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Aldir Blanc: “Estamos vivendo uma ditadura com luvas de pelica”

Setembro 17, 2017

Um militante desavisado do MBL depara-se com uma letra de Aldir Blanc. Em rala-rala é que se educa a molhadinha/ se tu não peca, meu bem, cai a peteca, neném/ vira polícia da xereca da vizinha, canta a portuguesa Maria João no álbum recém-lançado A Poesia de Aldir Blanc (Sesc), para horror do jovem conservador empenhado na causa da sigla que esconde por trás de si o pícaro Movimento Brasil “Livre”.

Por Pedro Alexandre Sanches

Entre a santa e a meretriz/ só muda a forma com que as duas se arreganha/ eu só me queixo se criar teia de aranha, prossegue Maria João na feminina O Coco do Coco, lançada originalmente em 1996 pela paraense Leila Pinheiro. E lá se vai para a fogueira mais uma obra artística atentatória da “moral e dos bons costumes”.

Não é só O Coco do Coco. Letrista visado pela censura da ditadura anterior, o carioca Aldir teria parte substancial de uma obra colossal destroçada pelos dentes arreganhados e o ouvido que tudo escuta do neofascismo popular brasileiro. Vale para as ásperas parcerias mais recentes com o também carioca Guinga, como O Coco do Coco, e para a série histórica de arranhões musicais dos anos 1970 e 1980 em dupla com o mineiro João Bosco.

É bem possível que o jovem do MBL visse macumba e feitiçaria em versos de Bosco & Blanc, como levou as minhas cuecas pro bruxo rezar/ coou meu café na calça pra me segurar (de Incompatibilidade de Gênios, 1976) ou costurou na boca do sapo o resto de angu/ a sobra do prato que o pato deixou/ depois deu de rir feito Exu Caveira/ marido infiel vai levar rasteira (de Boca de Sapo, de 1979), ambas interpretadas na origem pela mãe preta de todos nós, Clementina de Jesus.

“Estamos vivendo uma ditadura com luvas de pelica, fedendo a fezes”, afirma Aldir sobre o episódio da mostra Queermuseu, promovida e cancelada sob pressão pelo Santander Cultural em Porto Alegre (RS), terra da maior intérprete do imaginário de Blanc & Bosco, Elis Regina.

“Coco do Coco inspira-se na belíssima tradição picaresca de músicas nordestinas, baiões, cordel, que tratam o sexo de forma escrachada, e verdadeira”, ensina o mestre das palavras. “Algumas feministas politicamente corretas sentaram o pau, e o fizeram porque se arvoram em saber uma porção de merdas, mas não conhecem picas de cultura popular”, provoca, destemido em tocar pontos vulneráveis.

Hoje com 71 anos, Aldir vive entre a reclusão e altos papos via e-mail, ou entre o silêncio e o grito, como dizia a letra de O Chefão. Cantada em 1974 pela paulistana Marlene, a balada noir O Chefão foi retomada em 2014 pela mineira Maria Alcina, outra intérprete inaugural de Bosco & Blanc, com as antológicas Kid Cavaquinho e Beguine Dodói (1974).

Meses antes da reeleição de Dilma Rousseff, Alcina cantava a necessidade de manter as janelas sempre bem fechadas/ contra o perigo de um golpe/ contra o perigo de um golpe de ar. Pode ser mera simbologia, mas o autor de O Chefão ataca frontalmente temas e termos tornados tabus na oficialidade impopular brasileira de 2017. “Sociólogos, historiadores, professores e artistas (como o imenso Raduan Nassar) mais importantes do que eu já escreveram que estamos num estado de exceção”, afirma.

“Aqui ficaram todos os torturadores soltinhos da silva, conspirando. O golpe voltou, um golpe constitucional. Isso existe. A Constituição pode abrir frestas para vários tipos de golpes, e só babacas dizem ‘se está na Constituição, não é golpe’. Vão se fifar, burros – ou coniventes”, escreve, em pena ferina que transforma Michel Temer em “Temeroso” e “Temereca” e Janaína Paschoal em “Dra. Janaraca”.

“O que vi de palhaço que pegava jabá, corrupto até a alma, considerando julgamentos de pedaladas ‘técnicas e corretas’, sem levar em consideração que Tribunardis levava bola quando parlamentável, Anastasia é corrupto, Cunha já está com a mão na grade, sem falar da Dra. Janaraca. Pelo amor dos meus netinhos, sejam golpistas menos cínicos e safados.”

Jabaculê, jargão usado para designar o “mensalão” com que gravadoras suborna(va)m meios de comunicação para veicular este ou aquele artista, é vocabulário presente desde sempre no léxico de Aldir. Jabaculê/ vixe, espetacular/ assunto assim às vez é mió calar, cantou Maria Alcina em Foi-Se o Que Era Doce, também em 1974, entre referências culinárias a inhame, bobó, frango assado, cuscuz e maracujá.

A verve faminta de Blanc sempre privilegiou os diversos prazeres da carne, mesmo na voz solene de Elis. Os boias-frias quando tomam umas birita espantando a tristeza/ sonham com bife à cavalo, batata frita/ e a sobremesa é goiabada cascão com muito queijo, gravou Elis em O Rancho da Goiabada (1978), relicário assombroso de um Brasil que viria a resplandecer após três décadas, sob as caravanas de Luiz Inácio Lula da Silva.

São pais de santo, paus de arara, são passistas/ são flagelados, são pingentes, balconistas, desfilava o rancho, quando o comandante plantonista deste bordel dos Estados Unidos era Ernesto Geisel. “Dizem que ninguém é profeta em sua própria terra, mas João e eu fomos.
Veja o caso de De Frente pro Crime”, diz Aldir, citando o samba lançado pela baiana Simone em 1974, o mesmo ano-susto em que Elis apresentou Dois pra Lá, Dois pra Cá (e a ponta de um torturante/ Band-aid no calcanhar) e O Mestre-Sala dos Mares.

“Mais de 40 anos depois, De Frente pro Crime ainda retrata o Rio. Sabe o que parte da crítica dizia desses sambas? ‘João Bosco e Aldir Blanc, com suas habituais obsessões com uma violência inexistente’. Gostaria de soltar todos esses críticos no Jacarezinho para uma injeção de Brasil na bunda.”

Previsto para outubro, o próximo álbum de João Bosco trará uma nova parceria da dupla, retomada em 2009, após duas décadas de afastamento. Duro na Queda trata de uma Janaína que certamente não é a Paschoal: Eu não sei viver sem minha Janaína/ mulata de olhos claros, vale o mundo/ no morro, é meu barraco com piscina.

“Começa com um clima sombrio dos sambas de antes e se abre, como se a Esperança Equilibrista se recusasse a cair”, define Aldir, em referência cruzada ao hino de anistia O Bêbado e a Equilibrista (1979), ápice do trio Blanc-Elis-Bosco.

Tal qual as bijuterias banhadas a ouro dos anos 1970, Duro na Queda encerra muito do mistério poético do ex-médico psiquiatra Aldir Blanc. Nascido no Estácio de Ismael Silva e Luiz Melodia e criado na Vila Isabel de Noel Rosa e Martinho da Vila, ele transpira sensibilidade suburbana a cada verso.

“O que mais me revolta é que esse Brasil sempre esteve na cara de todos, só que aparece maquiado até hoje”, autodefine-se. “Temereca é o maior criminoso e entreguista do País. Sou contra a pena de morte, mas, quando vejo o que esse merda está fazendo, fico em dúvida se não seria melhor julgá-lo com rigor, direito amplo de defesa, mas com fuzilamento incluído na pena. Institucionalmente, Temeroso é muito pior que Marcola e Fernandinho Beira-Mar juntos.”

Duro na queda, Aldir também visita a ternura. Ela aparece quando fala das cantoras que o têm interpretado, inclusive Clara Nunes, Maysa, Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, Nana Caymmi e Dorina (que em 2016 lançou CD devotado a ele).
“Essa relação com as cantoras é uma das grandes alegrias da minha vida profissional. Se as lindas homenagens quase simultâneas de Dorina, Maria João e Mariana Baltar (ainda inédita) não me matarem, nem preciso fazer novos exames. Por trás da pose, sou um tremendo chorão. Às vezes, um neto telefona de outro estado e minha mulher tem de tirar o telefone da minha mão e dizer: ‘Peraí um pouco! Deixa ele acabar de chorar!’ E é assim também com música.”

Há que se acrescentar, aí, a literatura: por meio de financiamento coletivo, Aldir acaba de bater a meta de 28 mil reais para completar a coleção Aldir 70, de crônicas reunidas em cinco volumes.

Por ora, Aldir prossegue incólume ao moralismo de fachada engarrafado na pátria de Donald Trump e encampado pela juventude MBL. Ainda que a sanha venha a colhê-lo, gritarão em silêncio os versos de Querelas do Brasil, eternizada por Elis em 1978 e resistente, até hoje, como um dos nossos mais cruéis autorretratos: O Brasil nunca foi ao Brazil/ (…) o Brazil não merece o Brasil/ o Brazil tá matando o Brasil.
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Biografia revela complexidade do ‘rapaz latino-americano’ Belchior

Setembro 3, 2017

 Um dos últimos registros fotógraficos de Belchior ainda vivo 

O jornalista Jotabê Medeiros reverencia o artista num livro escrito entre a vida e a morte do pensador cearense.çpçEscolher Belchior (1946-2017) como tema de uma biografia não é tarefa fácil, pois o artista de voz fanhosa e obra literária tem trajetória de significado singular na canção brasileira. E Jotabê Medeiros, que estreara como escritor no livro O Bisbilhoteiro das Galáxias (Lazuli, 2015), no qual mostra os bastidores de entrevistas com ídolos da música, aceitou o desafio.

Quatro meses depois da morte do cantor, chega às livrarias Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano, a biografia, de título inevitável, assinada pelo jornalista, crítico musical e colaborador de CartaCapital.

Se a história da vida e da música de Belchior estava até hoje circunscrita a uma quantidade escassa de comentários encontrados em uma série pequena de livros sobre o panorama da música brasileira, que em sua grande maioria o restringem a um compositor regional, oriundo do agrupamento de artistas que ficou conhecido no eixo Rio-São Paulo, a partir da década de 1970, como Pessoal do Ceará, sempre associado ao nome de Elis Regina (que o consagrou nacionalmente ao gravar Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, em 1976), o lançamento do livro ocupa de modo inédito essa importante lacuna na produção bibliográfica do País.

Nesse sentido, a biografia de Medeiros já teria mérito apenas por abrir caminho para a compreensão de Belchior como cancionista merecedor de ser melhor e mais bem discutido, de ser ouvido. Até então, o universo particular e o denso cancioneiro do artista vinham sendo abordados no campo acadêmico, em teses que analisam características da produção de Belchior.

Não bastasse essa primazia, Medeiros mescla uma narração primorosa e agradável de ler entre o tom culto e o coloquial (estrutura talvez exigida pelo tipo de trabalho do protagonista) e vai contando numa temporalidade quase integralmente cronológica, após um flashback inicial, os feitos da pessoa e do artista Belchior (da infância até a morte, com capítulos especiais dedicados ao autoexílio), os de homem comum e outros que adquirem inflexões épicas.

Os fatos específicos das várias fases da vida e da obra do compositor cearense são apresentados num assemblage que parte do perfil biográfico (iniciado com Belchior ainda vivo) e chega ao ensaio biográfico, com ares por vezes de biografia romanceada.

Em muitos momentos do texto, a trajetória de Belchior, entrelaçada à de pessoas que conviveram com ele (familiares, professores, colegas de convento, ex-esposa, ex-namoradas, filhos, parceiros, amigos e até mesmo o “analista amigo meu”), é descrita com uma intervenção interpretativa e crítica do autor, bem como com algumas liberdades de invenção próprias do romance, o que me faz pensar na máxima “todo grande artista merece um grande biógrafo”. É certo que o autor faz esse trabalho em convergência com o quilate de Belchior.

Um dos primeiros pontos de destaque é a capa do livro, assinada por Elohim Barros e Renata Mein, com foto de Silvio Corrêa, com um projeto gráfico que dialoga tanto com a emblemática capa do disco homônimo de estreia de Elvis Presley, de 1956, em que aparece cantando e tocando energicamente seu violão, quanto com o álbum London Calling da banda The Clash, que em 1979 homenageou o rei do rock.

Diferentemente de Elvis, Paul Simonon está prestes a destruir seu contrabaixo. Já na imagem do livro, Belchior aparece sem instrumento algum, fotografado em 1983, com seu famoso bigode, numa posição em que olha delicadamente para a direita, não voltado para o espectador.

A intertextualidade visual incitada na capa do livro aponta para duas características marcantes na identidade musical de Belchior e retratadas no livro: a sensualidade, tal qual Elvis; e a rebeldia, à maneira de Simonon.

Paradoxalmente à imagem instituída na canção-identidade que singularizou o artista na história da música brasileira, Belchior foi muitos, muito além de apenas um rapaz.

A própria quarta capa do livro já anuncia aos leitores que ali dentro ele vai encontrar um Belchior múltiplo e complexo: “Um erudito de disciplina monástica, um hippie vivendo num prédio em construção, um poeta fã de João Cabral e Bob Dylan, um músico experimental, um incorrigível Don Juan, um pintor de retratos, um pop star, um pai de família, um desaparecido”.

Todas essas personas são desvendadas nos 15 capítulos. Em sua maioria curtos, com feição de artigo jornalístico, ao mesmo tempo que guardam uma interdependência no formato livro, poderiam ser lidos autonomamente.

Os títulos ora citam trechos de músicas de Belchior (“O que pesa no norte cai no sul”, “Que esse canto torto corte a carne de vocês”), ora revelam a posição crítica do autor com relação à história do biografado (“Aquele amistoso pessoal do Ceará”, “Bangalôs, charqueadas e acampamentos”).

Diferencial e charme da biografia é o desempenho lúcido do escritor na análise de discos fundamentais de Belchior, como Mote e Glosa (1974), Alucinação (1976) e Coração Selvagem (1977), com um capítulo cada um: “A obra-prima que te fez passar fome”, “Amar e mudar as coisas me interessa mais” e “Vida, pisa devagar”.

Em “A verdade está no vinho”, o autor analisa conjuntamente os álbuns Todos os Sentidos (1978), Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo (1979), Objeto Direto (1980) e Paraíso (1982). O leitor vai se deliciar com as curiosidades do contexto de produção de canções célebres.

Algumas das mais interessantes são a gênese do mote “eu sou apenas um rapaz latino-americano” e o surgimento da parceria entre Belchior e Fagner na canção lírica praieira Mucuripe (1972), apresentada a Roberto Carlos, que a gravaria em 1975.

Medeiros também relata como uma paixão por uma mulher originou o disco de intérprete do profícuo compositor: o CD praticamente desconhecido Vício Elegante (1996), onde registrou músicas de Caetano, Chico, Roberto e Erasmo Carlos.

Um dos trechos mais significativos dá-se quando o autor desvela o lado “fingidor” de Belchior, mostrando que muito da narrativa reproduzida até hoje sobre o artista faz parte de uma mitologia criada pelo compositor sobralense como, por exemplo, a existência do grandioso nome “Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes”, o fato de vir de uma família de 23 irmãos e as características de seus ascendentes (a mãe ter cantado em coro de Igreja, o pai ter sido bodegueiro e juiz).

Belchior deixou claro de modo inequívoco ao público o investimento em um exercício de figuração, ou seja, o trabalho de construção da imagem de si no campo da música brasileira, que envolve constantemente a preocupação com a filiação, como prova trecho da canção Rock Romance de um Robô Goliardo (1984): Mas não confiem em mim: eu não existo!/ sou apenas o personagem que diz isto/ vou contar para vocês a vida que eu inventei pra mim.

O livro faz um sumário da identidade musical de Belchior, aguçando o olhar com relação à sua posição no mapa da canção nacional, ao mesmo tempo que radiografa a história da moderna música cearense e da chegada ao “Sul Maravilha” dessa geração (de Ednardo, Fagner, Rodger Rogério, Téti, Fausto Nilo, Jorge Mello e tantos outros).

Além disso, como ensinam o filósofo russo Bakhtin e o teórico francês Maingueneau, a leitura evidencia que por trás da produção de Belchior (o “autor-criador”, que emerge da obra propriamente dita) existe sobretudo um homem (o “autor-pessoa”, sujeito empírico, elemento social da vida).

A biografia do artista cearense comprova assim que a música de Belchior só pode ser compreendida na imbricação necessária à sua trajetória de vida, pois, como ele mesmo cantou no clássico Como Nossos Pais, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

Josely Teixeira Carlos, cearense, é professora de linguística, pesquisadora da USP e autora da tese Fosse um Chico, um Gil, um Caetano – Uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior.

Ubu Rei: o usurpador real como metáfora de Temer

Junho 15, 2017

Teatro Ubu Rei

Peça com Marco Nanini e Josi Campos serve de exemplo para o país que tem um governante cruel no poder.

por Eduardo Nunomura

Um rei cruel, ganancioso e covarde que conquista brutalmente o poder e não tem escrúpulos para governar o povo de maneira totalitária. Pode-se dizer que em todas as épocas há um rei Ubu, e o Brasil de hoje parece a síntese perfeita desse enredo. Na história, Pai Ubu, interpretado por Marco Nanini, assume o trono ao assassinar o rei Venceslau da Polônia e passa a matar e roubar a população para se perpetuar no poder.

Em seguida, o usurpador envolve-se numa guerra com a Rússia. Enquanto isso, sua mulher, Mãe Ubu, interpretada por Josi Campos, igualmente sórdida e vil, tenta roubar o tesouro da Polônia, mas enfrenta a resistência do príncipe herdeiro, Bugrelau, que lidera uma revolta popular.

A realidade cênica implícita pode passar despercebida pelo público mais desatento, desavisado ou desinteressado do espetáculo Ubu Rei, em cartaz até 25 de junho no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Como, por sinal, reagem muitos brasileiros diante do golpe orquestrado por Pai Temer, digo, Pai Ubu. E novamente a montagem de Daniel Herz ajuda a refletir sobre a permanência de um reinado tirânico.

O personagem de Nanini, um déspota mentiroso, despudorado e assassino, é a clássica figura do anti-herói. Faltam a Pai Ubu os atributos morais de um líder nato. Mas, mesmo assim, não é de todo impossível que parte dos súditos o queira nesse posto justamente pela ausência dessas qualidades.

Ubu Rei, com seus personagens desbocados e despudorados, escandalizou a Paris do fim do século XIX. O texto de Alfred Jarry, na época com 23 anos, foi mal recebido por um público até então acostumado a montagens clássicas e com personagens mais previsíveis. A peça tragicômica serviu de inspiração para diferentes movimentos da dramaturgia moderna, como o surrealismo, o dadaísmo e o Teatro do Absurdo.

 Foi encenada por diversas companhias do mundo todo, como tentativa de dar uma resposta às crescentes ondas de brutalidade e turbulência social dos séculos XX e XXI. A atual montagem brasileira é favorecida pela rica execução da trilha sonora ao vivo pelos integrantes da Cia Atores de Laura, que dão uma vivacidade extra à narrativa de Jarry.

O existencial de Memórias de Adriano e o teatrão de Tudo no seu Tempo

Fevereiro 13, 2016

Memórias-de-Adriano

O existencialismo em ‘Memórias de Adriano’ e o “teatrão” dos anos 1960 em ‘Tudo no seu Tempo’

por Alvaro Machado

Desde a publicação, 1951, o romanceMemórias de Adriano  conheceu várias safras de popularidade. A autora belga Marguerite Yourcenar (1903-87) foi a primeira mulher alçada à Academia Francesa.

Assim como na narrativa da decadência do imperador romano após a morte do amado, o catamita Antínoo para o qual conseguiu aura de semideus, Yourcenar abordou com frequência a homossexualidade masculina.

Diz-se que viveu à larga, com paixões por homens e mulheres e boêmia entre Paris, Atenas e Nova York, onde também ensinou. Legou fundação para a preservação de vida selvagem.

O existencialismo inspirado de Adrianomereceu boa adaptação de Thereza Falcão e interpretação em profundidade de Luciano Chirolli, 54 anos, talvez o mais memorável ator de sua geração.

Suas escolhas desenham leque de coerência, com pontos altos em Büchner, Lorca, Dürrenmatt, Fassbinder e parcerias com Maria Alice Vergueiro, entre elas As Velhas, pela qual Chiurolli recebeu prêmio Shell de melhor ator, e Why the Horse?, ainda a ser apresentada em cidades de todo o País.

Memórias de Adriano. Direção: Inez Viana. Teatro Jardel Filho (CCSP), até 28 fev. No Teatro Sesc Copacabana a partir de 14 de março.

A débâcle de Adriano parece perturbar o intérprete a ponto de causar tropeços de fala, que conferem, porém, ainda mais pungência ao monólogo. O texto perturbam também as plateias, pois Yourcenar conferiu universalidade incontestável ao drama de maturidade do poderoso romano, a ultrapassar fronteiras de classe e de gênero sexual.

O monólogo ganhou, ainda, uma espécie de resposta musical contínua, nos instrumentos eletrônicos tocados ao vivo pelo músico Marcello H. Já a moldura cenográfica contemporânea simples e eficaz, com centenas de  radiografias médicas a compor painel de luz, tem concepção de Aurora dos Campos.

Asas à imaginação

Tudo no seu tempo_GustavoTrestini_e_CynthiaFalabella_foto Ligia Jardim.jpg“E se pudéssemos revisar e mudar nossas vidas?” (Ligia Jardim)

O dramaturgo inglês Alan Ayckbourn, 76 anos, é fenômeno de produção teatral, com 78 peças montadas até hoje, e por isso campeão mundial de encenações, uma vez que a maneira como trata seus temas é apreciada do Japão à Patagônia. Ao deixar-nos, o cineasta francês Alain Resnais (1922-2014) preparava o quarto filme baseado em peça do xará londrino.

Herdeiro do teatro de boulevard da mais sofisticada escrita, com a chamada carpintaria teatral em habilidade máxima, Ayckbourn imaginou, em 1993, quiproquó a envolver inesperado túnel do tempo e um sexteto urbano transportado entre os anos 1986 e 2036 pela mágica de uma passagem oculta entre quartos de um hotel.

Comunicating Doors compreende anacronismos também em nível de produção, um “teatrão” como os dos anos 1960, a incluir intervalo e o pacto em que o espectador deve aceitar previamente convenções e ilusões do palco italiano, burguês, e tornar-se cúmplice dos intérpretes.

Tudo no seu tempo. Direção: Eduardo Muniz. Teatro Jaraguá (SP), até 20 de março.

Evolui do inseguro ao tocante o registro dado a Cynthia Falabella para a prostituta ingênua, centro da questão embutida neste tablado: “E se pudéssemos revisar e mudar nossas vidas?”.

Na direção, o também ator carioca Eduardo Muniz, 32 anos, revela desenvoltura com a troca alucinada de quadros de quartos de hotel e épocas diversas, mesmo com o budgetclaramente limitado de produção.

Ao estagiar ao lado de sir Ayckbourn, em Scarborough, no litoral da Inglaterra, Muniz tornou-se aluno amigo do autor e foi convidado, em 2013, para hospedagem em sua casa e a estreia local de Chegadas e Partidas, a peça que Resnais iria filmar. Muniz traduziu vinte textos do dramaturgo e atuou ou dirigiu em quatro deles.

A terra acolhe o enraizado com a luta humana Pete Seeger

Janeiro 29, 2014

http://www.cartacapital.com.br/cultura/lidera-a-gente-ai-pete-4630.html/pete/image_preview

Da Carta Capital

“Lidera a gente aí, Pete.” Foi assim que Bruce Springsteen pediu a Pete Seeger, na véspera da posse de Barack Obama, em uma Washington D.C. gélida, para iniciar a rendição, nas escadarias do monumento dedicado a Abraham Lincoln, de This Land is Your Land, o clássico do amigo, mentor e parceiro de aventuras Woody Guthrie, padrinho honorário da folk music do lado de cá do Atlântico. Guthrie tinha 88 anos e aquele momento foi, ironicamente, o pináculo e a derradeira celebração da combalida esquerda norte-americana. Desta vez, o artista marcado na lista negra do McCarthismo, namorado assumido do comunismo na primeira metade do século passado, estava dentro da Casa Branca. Em 1969, trinta anos antes, ele gritara, depois de entoar Give Peace a Chance com uma multidão de ativistas, “O senhor está nos ouvindo, presidente Nixon?”

Esta terra é sua/esta terra é minha, anunciava Guthrie em 1945. E seguia: De um lado daquela placa/está escrito: propriedade privada/ mas do outro/ não há nada escrito/ esta terra é minha e sua. Seeger e Springsteen entendiam o valor simbólico do encerramento da celebração oficial da eleição do primeiro presidente negro com a letra subversiva. Seeger gostava de contar a história de que a música fora composta em 1940, mas somente gravada em 1945, quando, com melodia de hino batista, já estava na cabeça e no gogó de milhares de norte-americanos. Ele, como Guthrie, jamais dependeu da indústria da música para encontrar seu público.

Apesar de ter gravado uma centena de discos, de todos os formatos imagináveis, era partidário do download de músicas gratuitas, dos shows sem custo para quem não podia pagar por suas apresentações e da crença, quiçá ingênua, desenvolvida ainda quando tocada ukulelê em Harvard e militava na Juventude Comunista, de que a música podia sim mudar a vida das pessoas, das comunidades, das nações, do planeta.

A apresentação com Springsteen, que o homenageara três anos antes com o belíssimo álbum We Shall Overcome: The Seeger Sessions, era a afirmação tardia da chegada da esquerda ao poder nos EUA. E a passagem, mais ou menos oficial, do bastão do violão, ou, vá lá, guitarra do povo, de Guthrie para Seeger para Dylan para Springsteen. No show tributo aos 90 anos de Seeger, em um Madison Square Garden apinhado de gente, Springesteen assim apresentou seu amigo mais velho: “Pete Seeger, um arquivo vivo da música popular americana, mas também de nossas consciências, um testamento do poder da música, das canções e da cultura de empurrar a História adiante”.

Três anos depois, chapéu vermelho à cabeça a fim de se proteger como podia do frio antecipado de uma noite gélida de outubro em Nova York, decepcionado com a quebra da promessa do governo democrata de fechamento da base militar de Guantánamo, inconformado com a contínua ocupação do Afeganistão, enojado por ter de pagar de seu bolso pelo resgate do viciado sistema financeiro, o avô menestrel avançava novamente o cordão da História e se unia aos jovens do Ocupem Wall Street na praça Zuccotti. Apesar da preocupação da (des)organização do movimento, com os líderes propositadamente não ungidos, incluindo seu neto Tao, temerosos com a vontade do nonagenário de marchar por 30 blocos ao som de We Shall Overcome, de Symphony Space, nas imediações da rua 95, até o limite sul do Central Park, em Columbus Circle. Pois não só o senhor de 92 anos andou uma vez mais pelas ruas de Manhattan com uma multidão repetindo seus versos, como deu uma bengalada – uma das duas que carregou, com orgulho, pela caminhada – com gosto em uma escultura de um elefante, símbolo do Partido Republicano, como repetiu palavras de ordem como “Ninguém vai nos parar/um outro mundo é possível” e “Nós somos os 99%”.

Seeger sempre esteve com a maioria, orgulhoso em viver como um dos 99%. Sua encarnação mais recente, a de defensor e promotor incansável da despoluição do rio Hudson, transformou a economia de Nova York de forma decisiva, abrindo toda uma nova área de turismo para o estado, com a possibilidade do uso das praias fluviais triplicando o valor de mercado das – impossível não registrar a trapaça do destino – propriedades privadas em cidades como Hudson e Beacon.

Em seu discurso para os meninos do Ocupem, Seeger foi direto e extremamente generoso, rompendo com a velha esquerda e abraçando a novidade das ruas, seu palco predileto: “Desconfiem sempre dos líderes absolutos. Minha esperança é a de que este movimento signifique o nascimento de centenas, de milhares de pequenas lideranças”. Esta era, além da oposição à ocupação civil-militar do Iraque, a posição política que mais admirava em Barack Obama: o líder comunitário que mostrava querer, honestamente, tocar em problemas jogados para debaixo do tapete no século ianque, como o aumento da desigualdade social, o descaso pelos alijados do sonho americano, o direito civil das minorias, o ataque desumano aos imigrantes não-documentados.

É possível falar do Seeger antinazista dos anos 30. Do parceiro de Guthrie, Lead Belly e Alan Lomax na redescoberta das raízes da música americana e de seu povo nos anos 40. Do simpatizante destacado do Partido Comunista e articulador da cena folk do Village nova-iorquino na década de 50. Do ativista ferrenho contrário à guerra do Vietnã, condenado a um ano de prisão por “atividades antiamericanas” em 1961, banido pelos canais de TV e criador da música-símbolo da luta pelo direito civil dos negros nos EUA, We Shall Overcome (nós marcharemos/de mãos dadas/ e um dia/sinto no fundo de meu coração/ iremos superar estes tempos), nos 60 e 70. Do compositor que viu na Bíblia a resposta para as injustiças sociais de seu tempo, dando aos Byrds o hit Turn! Turn! Turn! profetizando que as mudanças sociais viriam, independentemente da vontade dos poderosos. Do artista denúncia da revolução conservadora de Reagan e de sua aproximação, na época, com um Springsteen irado pela apropriação insidiosa de seu Born in the USA, uma canção inspirada pelas músicas de protesto progressistas e antiguerra (aqui eles colocam um rifle em minhas mãos/me enviam para um terra estrangeira/para matar asiáticos) do repertório de Seeger, pela campanha de Ronald Reagan. Do homem que enxergou na defesa do meio ambiente, em conjunção com a criação de postos de emprego e de proteção para o pequeno agricultor, nos idos dos 90, uma escapatória ao sufoco neoliberal, e forçou a General Electric a limpar toda a porção americana do Hudson.

Mas, especialmente, para milhares de americanos e admiradores dos quatro cantos do planeta, de cinco gerações diferentes, além das muitas composições e recuperações de cantigas populares poderosas como If I Had a Hammer, Where Have All the Flowers Gone?, Jacob’s Ladder e Oh, Mary, Don’t You Weep em sua inigualável voz de tenor, reverbera, hoje, nestes tempos bicudos, mais do que nunca, a deixa de Springsteen: “Lidera a gente aí, Pete”.

Funarte e Juca Ferreira buscam “descriminalizar” hip-hop em São Paulo

Abril 12, 2013

Da redação de Carta Capital

O promotor de vendas Bruno de Andrade, 18 anos, mora no bairro de Heliópolis, zona sul de São Paulo. Fã de rap, reclama que precisa ir até o centro da cidade para ver os shows que deseja, mesmo quando os grupos têm origem na periferia. “O cara tem que vir da favela para o centro ouvir um rap, e não o contrário, como deveria ser”, diz. Andrade foi uma das pessoas que participaram de um encontro entre o secretário municipal de Cultura de São Paulo, Juca Ferreira, com grupos e artistas ligados ao hip-hop na noite de quarta-feira 10, no Centro Cultural São Paulo. O encontro uniu artistas famosos, como os rappers Rappin Hood e Emicida, além de produtores culturais, professores da rede pública, MCs, DJs e dançarinos. No evento, eles escancaram os problemas deste movimento cultural na cidade.

O gênero vem sendo escanteado pelo poder público desde o conflito no show do Racionais MC`s na Praça da Sé em 2007. Naquele dia, diversas pessoas ficaram feridas em uma ação da polícia durante o show na Virada Cultural. Desde então, o rap tem ficado relegado ao segundo plano nos eventos culturais da cidade.

Juca Ferreira recebe artistas ligados ao hip-hop nesta terça. Foto:

 

No inicio do evento, o secretário disse que existe uma “dificuldade” na relação entre o poder público e o hip-hop em São Paulo. Segundo ele, há uma “quase criminalização” do movimento na cidade. Ferreira prometeu mudanças e a descriminalização do movimento, dizendo que a inclusão de artistas de hip-hop no aniversário da cidade neste ano foi um primeiro passo neste sentido.

No debate de quarta-feira, diversos problemas foram apresentados: a falta de equipamentos culturais na periferia, a concentração de dinheiro na mão de poucos artistas, a baixa qualidade dos professores na rede pública ligados ao gênero, a falta de políticas de gênero envolvendo o hip-hop e diversos outros pontos. “A gente não tem que viver de política pública. O que a gente tinha era que poder fazer tudo de maneira privada, mas a gente ainda não tem como”, disse Rappin Hood no evento.

O encontro foi o segundo da série “Existe diálogo em São Paulo”. O primeiro, realizado em fevereiro, não teve um tema específico e contou com a participação de mais de mil pessoas.

Reivindicações

No evento, o MH2O (Movimento Hip-Hop organizado) entregou uma série de reivindicações à secretaria municipal. Elas foram levantadas em uma reunião convocada pelo produtor Milton Sales no último sábado 6 na Favela do Moinho, no centro da cidade.

Entre as demandas, está a criação de cinco casas de hip-hop, o fomento a estúdios públicos de gravação, a criação de um VAI (Programa de Valorização de Iniciativas Culturais) específico para a área e a formação de um “conselho da favela”, nos moldes do conselho da cidade. A íntegra do documento pode ser acessado clicando aqui. Rodrigo Savazoni, chefe de gabinete de Juca Ferreira, se comprometeu a criar um grupo de trabalho para discutir as demandas apresentadas na reunião.

Juca Ferreira se comprometeu com outras reivindicações apresentadas. Ele concordou com a crítica de que as casas de cultura não aceitam o hip-hop e defendeu que elas deixem de ser administradas pelas subprefeituras e passem a ser centralizadas na secretaria. O secretário municipal também disse que levantará a proposta de criar conselhos locais nessas casas de cultura para aumentar o diálogo com a população.

O promotor de vendas Bruno de Andrade espera que a reunião ajude a ampliar as oportunidades de lazer na periferia e a diminuir a exclusão da música. “Ano passado, não teve vinte shows de rap onde eu moro. E nenhum teve ajuda da prefeitura. Antes o rap era mais criminalizado, mas era mais forte na favela”, diz.