subsidiária brasileira da holding inglesa Brazil Iron Trading Limited. Foi fundada após a aquisição de direitos minerários na Chapada Diamantina, em 2011. A empresa tem 25 pedidos de pesquisa mineral protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM). Antes da interdição, tinha autorização para extrair 600 mil toneladas de minério por ano, ainda no estágio de pesquisa e exploração. 

Se conseguir voltar a operar, os planos, contudo, são ambiciosos. A empresa quer construir no local uma planta de pelotização (beneficiamento inicial do ferro) para produzir 10 milhões de toneladas por ano. Além disso, pretende construir uma ferrovia até o litoral baiano para exportar o minério. 

A previsão da empresa é investir cerca de R$ 5 bilhões, o que, segundo a assessoria de imprensa, geraria cerca de 25 mil empregos diretos e indiretos. Atualmente, a Brazil Iron tem 500 empregados e calcula que gera ao todo 2,5 mil empregos indiretos. 

Nascente poluída

Além de procurar respostas sobre as rachaduras nas paredes provocadas pelas explosões, a Repórter Brasil queria escutar da mineradora a explicação para outras queixas dos moradores. Entre elas, a contaminação da nascente do Bebedouro. O local recebeu esse nome por ser uma nascente perene onde, nos períodos de seca, os moradores buscavam água límpida para beber.

“Eles [Brazil Iron] começaram a degradar em cima do morro e foi descendo o rejeito de minério para nascente”, detalha a quilombola Catarina Silva, que acompanhou a reportagem até a nascente para mostrar os efeitos do assoreamento provocado pela mineração.

Catarina mostra a nascente que antes jorrava água cristalina e que, após a instalação da Brazil Iron, foi sendo assoreada (Foto: Fernando Martinho)

Catarina lembra que a água era cristalina e por mais que chovesse, a mata preservada no alto do morro não deixava a mina d’água ficar suja com a enxurrada. “Para a empresa, o minério é valioso, mas para nós a nascente não tem preço. Aqui é toda nossa vida”, lamenta.

A mineradora também provocou estragos na represa que abastece as duas comunidades. Localizada acima da Cachoeira do Veado, a represa foi contaminada após um caminhão carregado de minério capotar na estrada há dois anos. Mesmo após o tratamento da água, o quilombola Bráulio Silva prefere não arriscar. Quinzenalmente ele vai em um burrinho buscar a água que bebe em outra nascente. “A água da represa ainda está ruim”, lamenta. 

Outro agravante é que a Chapada Diamantina é a caixa d’água da Bahia, explica a geóloga e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, Marjorie Csëko Nolasco. A região central da Chapada, onde está a Brazil Iron, é repleta de nascentes que abastecem três bacias: dos rios Contas, Paraguaçu e Paramirim – um dos braços do São Francisco.

“Todos esses rios cortam regiões áridas e as águas favorecem todo o semiárido da Bahia. Portanto, esse deveria ser um local tombado”, afirma a professora. 

Para evitar beber água contaminada pelo minério, Bráulio Silva vai com seu burrinho até uma outra nascente buscar água limpa (Foto: Fernando Martinho)

Em nota, a Brazil Iron disse que vai contratar uma empresa para analisar a qualidade da água e negou que seja responsável pelas rachaduras. Apesar desse entendimento, afirmou que “no intuito de comprovar sua boa vontade e preocupação com a população local já contratou profissionais para realizar a reforma nessas casas”.

‘É igual Cubatão’

Somadas, as duas comunidades quilombolas têm 150 famílias, sendo que Bocaina é maior, com 100 famílias. Já em Mocó, mais próxima da mineração, o sofrimento com a poeira é intenso. “Os pés de café foram secando e morreram todos”, lamenta Irani Oliveira Costa.

Moradora de Mocó, Irani tem o sentimento dividido ao falar a respeito da mineradora. Por um lado está feliz, pois a empresa empregou um filho e alguns parentes, mas por outro se queixa do excesso de poeira. 

“Isso aqui virou uma área industrial. Não é mais habitável como era antes”, diz Solange Costa, filha de Irani, que estava de férias na comunidade. Ela mora no litoral de São Paulo e compara Mocó com Cubatão (SP), que foi por muitos anos a cidade mais poluída do mundo. 

“As pessoas podem estar felizes pelo emprego, mas para morar é muito difícil”, avalia. Quando criança, Solange brincava entre os pés de café, manga e laranja no terreno da avó. Hoje, as plantações morreram por causa do pó de minério.

Questionada, a Brazil Iron disse, em nota, que contratou o serviço de 6 caminhões-pipa que passam na estrada para tentar reduzir a poeira e que vai implementar outras medidas. Disse também que criou uma comissão de acompanhamento e que nesta quarta (18) haverá uma assembleia com as comunidades para criação da Comissão de Acompanhamento do Empreendimento (CAE). 

Contudo, 14 entidades, entre elas a Comissão Pastoral da Terra e o Movimento SOS Bocaina e Mocó, divulgaram uma nota pública se recusando a participar. Apontam falta de transparência da empresa. Segundo o comunicado, “não há informação, por exemplo, sobre qual empreendimento esta CAE está se referindo”.

Quilombolas e mineração sob o prisma de Itamar Vieira

“Se a sociedade como um todo, incluindo corporações, como as mineradoras, vive de maneira cada vez mais predatória, levando o planeta a um iminente colapso, as comunidades tradicionais têm saberes a compartilhar com todos sobre como viver de uma maneira mais equânime com seu entorno”, afirma o escritor Itamar Vieira Júnior. 

O escritor explica que as comunidades quilombolas detêm saberes ancestrais e uma trajetória ligada à capacidade de resistência. “Marginalizadas e invisibilizadas por séculos, estabeleceram uma relação sustentável com o meio em que vivem”, destaca. 

Para Vieira Júnior, o estado brasileiro não superou a visão desenvolvimentista atrasada, que não se ajusta mais ao mundo de hoje: “Parece fantasia, mas basta sobrepor mapas de comunidades quilombolas e de preservação ambiental para perceber a relação direta entre os dois, o que convencionamos chamar de sustentabilidade”, 

Enquanto a Brazil Iron mobiliza advogados e engenheiros para cumprir as condições impostas pelo órgão ambiental baiano para voltar a minerar, os moradores se apegam à fé e se mobilizam para preservarem seus modos de vida.

O horário das explosões que afetam as casas dos quilombolas é colocado em uma placa diariamente em uma das portarias da mineradora (Foto: Fernando Martinho)

Além da poeira, da contaminação da água e das explosões, Davi Antônio de Souza, líder comunitário na Bocaina, aponta outro motivo para preservar a região. A infinidade de plantas nativas que servem de cura para várias doenças. Observando Davi explicar a utilidade de cada uma das ervas é impossível não lembrar do livro ‘Torto Arado’ e seu personagem Zeca Chapéu Grande, curandeiro e praticante do Jarê, que usava plantas e rezas para afastar os males, muitos deles provocados pela mineração, conforme conta Bibiana no primeiro capítulo do livro:

“O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos prolongados de trabalho fatigante, quebrando rochas, lavando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte”.

Na obra literária, as moléstias do espírito eram curadas com as ervas; na vida real os estragos feitos pela Brazil Iron nas montanhas da Chapada Diamantina são para sempre.

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REPÓRTER BRASIL

A Repórter Brasil foi fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil. Devido ao seu trabalho, tornou-se uma das mais importantes fontes de informação sobre trabalho escravo no país. Suas reportagens, investigações jornalísticas, pesquisas e metodologias educacionais têm sido usadas por lideranças do poder público, do setor empresarial e da sociedade civil como instrumentos para combater a escravidão contemporânea, um problema que afeta milhares de pessoas.

A LEI ALDIR BLANC NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: REFLEXÕES INICIAIS

Maio 25, 2022

O subsídio concedido se mostrou essencial no momento de emergência pelo qual o setor cultural da cidade passava

Luiz Manoel Estrella, Andrea Chiesorin, Pâmela Matos, Taísa Sanches e Veronica Diaz Rocha

Rio de Janeiro (RJ) |

Maio de 2022 –

Aldir Blanc morreu em 4 de maio de 2020, em decorrência da covid-19, e o nome dele foi escolhido para a lei que instituiu ações emergenciais para o setor cultural durante a pandemia – Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia

O setor cultural foi um dos mais afetados pela pandemia de covid-19, iniciada no Brasil no começo de 2020. Depois de meses sem receberem apoio algum por parte do governo federal, os trabalhadores da cultura foram atendidos com a aprovação da Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, a chamada Lei Aldir Blanc (LAB), que instituiu ações emergenciais para o setor.

Se, por um lado, a pandemia evidenciou a importância da cultura para a nossa sociedade, sobretudo durante os momentos de confinamento, por outro, mostrou também as fragilidades do setor e de suas políticas culturais. Neste contexto, deu-se início à pesquisa “Diagnóstico Cultural – Estudo da aplicação da Lei Aldir Blanc na cidade do Rio de Janeiro”, projeto do Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC), que busca entender os impactos da pandemia sobre o setor cultural e as políticas para o seu enfrentamento, tomando como foco a Lei Aldir Blanc municipal.

Desenvolvido em parceria com o Observatório das Metrópoles (OM) e com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), o projeto articula diferentes estratégias de pesquisa, entre elas a aplicação de questionário junto aos trabalhadores de cultura da cidade, análise de dados da LAB cedidos pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC-RJ) e também entrevistas. 

Neste primeiro artigo, apresentamos uma análise inicial acerca dos dados disponíveis desenvolvida pelos pesquisadores do CLAEC – LABCult_Rio em parceria com pesquisadores do OM, no que se refere principalmente ao Inciso II da LAB.

A Lei Aldir Blanc no Rio

A partir dos parâmetros estabelecidos pela lei, a cidade do Rio de Janeiro recebeu pouco mais de R$ 39 milhões. Dentro da legislação foram divididas competências entre Distrito Federal, Estados e Municípios. As cidades ficaram responsáveis por dois itens de execução vinculados a subsídios para organizações e atividades culturais (Incisos II e III). A renda emergencial para os trabalhadores de cultura (Inciso I) ficou sob responsabilidade dos governos estaduais.

O Inciso II previa o subsídio mensal para manutenção de espaços e outras organizações culturais, e, na cidade do Rio de Janeiro, o Inciso III foi desdobrado em quatro editais: Prêmio a Projetos de Fomento a Todas as Artes, Prêmio Ações Locais, Prêmio Arte & Escola e Preservação da Memória Técnica.

Perfis dos proponentes

Quase a totalidade dos contemplados pelo benefício, 1510 proponentes, foram afetados pela pandemia. Curiosamente, 12 organizações selecionadas para atendimento pela Lei Aldir Blanc declararam possuir atividades que não foram afetadas pela pandemia do coronavírus. Outro dado interessante diz respeito às organizações que informaram possuir apoio financeiro institucional. Apenas 33 dos selecionados informaram estar vinculados ou possuir algum tipo de apoio da administração pública de qualquer esfera, fundações, institutos, instituições, grupos de empresas, teatros e casas de espetáculos de diversões ou espaços geridos pelos serviços sociais do Sistema S.

A atuação territorial dos coletivos foi indicada pelos proponentes conforme a Área de Planejamento – AP. Entre as respostas, a região mais marcada foi a AP3 (24%), que abrange a maior parte dos bairros da Zona Norte. Em seguida temos a AP1 (23,5%), que corresponde à região central. Em terceiro temos a AP2 (22,1%), que engloba a Zona Sul e mais alguns bairros como a Tijuca e Vila Isabel. Na sequência temos a AP4 (16,2%) e AP5 (14,2%) que são as áreas que abrangem a Zona Oeste da cidade.

Vale ressaltar que essa questão permitia mais de uma resposta, então podiam ser marcadas uma ou todas as áreas de planejamento como área de atuação. O resultado mostra uma média de 2,5 marcações por proponente e, assim, podemos concluir que a maioria marcou ter atuação em duas ou três áreas de planejamento.

Já em relação ao tempo de atuação de cada coletivo, foram verificados 6 tipos de respostas, configuradas em 3 grupos para facilitar a demonstração. A maior parte dos proponentes (843 respostas) tem mais de 10 anos de atuação, seguido pelo grupo com 3 a 9 anos (583 respostas), e o último grupo, com menos tempo de atuação – até 2 anos – foi também o de menor incidência, com 80 respostas. Houve 4 respostas em branco, agrupadas como inconclusivas.

Proponentes, valores e critérios

Os valores concedidos no Inciso II aos grupos e organizações foram de R$ 6 mil, R$ 8 mil ou R$ 10 mil, pagos em duas parcelas. Para o enquadramento nessas faixas, foram usados 4 critérios: (i) institucionalidade (se o proponente tinha CNJP ou não), (ii) territorialidade (conforme os grupos por Região Administrativa definidos pela SMC-RJ, segundo parâmetros por nós desconhecidos), (iii) promoção de Ações Afirmativas (número de diferentes grupos atendidos) e (iv) quantidade de funcionários (SMC-RJ, 2020). A maior pontuação foi associada a grupos formalizados (com CNPJ), ocupantes de territórios considerados mais vulneráveis e com menor acesso cultural (grupo 5, seguidos dos grupos 4, 3, 2 e 1), que realizassem ações afirmativas mais diversificadas e com maior número de funcionários. No critério de institucionalidade, aproximadamente um terço (34%) do total dos proponentes não tinha CNPJ.

Quanto à territorialidade, o grupo 1, que reúne as Regiões Administrativas (RAs) de Copacabana, Lagoa, Botafogo e Barra da Tijuca, foi o que teve mais proponentes contemplados. Em seguida vem o grupo 2, que inclui as RAs de Paquetá, Tijuca, Vila Isabel, Centro, Rio Comprido e Santa Teresa. Depois vem o grupo 5, que reúne 15 RAs das mais populosas da cidade. O grupo 4 – Inhaúma Méier, Irajá, Madureira – e o grupo 3 – Jacarepaguá, Ilha do Governador, Ramos e Penha – são os que tiveram menos proponentes, o que pode revelar desigualdades no associativismo cultural nos diferentes territórios da cidade ou no acesso digital requerido para se inscrever no processo seletivo. Cabe destacar que não são transparentes e explícitos os parâmetros utilizados pela Prefeitura para conformar os diferentes grupos territoriais.

O critério relativo à promoção de ações afirmativas definia diversos públicos e pontuava conforme a quantidade de grupos atendidos, como, por exemplo: LGBT, negros, mulheres e pessoas com deficiência. Um maior número de proponentes declarou realizar ações afirmativas que atendiam de 3 a 5 diferentes grupos de público.

Entendemos que este critério tem uma dupla importância: de um lado, reflete as pressões exercidas pela sociedade civil sobre o poder público pelo reconhecimento do atendimento cultural aos diferentes grupos sociais; de outro lado, possui uma dimensão político-pedagógica por levar os proponentes a refletir e discernir seu público, estimulando uma percepção de cultura para além do espetáculo e da mercadoria. Isto é, uma visão de cultura como direito que contribui para a qualidade de vida, o desenvolvimento social, o sentido de pertencimento e a saúde mental, devendo assim ser acessível a todos os cidadãos. Em tempos de trevas, tratou-se de uma conquista importante, ainda que a autodeclaração nem sempre correspondesse à realidade.

Nesta perspectiva, pode-se destacar a diversidade dos públicos atendidos pelas organizações contempladas. Foram referenciados pelos proponentes um total de 27 grupos. A População em Geral foi a mais mencionada (81% das organizações), seguida por Estudantes (67%), Negros (67%) e Mulheres (65%). Entre as 10 categorias mais mencionadas, nota-se a presença de três com alguma similaridade: Estudantes (67%), Juventude (62%) e Crianças e Adolescentes (57%). No outro extremo da lista, chama atenção a presença de grupos que afirmam atender públicos pouco usuais na realidade carioca, como Ciganos (5%), Populações de regiões fronteiriças (4%) e Populações atingidas por barragens (2%).

No que se refere à quantidade de pessoal contratado, podemos discernir três grupos: o primeiro, amplamente majoritário (1.283), formado por organizações de pequeno porte que declararam ter até 10 empregados; o segundo, que consideramos como de porte médio, é formado por 137 proponentes e declarou ter entre 10 e 20 funcionários; por fim, o terceiro grupo, formado por 77 organizações, pode ser considerado de grande porte, tendo mais de 20 funcionários.

A partir da soma das pontuações dos critérios apresentados, verifica-se que a maior parte dos selecionados, 1.206 organizações, foi classificada na faixa intermediária e recebeu R$ 8 mil.

Verificamos uma pequena discrepância no total de proponentes para cada um dos critérios, o que representa uma margem de erro que não chega a 1%. É possível que se relacione com as organizações que não apontaram paralisação das atividades durante a pandemia, o que poderá vir a ser analisado em outro momento.

Considerações Finais

O subsídio concedido a grupos e coletivos através do inciso II da Lei Aldir Blanc se mostrou essencial no momento de emergência pelo qual o setor cultural da cidade passava – e ainda passa. Deve-se reconhecer o esforço realizado pelo Conselho Municipal de Políticas Culturais e pela SMC-RJ no sentido de promover a participação e o debate junto à sociedade civil sobre pontos importantes da aplicação da Lei, entre os quais estão os critérios de seleção.

A análise dos dados da implementação da LAB na cidade nos permite agora ponderar os pontos positivos e negativos, assim como levantar questões a serem elucidadas ou aprimoradas.

Apesar de valores limitados e pagos somente dez meses após o início da pandemia, o apoio constituiu um instrumento eficaz ao alcançar um grande número e variedade de agentes. A presença das ações afirmativas entre os critérios de avaliação também deve ser ressaltada, bem como a discussão em torno da diversidade de públicos, importante para a garantia dos direitos culturais dessas populações.

Por outro lado, a falta de transparência quanto às bases do critério de territorialidade e o fato de os critérios de ações afirmativas e de quantitativo de pessoal serem autodeclarados certamente fragilizam a aplicação dessa política. Além disso, diante da grande concentração da maioria dos contemplados em uma única faixa de valor, fica ainda um questionamento quanto à efetividade dos critérios. Observando agora o resultado, cabe perguntar se, naquela situação emergencial, a divisão por faixas – e com diferenças tão pequenas – era realmente necessária.

A análise dos dados relativos ao subsídio nos permite fazer uma primeira avaliação da aplicação da LAB no município do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, compreender a natureza das organizações culturais e de suas formas de atuação. Dada a escassez de dados e informações sobre o setor na cidade, esperamos com esta pesquisa contribuir com o desenvolvimento das políticas culturais, promovendo o debate neste e nos próximos boletins.



*Veronica Diaz Rocha é Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), pesquisadora associada ao Centro Latino Americano de Estudos em Cultura (CLAEC); Luiz Manoel Estrella é Mestre em Estudos da Cultura (Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE), pesquisador associado ao CLAEC; Pâmela Matos é economista pelo Instituto de Economia (IE/UFRJ), pesquisadora associada ao CLAEC; Andrea Chiesorin é Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), pesquisadora associada ao CLAEC; e Taísa Sanches é Doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio), pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). 

“IMAGINAR PESSOAS NEGRAS NO FUTURO JÁ É POR SI SÓ ATO DE RESISTÊNCIA”, DIZ AUTORA GG DINIZ

Maio 24, 2022

AFROFUTURISMO

Em entrevista ao Trilhas do Nordeste, escritora cearense fala sobre particularidades do afrofuturismo na região

Helena Dias

Brasil de Fato | Recife (PE) |

 Maio de 2022 –

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O afrofuturismo é um movimento político, artístico e social que surgiu nos Estados Unidos dos anos 60, mas se faz presente no Brasil de hoje – Divulgação/Refúgio Fantástico

Segundo o historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe, nos próximos 30 a 50 anos, uma a cada três pessoas do planeta será africana ou afrodescendente. Ou seja, o futuro do planeta Terra é um futuro negro.

Essa projeção se expressa bastante nas manifestações atuais do afrofuturismo, um movimento político, artístico e social que surgiu nos Estados Unidos dos anos 60, mas se faz presente no Brasil de hoje. O movimento resgata a filosofia, a cultura e a história dos povos africanos e afrodescendentes com uma perspectiva de ficção científica e realismo mágico com uma narrativa afrocentrada.

O programa Trilhas do Nordeste, do Brasil de Fato Pernambuco, entrevistou a escritora cearense e editora G.G. Diniz para entender a presença do afrotuturismo no Nordeste. Confira!

Brasil de Fato Pernambuco: G.G., como o movimento afrofuturista se expressa no Nordeste do Brasil? Quais são as principais referências na região?

G.G. Diniz: Ele se expressa no Nordeste de uma maneira que explora a nossa identidade enquanto pessoa negra e a nossa identidade enquanto pessoa nordestina. Porque o afrofuturismo é um movimento que surgiu nos Estados Unidos, e, quando a gente traz ele pro Brasil, obviamente que a gente tem que adaptar de alguma forma à nossa realidade e à nossa cultura, e isso não é diferente pro Nordeste. Então, o afrofuturismo do Rio e São Paulo é diferente do afrofuturismo do Nordeste porque cada um vai estar explorando a cultura local das pessoas negras. 

Nesse âmbito, eu posso citar pessoas que eu considero importantes, que são a Knaya Black, Oziel Herbert e também tem o Alan de Sá, que criou o movimento Sertãopunk comigo e está sempre nessa pegada de explorar a nossa cultura do Nordeste, o nosso jeito de falar, os nossos costumes. Mas também falar da cultura negra, da história negra, e da nossa identidade enquanto pessoa negra e nordestina.

Leia: Xênia França: “Defendo meu direito de pensar que eu sou uma mulher brasileira”
 
Você fala desse papel do afrofuturismo na construção dessa identidade negra nordestina aqui no Brasil. Fala para a gente do movimento Sertãopunk do qual você faz parte. O que é que isso tem a ver com o papel do afrofuturismo? É também uma manifestação desse processo?

Ele é um movimento de ficção futurista nordestina, onde o Nordeste é um centro de desenvolvimento tecnológico, artístico, cultural e político. Eu criei esse movimento junto a dois colegas meus, o Alan Sá e o Alec Silva. Nós três somos nordestinos, autores negros nordestinos. E o Sertãopunk tem três referências que a gente usa para construir esse futuro nordeste, que é o realismo mágico, o afropunk e o afrofuturismo. Então, não necessariamente uma obra sertãopunk vai ser afrofuturista, mas uma obra sertãopunk pode ser afrofuturista. E o que a gente buscou foi trazer o afrofuturismo para a gente, de fazer o afrofuturismo nosso.

Para a gente entender um pouco mais sobre esse universo, fala sobre o teu conto “Não tem wi-fi no espaço”, que está na coletânea afrofuturista “Raízes do amanhã”.

“Não tem wi-fi no espaço” é sobre um quilombo na cidade de Itapipoca no Ceará, se eu não me engano. É basicamente uma história sobre um quilombo que está construindo uma estação espacial para fugir do planeta terra. Essas pessoas desse quilombo, que é o quilombo Bom Jardini, são do Nordeste e vão levar o Nordeste com elas pro espaço, porque faz parte delas, faz parte da cultura delas. 

Mas ao mesmo tempo elas estão tentando fugir porque a situação não tá legal, o quilombo tá sendo engolido por um lixão de lixo espacial, é assim que eles conseguem construir a estação. E é meio que sobre essa minha relação ambivalente de gostar do Nordeste e me sentir integrada, me sentir parte, mas ao mesmo tempo ser ostracizada mesmo por ser negra.

Para você qual o papel do afrofutursmo na luta antirracista?

O afrofuturismo tem um papel muito importante quando falamos de luta antirracista porque imaginar a presença de pessoas negras no futuro já é por si só um ato de resistência porque o que existe, por mais que seja disfarçado, acaba sendo um plano de extermínio mesmo. A gente sempre esteve aqui e a gente vai continuar aqui. não só a gente vai continuar aqui como a gente vai colocar as nossas experiências e a nossa voz em foco. 

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga

CAMINHOS DE GUIMARÃES: A PÉ PELA LITERATURA E CULTURA SERTANEJA QUE INSPIROU ESCRITOR MINEIRO

Maio 23, 2022

LITERATURA

A jornada literária percorre 186 km, entre a geografia e os povos do sertão da obra roseana

Anelize MoreiraMaio de 2022 –

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Caminhantes percorrem a pé 186 quilômetros do universo do escritor no sertão de MG – O Caminho do Sertão

A obra revela a percepção de que o sertão e seu povo tenha vez, ainda está inacabada

“O sertão é dentro da gente e esse sertão não é feito só de aridez e provocação, mas também de veredas, de estações de alívio e beleza em meio a solidão” 

Seguindo pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, a pé, por mais de 180 quilômetros durante sete dias amantes da literatura e da natureza do cerrado mergulham no universo de Guimarães Rosa. A imersão no sertão do escritor acontece no norte e noroeste de Minas Gerais, por meio da obra, mas também da cultura descrita nos livros do autor. 

Quem promove essa experiência literária e cultural nos saberes de povos tradicionais desta região é O Caminho do Sertão. Michael Douglas é voluntário do Instituto Rosáceas, entidade organizadora do projeto. 

“A principal importância é que a obra de Guimarães Rosa é o principal patrimônio imaterial da vasta região conhecida como sertão mineiro, como tal, se bem trabalhado, pode impactar positivamente no fortalecimento da identidade do território e ainda pode promover a melhoria da autoestima do povo sertanejo, ao se perceber retratado com maestria numa obra literária que, literalmente, levou o sertão ao mundo. No caso particular do Caminho do Sertão a obra fundamenta, ilustra e promove o turismo de base comunitária”. 


Portal Sagarana no distrito da cidade de Arinos-MG, ponto de partida dos caminhantes / O Caminho do Sertão

O escritor João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Além de ser escritor, também cursou Medicina. Seu primeiro livro de contos é Sagarana, de 1946, e seu único romance, Grande sertão: veredas, foi publicado em 1956. O escritor foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1963, e morreu em 1967.

::Os interiores de Guimarães Rosa: a sabedoria popular nas estórias do escritor mineiro::

É um autor conhecido pela sua genialidade na invenção de palavras, os chamados neologismos, com estruturas narrativas não tradicionais, pela linguagem poética, e regionalismo atrelado a temas universais. 

“A obra de João Guimarães Rosa deu voz aos desvalidos do sertão, ao sertanejo, aos idosos, aos doentes, aos loucos, à mulher, aos bandidos, aos bêbados, à criança, aos animais e mesmo aos elementos da natureza. A obra revela a percepção de que a tarefa para que o sertão e seu povo tenha voz e tenha vez, ainda está inacabada, e neste momento de expansão do agro e do hidronegócio, da insegurança hídrica, da violência crescente no campo brasileiro, da evasão da juventude e do envelhecimento da população rural, do aquecimento global e das mudanças climáticas, esta tarefa ganha novas e urgentes dimensões”.  

Segundo Michael,  a rota socioecoliterária do Caminho do Sertão surge a partir de ações de desenvolvimento regional gestadas no início do ano de 2000, a partir de uma necessidade de geração de renda e empregos para as comunidades da região. 

A rota parte da Vila de Sagarana, que surge como a agrovila do primeiro dos inúmeros assentamentos de reforma agrária implantados pela Incra na região, localizada na cidade de Arinos (MG), onde também está localizado o Parque Estadual de Sagarana e termina no Parque Nacional Grande Sertão: Veredas em Chapada Gaúcha (MG). 

::Livro reconta fábula dos três porquinhos e o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho::

O participante pode fazer parte deste caminho que foi realizado pelo personagem central do livro Grande Sertão Veredas, além de conhecer a cultura dos sertanejos de Minas. “Durante essa rota de 186 quilômetros os caminhantes fazem uma parte do percurso que o Riobaldo e seu bando de jagunços percorrem em busca do Liso do Sussuarão suposto deserto criado pelo autor nas chapadas da região e têm contato com comunidades tradicionais e quilombolas, vilas, áreas de assentamento da reforma agrárias, áreas de posseiros e do agronegócio, durante 7 dias vivem um pouco dos saberes e fazeres do sertão mineiro. 

::Leia e ouça também: “Para as mulheres pobres a dificuldade é maior de se imaginarem escritoras”, diz pesquisadora::

O Caminho do Sertão ocorre uma vez ao ano, em 2022 será entre os dias 9 e 17 de julho. Os caminhantes são selecionados por meio de um edital, durante esse processo conhecerão o candidato de forma profunda e compreenderão as relações afetivas que foram e poderão ser desenvolvidas com a obra de Guimarães Rosa e o território. 

Esse processo é feito em duas etapas, em que na primeira é respondido um formulário e a segunda etapa é a leitura das Cartas de Intenções de Afeto, é uma carta escrita a próprio punho pelo interessado e nos enviado via correios. Após um denso processo de leitura das cartas e do formulário a equipe organizadora seleciona os candidatos para a edição anual. 

“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Guimarães Rosa 

Edição: Douglas Matos

O MODERNISMO A CONTRAPELO – EM EXPOSIÇÃO E LIVRO

Maio 22, 2022

“Era uma vez o moderno”, aberta até 29/05 em SP, é oportunidade única de apreciar obras icônicas e centenas de documentos inéditos. Para curadores, exame de cartas e jornais da época permitiu tecer narrativa viva que dá voz aos protagonistas

OUTRASPALAVRAS

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Por Maurício Ayer

Maio/2022 –

Tropical (1917), de Anita Malfatti

Por Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner em entrevista a Maurício Ayer

Até o dia 29 de maio, quem estiver em São Paulo tem a oportunidade de apreciar um conjunto muito representativo de obras artísticas e documentos relativos ao modernismo brasileiro, em grande parte mostrado pela primeira vez ao público em geral. O material foi estudado, selecionado e organizado pelos professores e pesquisadores Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner, que concedem entrevista exclusiva, publicada em vídeo a seguir.

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Além de pinturas, esculturas e desenhos, a exposição apresenta cartas originais manuscritas por Mário de Andrade, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Carlos Drummond de Andrade entre muitos outros protagonistas desse período crucial da história cultural brasileira, além de jornais da época, primeiras edições de livros, artes de capas e objetos pessoais. Grande parte desse material até agora só havia sido visto por pesquisadores especializados que, em seu trabalho, visitaram o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), que reúne a maior documentação do modernismo brasileiro.

Documentos originais, na exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944]

Trata-se da exposição “Era uma vez o moderno”, que ocupa todo um andar do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. A entrada é gratuita. O projeto inclui ainda a edição de um livro pelo SESI-SP, ilustrado com dezenas de imagens, cujo título é o mesmo da exposição, mas que é muito mais do que um catálogo. É uma obra historiográfica de referência, que constrói uma narrativa original do modernismo nas artes brasileiras, a partir do exame de farta documentação, com destaque para os jornais de época e a mencionada correspondência. O principal manancial de informações e objetos analisados, degustados e digeridos através da exposição e do livro foi o acervo de Mário de Andrade, que encontra-se sob a guarda do IEB/USP.

Capa do livro Era uma vez o moderno (SESI-SP Edições)

Um fato que se evidencia na exposição e no livro é que os curadores/autores procuraram deixar que os personagens dessa história falassem por si, sem impor uma tese ou narrativa prévia que fosse imposta à força sobre os fatos. Fabrício Reiner destaca que “[a gente] queria justamente mostrar para o público que existia alguma coisa que era construída na medida em que as coisas iam acontecendo. Essas pessoas, eles são personagens mas eles são históricos, eles têm a sua função e agem de acordo com o que está acontecendo naquele momento”. É certamente essa sensação de acompanhar uma história viva, feita de decisões, acertos e erros, de realizações e fracassos, no calor dos momentos e na frieza das decepções, que temos ao ler o livro.

Importante esclarecer que, embora evidentemente aconteça no contexto das celebrações do centenário da Semana de 1922, “não é”, segundo Luiz Armando Bagolin, “uma narrativa sobre a Semana de Arte Moderna. O que a gente entende é que a Semana é um episódio entre muitos outros antes de [19]22 e outros após 22. Reunidos, eles são tratados pela história pela oficial no singular, como a história do modernismo brasileiro. Então, através dessa pesquisa, a gente tentou mostrar várias coisas, e uma delas foi que não houve um só modernismo, mas um conjunto de iniciativas, umas bem-sucedidas, outras menos. E a Semana foi uma dessas iniciativas”. Bagolin explica que a Semana foi bem-sucedida do ponto de vista não do que foi apresentado – as obras propriamente apresentadas eram pouco radicais do ponto de vista do adjetivo moderno ou modernista –, mas como um evento performático coletivo (que não foi o primeiro, foi o segundo: o primeiro aconteceu um ano antes, o almoço no Trianon, descrito em detalhes no livro), unindo várias linguagens – artes plásticas, literatura, música, estética – e que teve um impacto do ponto de vista do que chamaríamos hoje de “marketing”.

Outro ponto abordado nesta entrevista foi o papel central que teve Anita Malfatti, que muitas vezes é tratada como uma “precursora”, mas de importância secundária. Fabrício Reiner, na contracorrente desta opinião, afirma que “Anita [Malfatti] é a artista principal desse modernismo brasileiro, não só pelo seu pioneirismo mas porque ela passou por diversas vanguardas e as incorporou de maneira muito marcante”. Eles destacam ainda que, na própria Semana de 22, das 100 obras expostas, 25 eram de autoria de Anita.

Segundo os curadores, o recorte temporal estipulado é arbitrário e explicita mais a datação dos materiais que deram substância à narrativa exposta do que a uma proposta de delimitação de um começo e um fim para o modernismo brasileiro. O início escolhido, 1910, diz respeito à exposição da artista alemã Emma Voss, fato pouco conhecido do público e que já começa a deslocar nossas impressões estabelecidas sobre o período.

Manuscritos expostos em Era Uma Vez o Moderno [1910-1944]

E a conclusão em 1944 se deve à data do mais tardio documento incluído na pesquisa, uma carta escrita (mas nunca enviada) por Mário de Andrade para Manuel Bandeira, em que ele manifesta um profundo cansaço, uma melancolia que o incapacitava a produzir – e ele conclamava o amigo a fazer “poemas de circunstância”, de intervenção e sátira política, para remexer ainda que um pouco a sociedade brasileira, então sob a ditadura do Estado Novo, no depressivo contexto da Segunda Guerra Mundial. “Você, que devia [escrever estes poemas], Manu, e sinto saudades de você. Você, não será a primeira vez que faz ‘poemas de circunstância’ e que delícias já fez. Destrua, m’ermão, envenene, pra eu não me sentir tão solitário de companheiros de geração. Aguenta este namoro e me queira sempre bem”, dizia a carta de Mário que Manuel Bandeira nunca leu.

Para desvendar algumas dessas histórias, Outras Palavras entrevistou os curadores da exposição e autores do livro. Luiz Armando Bagolin é filósofo, docente e pesquisador do IEB/USP, foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade (a principal biblioteca municipal de São Paulo) de 2013 a 2016, e é pesquisador e curador de artes visuais; Fabrício Reiner é graduado em história e mestre em filosofia pela USP, foi supervisor de planejamento da Biblioteca Mário de Andrade e participou de diversos projetos acadêmicos junto ao IEB/USP, onde desenvolveu pesquisas na área de história das artes. A conversa aconteceu na (gélida) noite de 19 de maio de 2022 e foi transmitida ao vivo pelas redes sociais.

A entrevista

Esta entrevista foi realizada como parte do projeto Ateliê da Palavra – Expresso 22-22, concebido por Maurício Ayer e Patrícia Ceschi e produzido pela Aymberê Produções Artísticas, em parceria com Outras Palavras. O projeto foi contemplado pelo ProAC editais 21/2021 do Governo do Estado de São Paulo.

______________

Exposição Era uma vez o moderno  

Período expositivo: de 10 de dezembro de 2021 a 29 de maio de 2022.   

Horários: de quarta a sexta, das 12h às 20h, e sábado e domingo, das 11h às 20h.   

Local: Galeria de Arte do Centro Cultural Fiesp.  

Endereço: Avenida Paulista, 1313 (em frente ao Metrô Trianon-Masp)   

Entrada gratuita.   

Agendamento de visitas em: www.sesisp.org.br/eventos   

Agendamentos escolares e de grupos: ccfagendamentos@sesisp.org.br   

Mais informações: www.centroculturalfiesp.com.br  

Livro Era uma vez o moderno

Autores: Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner

Onde comprar: na livraria do Centro Cultural Fiesp ou no site da SESI-SP Edições

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MAURÍCIO AYER