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FREVO CHEGA AOS 112 ANOS COM CELEBRAÇÃO NAS RUAS DO RECIFE E OLINDA

Fevereiro 10, 2019

Ocupação das ruas, resistência e luta das classes menos favorecidas marcam a história do frevo

Patrimônio Imaterial da Humanidade, o frevo reinou no Recife e em Olinda neste sábado (9) em que comemorou 112 anos. Blocos, agremiações e orquestras arrastaram foliões em vários pontos. O ritmo pernambucano por excelência predominou.

No Bairro do Recife, Centro da capital, por exemplo, o Paço do Frevo ficou lotado neste sábado. Um dia antes, recebeu mais de mil visitantes, muitos deles à tarde, quando a programação festiva oficial começou. Já os bairros de São José e de Santo Amaro, na área central, também comemoraram o frevo. 

Em Olinda, mesmo sem a prefeitura ter programado nada de especial, as prévias carnavalescas tomarão conta do Sítio Histórico da cidade durante todo o dia. O Bloco Eu Acho É Pouco foi uma das principais atrações, realizando, pela primeira vez em muitos anos, o baile pré-carnavalesco gratuito, na Praça do Carmo. 

No Paço do Frevo, reduto do ritmo, as comemorações foram comandadas pela Transversal Frevo Orquestra, de César Michiles, filho do compositor Jota Michiles. O público que acompanhou o evento caiu no passo. Jovens, idosos e crianças tomaram o terceiro andar do museu. Antes da orquestra, tiveram apresentações do Recicoral, do Frevo Cinquentão, com o professor Otávio Bastos, e o Vivencias de Dança, do professor Júnior Viegas. 

“Amo o frevo e hoje, no dia dele, não poderia deixar de estar aqui, de homenageá-lo. Defendo que o ritmo seja mais tocado, inclusive durante todo o ano. Sou professor de educação física e costumo usá-lo nas minhas aulas. Além de preencher a alma, ele é um excelente condicionador físico”, defende André Carvalho, um dos mais animados durante as apresentações no Paço do Frevo.

História

O frevo é um manifesto popular marcado pela ocupação das ruas, da resistência e luta das classes menos favorecidas. A trajetória que formou o que hoje conhecemos mais como um ritmo vai além de um estilo musical de compasso binário e andamento rápido. A palavra remete a um movimento social que refletiu, ao longo de mais de um século, a situação social vivida nos centros urbanos do Recife e Olinda. 

Datado em 9 de fevereiro, o aniversário do frevo surgiu após convenção de intelectuais, historiadores e poder público, que reconheceram oficialmente a primeira aparição do frevo no Jornal Pequeno, em 1907. Mesmo assim, o movimento cultural já existia antes da divulgação no jornal.

Segundo a Fundação Joaquim Nabuco, o processo de gestação do frevo remete a muito antes disso. Vem do século 19, sobretudo da década de 80 e 90, período de muitas transformações políticas, econômicas e sociais, com o fim da escravidão, o advento da República e a formação de uma classe trabalhadora.

Com informações do JC Online

A CULTURA DEVE SER CENTRAL EM PROJETO DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL

Setembro 8, 2018

Fachada do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista antes do incêndioO incêndio que destruiu o Museu Nacional fez intensificar o debate sobre como o Brasil cuida de seu patrimônio. Para o secretário nacional de Cultura do PCdoB, Javier Alfaya, é preciso usar o impacto que este episódio trágico causou para dar sequência a uma ação política capaz de mudar a forma como a administração pública encara a Cultura, uma vez que esta deve ser tratada de forma central para o desenvolvimento nacional. 

Por Alessandra Monterastelli e Mariana Serafini

Alfaya, que é mestre em Desenvolvimento e Cidades pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), defende que a Cultura deve ser pensada também como uma questão estratégica para o desenvolvimento nacional. Portanto, precisa receber investimentos proporcionais à importância da pasta. Para isso, o orçamento público deve ser gerido de forma a estabelecer uma distribuição equilibrada entre os ministérios. “O orçamento deve ser executado com organização e planejamento, evitando que certas pastas fiquem na condição de pedintes, como é o caso da Cultura”. 

Para o especialista o país não tem condições de implementar um novo modelo de desenvolvimento se determinadas áreas não estiveram articuladas entre si, neste caso, especificamente, ele cita as pastas de Ciência e Tecnologia, Artes e Cultura, Educação e Comunicações. “Elas devem funcionar sem concorrência e sim de maneira solidária, diferente do que acontece hoje”. 

Neste sentido, a prioridade da nova gestão, que vai assumir o governo em 2019, deve ser ativar a economia de forma a “preservar uma poupança nacional e assim destinar 20% do PIB em investimentos, e em segundo lugar assumir uma nova narrativa que não force mais os ministérios a agirem como concorrentes entre si numa disputa pelo orçamento”. 


Biblioteca Nacional 
 

O Museu Nacional, por exemplo, tinha sua manutenção ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro que passa, atualmente, por um processo de sucateamento sistêmico. Porém, este é um problema crônico que afeta diversos aparelhos públicos de cultura. Alfaya destaca que durante os governos progressistas houveram avanços importantes com a intenção de sanar esta deficiência, mas ainda assim não foram suficientes. 

Em 2009, por exemplo, foi criado o IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura. Este é o órgão responsável agora por desenvolver e aplicar a Política Nacional de Museus, cujo objetivo é preservar, melhorar os serviços e ampliar o setor. 

“O pedido de socorro era antigo”

O acontecimento desastroso e as consequências desse episódio que ficará marcado na nossa memória cultural é a expressão de um processo que se arrasta a décadas, lembra Javier. O governo de Temer, o governo da destruição, de fato tem a maior responsabilidade; mas é um processo que se arrasta há décadas. “A UFRJ pediu verba para resolver a situação crítica, e foi feito um levantamento de inúmeras matérias nos últimos anos sobre a situação do Museu, sobre a luta da Universidade Federal do rio, dos pesquisadores, funcionárias e funcionários. Chegaram a fazer vaquinha digital para combater a presença dos cupins na madeira de um prédio do século 19”, cita, para ilustrar a situação degradante vivida pela instituição.

“A madeira está muito presente na estrutura desses prédios, usada junto com a argamassa; os pisos também eram de madeira”, conta Javier, arquiteto de formação. Essa estrutura somada com o material altamente inflamável, como papéis e o formol usado para a preservação de matéria orgânica exposta, causou a tragédia. Com todo o seu material irrecuperável, o Museu era uma mescla de universos.

O grito por socorro pra salvar o museu já era antigo: o desastre era previsível, e foi a prova do descaso atual. Somam-se ainda elementos históricos: “o museu não chegou nessa situação de vulnerabilidade em poucos meses nem em dois anos, foi também um acumulo de problemas de anos anteriores”.

“Nós estamos falando de um edifício de 200 anos atrás. Ele precisava de cuidados muito especiais, de manutenção continua”, relembra Javier. Ele explica que o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional são uma tentativa da sociedade brasileira, através do Estado, de concentrar a simbologia nacional. “Essas instituições guardam a história social, política, natural e artística do país: essa coleção de referências compõem a história do Brasil, assim como mostram objetos simbólicos da de outros países”, reitera. Esses museus tentam mostrar, de maneira organizada, boa parte da história brasileira e o que constitui a identidade do país.

A Biblioteca Nacional também carece de cuidados. Nos últimos anos, a fachada do prédio foi reformada porque corria risco de cair. Do lado de dentro, funcionários relatam que o principal problema é a questão elétrica, que não pode ser expandida. Em 2015, um incêndio de grandes proporções tomou o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. O trabalho de recuperação custará ao todo 77 milhões de reais, com dinheiro público e privado, sendo que 22,1 milhões de reais já foram gastos nas primeiras e segundas fases da obra, para a restauração da fachada e do teto, segundo o G1.

Em 1978, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) também foi atingido por um incêndio. As chamas se espalharam pelos três andares do pavilhão de exposição e queimaram quase todo o acervo do museu, incluindo obras de Picasso, Salvador Dalí, Matisse, Portinari e Di Cavalcanti, entre outras. Grande parte das obras do grande pintor uruguaio modernista Torres Garcia foram destruídas. nesta ocasião, o prédio era de concreto, o que preservou sua estrutura.

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro 

As causas do fogo não foram esclarecidas, mas as investigações apontaram que uma faísca causada por curto-circuito em meio a instalações elétricas em mau estado foi a responsável pelo desastre. Na época, o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) se manifestou dizendo que o incêndio representava “apenas uma das manifestações concretas do processo de negação e abandono da cultura brasileira”. O Museu só reabriu em 1990. Mas, em março deste ano, anunciou a intenção de vender uma obra para a criação de um fundo patrimonial, uma maneira de ajudar a equilibras as contas. 

Se não é incêndio, é chuva. Telhados que caem, água que danifica documentos ou que destrói a tela das pinturas, esculturas que oxidam devido a exposição prolongada. “É a tragédia da falta de manutenção, do trato equivocado, da falta de preparo técnico dos ambientes. Esse é um problema antigo e estratégico a ser resolvido na área da cultura. Museus e casas de cultura não são apenas depósitos de peças para serem mostradas, mas lugares de pesquisa acadêmica e cientifica, de desenvolvimento artístico e atividades pedagógicas”, argumenta Javier; são instituições vivas.

Com a quantidade de informação que chega da internet, os Museus precisam ser mais dinâmicos, segundo o arquiteto. O público não encontra nas redes a informação tão organizada quanto nos Museus. “Lá o público irá para se divertir, claro, mas irá também refletir, sentir espanto; arte e memória provocam reflexão e espanto. O espanto e a admiração também fazem parte do processo de formação”, completa.

Reconstrução do Museu Nacional e modelos de administração

Ainda não se sabe com exatidão qual foi o estrago causado pelo incêndio no Museu Nacional, há esperança de que alguns objetos – dos 20 milhões de itens que eram abrigados na mais antiga casa de pesquisa do país – tenham resistido, mesmo que parcialmente às chamas. A estrutura do prédio, porém, poderá ser recuperada e um novo acervo deverá ser constituído, ao longo do tempo. Alfaya alerta que este novo museu deve ser reconstruído com um sistema tecnológico de forma a evitar novos acidentes. “Obviamente isso não é barato, mas cercas coisas se justificam o investimento, este é o caso do Museu Nacional porque trata-se de uma instituição referência para o país e para a sociedade”. 

Alfaya defende que estes aparelhos estratégicos como é o caso do Museu Nacional, ou da Biblioteca Nacional – que contém objetos fundamentais para a preservação da identidade da nação – devem ser mantidos e administrados pelo Estado. “Devido ao modelo de formatação do capitalismo neoliberal, existe uma onda internacional que prega a gestão privada como melhor solução. Isso é uma mentira. Nós precisamos melhorar a gestão pública direta sobre certos equipamentos [estratégicos]”. 

Segundo o especialista, é necessário, porém, estudar e desenvolver formas de administração híbridas também. Ele cita exemplos de museus e equipamentos de cultura mundo a fora que conseguiram ativar um mercado no entorno a fim de fomentar a economia. “A França é um bom exemplo, eles perceberam o potencial de preservar e fomentar a cultura e hoje fazem disso um mercado importante”, explica, mas faz ressalvas: “apesar de ser um país imperialista”. 
“Existem várias possibilidades de administração possíveis levando-se em conta o que é público e privado, isso é algo que deve ser discutido. É preciso defender mais explicitamente a cultura como elemento de centralidade do projeto de desenvolvimento, e não como enfeite ao lado de coisas sérias; tudo é sério”. 

MORANGOS SILVESTRES, UM FILME URBANO, DEMASIADO HUMANO

Julho 15, 2018

Ilustração de Helena Enne para os Morangos Silvestres, de BergmanIngmar Bergman completaria cem anos neste sábado (14). Autor de filmes onde o tema é a alma humana, fez, há seis décadas, este filme que abre a caixa da reflexão sobre a vida e sua passagem.

Por José Carlos Ruy

 vida madura traz reflexões sobre o caminho percorrido até ela – este é o tema do clássico (que fez 60 anos em dezembro de 2017) Morangos Silvestres (1957) do para lá de clássico diretor sueco Ingmar Bergman que, neste sábado (14), faria 100 anos de idade.

Morangos Silvestres é um filme simples, mas quanto tempo alguém precisa para desobrir isto? Ele começa com o som forte de uma badalada (que remete a Por Quem os Sinos Dobram, de John Donne), usada como o sinal para a reflexão que dá o mote do filme. O médico e professor de medicina Isak Borg, sentado em sua escrivaninha, pensa alto: “nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda minha visa social. Isto tornou minha velhice solitária” – uma reflexão explícita que abre este road-movie que descreve a viagem de automóvel de Estocolmo a Lund onde Borg seria homenageado por seus 50 anos de atividade médica e científica.

Na viagem, na velha casa onde passou a infância, Borg saboreia morangos silvestres que abrem o passado, como as famosas madeleines com chá despertaram em Proust, no romance que pode ser outra referência lembrada por Morangos Silvestres, Em Busca do Tempo Perdido. 

A experiência sensorial, de saborear algo que remete à infancia, escancara a caixa das lembranças e das reflexões existenciais, sobre a vida, a experiência com o divino, o sentido de ações e decisções que, deixadas no passado, não podem mais serem mudadas. E o duro julgamento sobre si mesmo – um homem que, ao longo da vida, refugiou-se na ciência e foi tido por famíliares e amigos como lógico, frio e inflexível – como sua nora, que o acompanha na viagem, diz a ele, diretamente: um velho egoista, que só ouve a si próprio, sem consideração com os demais, e que esconde isso atrás do charme pessoal e da gentileza. Coisa que, no íntimo, ele nunca sentiu, vendo-se a si mesmo como solidário com os demais, ético, preocupado com as pessoas, embora uma certa timidez não tenha permitido a manifestação plena deste sentimento.

Morangos Silvestres pode ser entendido, deste ponto de vista, não só como a reflexão sobre as ações e sentimentos de um ancião mas, principalmente, sobre a maneira como foi julgado pelos demais so longo da vida. E do sentido que dá à homenagem que reeberia na Universidade, numa solenidade cuja origem se perde nos séculos iniciais desde sua fundação.

Bergman abriu o filme, logo após os letreiros iniciais, com a cena, fortemente simbólica, de um sonho. E que talvez explique as reticências e dificuldades que muitos encontram para compreender aquela narrativa. A cena é cébre: andando por uma parte da cidade que não conhece, Borg vê os relógios (um, público, e outro de pulso, do próprio Borg) sem ponteiros, que não podem, por isso, marcar a passagem do tempo, embora se possa ouvir seus mecanismos, junto com o pulsar de um coração. Há também uma carroça-fúnebre, sem condutor, que se prende em um poste de iluminação, na qual Borg vê-se a si próprio no caixão, onde o morto tenta pegar em sua mão e dizer-lhe algo.

O que significam os relógios sem ponteiro, ou aquele morto que era ele próprio? Já se esreveu muito para entender isso. Mas, para a compreensão do filme, talvez não seja o principal. Bergman, autor de filmes célebres como O Sétimo Selo (1956), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972), Cenas de um casamento (1973), O Ovo da Serpene (1977) Fanny e Alexander (1982), entre tantos outros – foram quase um por ano entre1946 e 2003, talvez tenha sido o diretor de cinama que mais se debruçou sobre os segredos da alma humana. Em Morangos Silvestres, ele traça um roteiro sensível neste esforço de desvendamento. E fez um filme humano, demasiado humano.

“GRITO MUITO, MAS QUERO ECO”, DIZ ELZA SOARES SOBRE COMBATE AO RACISMO

Fevereiro 11, 2018

 

Parece que o fim do mundo está chegando pela janela do apartamento de Elza Soares, empoleirado sobre a Avenida Atlântica, de tão densa a névoa que cobre a Praia de Copacabana. Nem parece haver mar nem horizonte numa tarde abafada do verão carioca. Fim? Nem pensar. A protagonista de “A Mulher do Fim do Mundo”, álbum de 2015, continua criando, e se reinventando, aos 80 anos. Elza entra em estúdio na próxima segunda feira para começar a gravar o próximo álbum, que agora proclama no título: “Deus É Mulher”.

Elza tem recebido homenagens pelos 80 anos que completou em junho do ano passado, mas já teria 87 anos de acordo com um segundo registro de nascimento. Ela se recusa a falar qual está certo. “Esse negócio de idade… Não tem idade, cara. Sou atemporal.”

O mote do novo disco segue a onda de protestos do trabalho recente da cantora, que levanta bandeiras contra o racismo, violência doméstica, homofobia, e agora foca no “empoderamento todo que as mulheres estão tendo, graças a Deus”.

“Eu vim protestando com “A Mulher do Fim do Mundo” e volto com o mesmo protesto, mas dando mais força às mulheres. Pondo mais a mulher na frente. Nós mulheres sabemos que podemos ficar à frente”, diz. “Mulheres podem liderar e pode haver Deus dentro de cada uma de nós. Por que não? Por que Deus não pode ser mulher? Deus é mulher.”

Elza diz que o “grito” das mulheres já vem de muitos anos, mas está sendo mais ouvido agora.
“O momento é propício para o grito. Esse grito não pode ser silenciando. Tem que continuar gritando, e muito”, afirma.

Com um medalhão dourado de São Jorge no peito, Elza fala sobre as lutas às quais empresta sua voz rouca e potente, reforçadas pela imagem “guerreira” de quem superou a pobreza, o preconceito, a morte de três filhos e a violência do ex-parceiro, o jogador Mané Garrincha.

Quando eram casados, Elza viveu desde os tempos áureos, com os títulos das Copas de 1958 e 1962, à derrocada do jogador para o alcoolismo no fim da carreira, quando começou a bater nela e chegou a quebrar seus dentes em um ataque.

Uma das músicas do último álbum virou um hino denunciando a violência contra mulheres. “Maria da Vila Matilde” conclama mulheres a ligar para o 180 e denunciar seus parceiros em casos de agressão, com as palavras de ordem: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.

Elza se separou após 17 anos de casamento – e diz gostar de pensar apenas nos bons momentos com Garrincha, sem querer remoer o sofrimento.

Batizada Elza da Conceição, a cantora nasceu em um sítio em Padre Miguel e cresceu em Água Santa em meio à pobreza. Casou-se aos 12 anos. Aos 13 anos, já mãe, perdeu um dos dois filhos para uma pneumonia. Aos 21 tornou-se viúva do primeiro marido, de quem herdou o sobrenome Soares.

A jovem Elza carregou caixa d’água na cabeça e foi doméstica, faxineira, empacotadora – tudo menos cantora. Apesar da inclinação que sentia desde criança, aquele caminho não era uma opção para a família. Quando os dois filhos pegaram uma pneumonia grave e não havia dinheiro para antibióticos, o desespero a levou a se inscrever escondida da família no programa de calouros de Ary Barroso na Rádio Tupi. Vestiu uma roupa larga demais da mãe e enfiou alfinetes onde sobrava pano. O visual ficou tão peculiar que Ary Barroso, ao vê-la, perguntou de que planeta ela vinha. eio à pobreza
A resposta de Elza, que pesava “30 e poucos quilos”, cortou os risos debochados do auditório. “Do planeta fome”, rebateu. Ela saiu do programa com um prêmio em dinheiro, correu para a farmácia e medicou os filhos. Um deles reagiu, mas o outro morreu poucos dias depois.

Neste ano, sua história de vida vai virar uma biografia escrita pelo jornalista Zeca Camargo (Editora Leya) e um musical para o teatro. Um filme também está em fase de planejamento, com a atriz Taís Araújo vivendo a protagonista.

Elza se mostra avessa a perguntas que tematizem o passado e a velhice. Medo da morte? “Nunca conversei com ela não. Deixo ela distante.”

Uma mesa na sala reúne alguns dos muitos prêmios acumulados pela cantora, que ganhou o Grammy Latino na categoria de melhor disco de música popular brasileira por “A Mulher do Fim do Mundo”, em 2016.

“Eu não olho para trás. Eu olho para a frente. Eu olho o hoje. É o que eu digo sempre, my name is now”, afirma, repetindo o bordão (“meu nome é agora”) que deu nome a um documentário sobre sua trajetória, lançado em 2015.

“Deus É Mulher” será lançado ainda neste ano, e a cantora continua em turnê com o show “A Voz e a Máquina” – uma boa metáfora desse corpo que, esteja com 80 anos ou 87, segue enfileirando um projeto atrás do outro. “Meu futuro está aí. Deixa o futuro vir. O passado já foi.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à BBC Brasil:

BBC Brasil – Elza, existe um conflito sobre a sua data de nascimento. Qual é a verdadeira?

Elza Soares – Não comento. Não se pergunta sobre idade a mulher. Esse negócio de idade… não tem idade, cara. Sou atemporal.

Você teve um ressurgimento surpreendente depois do lançamento de ‘A Mulher do Fim do Mundo’. Como é se tornar um ícone pop na sua idade?

Gente, eu não sei sobre esse negócio de idade, o que que tem idade, idade… Você tem o tempo, a matéria, o espírito, entendeu? Acho que quando você resiste, você está bem, aguentando tudo, é maravilhoso. Eu vejo meninos aí não aguentando nada, meninas não aguentando nada.

Então como você se sente na fase de vida em que está hoje?

Completamente bem, fantástica, maravilhosa, trabalhando, viajando muito. Sucesso absoluto. Feliz.

O que inspirou a escolha do nome “Deus É Mulher” para o novo disco? Em que sentido você quer dizer que Deus é mulher?

Com “A Mulher do Fim do Mundo a gente veio denunciar tudo que não presta. Como os problemas não tiveram fim, aliás, é muito difícil acabarem, a gente volta agora com “Deus É Mulher”. Acho que as mulheres, com o empoderamento todo que têm agora, graças a Deus, elas podem muito bem liderar e pode haver Deus dentro de cada uma de nós. Por que não? Por que Deus não pode ser mulher? Deus é mulher. Eu vim protestando com “A Mulher do Fim do Mundo” e volto com o mesmo protesto, mas dando mais força às mulheres. Pondo mais a mulher na frente. Nós mulheres sabemos que podemos ficar à frente. Acho que é por aí.

Você já passou por muitas dificuldades na vida. Como a sua trajetória influenciou a sua carreira e o seu jeito de cantar?

Garra. Vontade. Entendeu? Acreditar. Tudo isso você tem que ter contigo. Eu acredito. Eu tenho garra. Eu tenho persistência. Eu acho que isso faz acontecer.

Em seu último disco você toca em temas sensíveis, e um deles é violência doméstica, com a música “Maria da Vila Matilde”, que virou uma espécie de hino pela causa. Você sofreu esse problema no passado – o que fez com que, em 2015, você quisesse falar no assunto?

Eu já vinha falando sobre isso há muito tempo. Eu falo de política desde que comecei a cantar. De ser mulher, de ser negra. De ser mulher negra.

A violência doméstica, por mais que você fale e tente combater, ainda é muito presente. É triste que você ainda tenha a necessidade de fazer músicas falando da violência contra a mulher, que é uma coisa horrível. Isso você vai ter que falar a vida toda? É um câncer, né?

A gente fala da negritude, tem que falar da cor de pele, que é uma coisa absurda, né, tem que estar toda hora gritando, “olha!”, “olha!”, como um pregão, sempre.

Como você vê o movimento atual do feminismo, com tantas mulheres quebrando o silêncio sobre violência sexual e gerando um efeito-dominó de denúncias de assédio?

Acho que valeu o passado. Acho que para esse presente de agora, valeu o passado. Porque tudo se copia, né? Eu acho que essa cópia aí é maravilhosa, porque as mulheres estão podendo falar mais, estão podendo gritar mais.

Mas isso já vem de um passado em que as mulheres vinham gritando, queimaram sutiãs, foram queimadas. Então você vê que a mulher já vem com um grito de muitos anos. Talvez sejamos ouvidas agora. Agora. Mas esse grito já vem de longe. Acho que o eco está sendo agora, mas o grito vem de longe.

O que é diferente no momento atual? Acha que é um momento propício para o grito?

O momento é propício para o grito, lógico. Esse grito não pode ser silenciado, tem que continuar gritando, e muito. Gritar mesmo, sem interrupção.

Você costuma dizer em seus shows que o Brasil é negro. O que você acha que falta para a sociedade encarar de frente a desigualdade racial?

Deixa eu te contar. Eu recebi uma homenagem no Memorial (da América Latina) em São Paulo com uma orquestra sinfônica maravilhosa (a Jazz Sinfônica), grande maestro, grandes músicos, uma homenagem belíssima. No momento que eu vi a Sinfônica, senti uma coisa meio estranha. Não vi um negro nessa Sinfônica. Então eu pergunto, onde estão meus negros? O que eles estão fazendo? Por favor, lutem, busquem, porque vocês têm o direito também. Aliás, temos o direito.
Quando eu cantei “a carne mais barata no mercado é a carne negra” – não é a carne negra. Foi a carne negra, entendeu? Cantei (a música “A Carne”) e fui muito aplaudida quando falei que sentia falta de um negro naquela Sinfônica.

Sua história com o Garrincha teve momentos muito difíceis. É deles que você se lembra mais quando pensa nele?

Eu penso nos momentos de amor. Procuro esquecer os momentos de ódio, porque a coisa pior do mundo é o ódio, né? Então penso no momento de amor, que foi lindo.

Você já disse que o futebol brasileiro morreu com ele. Foi isso que causou o 7×1 na Copa de 2014?

Eu acho que morreu mesmo. É falta de Garrincha, né? Garrincha nunca ganhou dólar, nunca ganhou euro, era canela, pé, aquelas pernas tortas maravilhosas. E aquele menino brincando de jogar futebol, né? Brincando sério.

Você viveu a ditadura e chegou a ir para o exílio com o Garrincha. Como você vê o momento político atual do país à luz do que viveu naquela época?

Eu tenho muito medo da palavra ditadura. O Brasil não merece essa palavra. A gente tem que pensar muito antes de falar sobre política, porque está tudo tão conturbado. O momento pede consciência. Saber o que está acontecendo.

Dizem que a voz do povo é a voz de Deus. Quando o povo quer, a coisa acontece. Tem que ter consciência do momento que estamos atravessando. Por favor, a eleição vem aí, povo, por favor. Olha esse Brasil como é que está. Esse país que, lá fora, às vezes vira brincadeira, vira chacota. Você não quer ver teu país sendo falado dessa maneira tão triste.

Eu sou muito otimista. Eu acredito que isso é um momento que nós estamos atravessando, e vai passar. Acredito. Acredito nesse povo brasileiro sofrido, que isso vai passar. É um momento trágico, um momento ruim, mas acho que vai vir um momento bom para gente também. Assim como veio para a Elza Soares, há de vir para o Brasil.

É um momento difícil para o Rio também, com a crise e a onda de violência que o Estado está enfrentando.

Ah, eu vejo esse Rio chorando. O Rio que é um Rio de alegria. A gente tem uma cidade tão maravilhosa. E passar por esses momentos cruéis assim. Eu vejo o Rio pedindo socorro, pedindo misericórdia, “help me”. Assim eu vejo o Rio de Janeiro, pedindo socorro.

Quais são as coisas em que você se agarra para ter fé?

Deus, lógico, primeiramente Deus. Acredito muito em Deus e me agarro nos meus santinhos maravilhosos. Nossa Senhora de Aparecida, São Jorge, sempre pedindo misericórdia. Não peço só para mim, não. Peço misericórdia para a nação.

Com toda essa rotina de shows, como é seu dia a dia, sua de cuidar da saúde?

Eu sou muito tranquila. Cuido muito bem do meu corpo. Três vezes por semana tenho fisioterapia. Cuido da minha saúde, da minha alimentação, eu sei que preciso me cuidar. Por isso que eu digo, cuidem do Brasil porque o Brasil precisa se cuidar.

As pessoas às vezes te associam a cirurgias plásticas, às intervenções que você fez. Como você vê a vaidade feminina e a imagem que você tem?

Adoro um espelho. E para adorar um espalho adoro cirurgia plástica, adoro tudo. Acho que a mulher merece tudo, tem que ser linda, vaidosa. Mulher. Bons vestidos de seda, boas camisolas lindas, maravilhosas. Olhar no espelho e dizer, sou feliz comigo mesma. É muito bom.

Mas a mulher sofre uma objetificação muito forte, a ideia do corpo sarado, das capas de revista com mulheres perfeitas. Você acha que isso tem que ser questionado nesse novo movimento de feminismo?

Não sei. Eu sei que eu gosto de mim, gosto de malhar, gosto de estar bem. Gosto de fazer uma cirurgia plástica se precisar. Eu não vou fazer mais.

Mas faria cirurgia plástica maravilhosamente bem, não sei se precisa; se precisar, também faço. Eu acho que é por aí. Se o espelho me questionar, vou. Eu falo até para o espelho, pode esperar que eu volto amanhã para você.

Você casou com 12 anos. Como foi para você casar tão cedo, e como a sua sexualidade se desenvolveu ao longo da sua vida?

Eu soltava pipa, jogava bola de gude, com filho no colo. Pegava balão, corria muito, brincava com eles. Foi assim que foi a minha vida. Era criança e mãe. Tanto que meus filhos me chamam de Conceição até hoje. Era como se fôssemos amigos.

Com tudo o que você sofreu, o que você diria se pudesse falar com a Elza do passado, ainda menina em Água Santa?

Não sei. É muito gozado, eu não olho para trás. Eu olho para a frente. Eu olho o hoje. Eu digo sempre, my name is now (“meu nome é hoje”). Eu não gosto muito do passado. O passado já foi, já sei. O futuro não sei o que virá. Então, eu vivo hoje.

Como era a sua casa da infância em Água Santa?

Era bem pobrezinha, mas tinha muita riqueza lá dentro. Tinha toda a minha família. Éramos seis irmãos.

Quando você se descobriu cantora? Seus pais eram contra?

Eu sempre soube. Por incrível que pareça. Sempre gostei de cantar, desde pequenininha. Ser cantora na época era uma coisa pejorativa. Meu pai queria que eu estudasse muito, que não falasse em ser cantora, nada disso. Mas ele tocava violão e pedia para eu cantar com ele… Mas ele queria que eu fosse professora. Olha onde ele queria me jogar, professora. Eu não ia conseguir ser uma boa professora porque não iam me pagar, e eu ia brigar muito. Ia ficar essa coisa horrível de sempre ter uma greve.

Quando você era criança adolescente, que música chegava aos seus ouvidos?

Era só rádio, né? Eu me lembro de Orlando Silva, que chegava para a gente, e de Glenn Miller. O Brasil era todo americano. O Brasil não era Brasil, era Brasil americano.

O Brasil não gosta muito do Brasil. Eu não sei o que acontece. Você liga o rádio ainda hoje e escuta muito pouca música brasileira.

O que você acha que você representa como um símbolo musical?

Cara, é porque eu grito muito, entendeu? Talvez seja pela minha luta, pelas minhas guerras, minhas buscas. Mas eu queria eco dos meus gritos. Pela raça, buscando, falando, brigando por eles. Brigando por nós, né?

Você tem medo da morte, Elza?

Nunca conversei com ela não, entendeu? Deixo ela distante. Não tenho muita confiança com ela não. Deixa ela pra lá.

Você não para de fazer planos para o futuro.

Não, lógico, meu futuro está aí. My name is now. E deixa o futuro vir. Como deveria ser. O passado já foi.

O que você diria que é a mulher do fim do mundo?

É uma mulher que tem coragem de dizer, de lutar, de buscar. Uma mulher que luta, sozinha. Mulher.

A Revolução Russa e o revisionismo histórico

Setembro 24, 2017

 

Por Domenico Losurdo*

Duas epidemias assolaram o mundo em 1918. Uma foi a influenza espanhola […] A outra epidemia foi o bolchevismo, que por determinado período pareceu quase tão contagioso quanto e no final das contas se provou tão letal quanto a influenza.”
(Niall Ferguson, The War of the World, pp. 115-5).

Assim nos fala o mais bem sucedido historiador ocidental de nosso tempo, para quem a Revolução de Outubro evidentemente não passa de um capítulo na história de loucura (e de loucura criminosa, diga-se). E no entanto essa mesma revolução pôs fim ao monstruoso “genocídio” [Völkermord] tão memoravelmente denunciado por Rosa Luxemburgo, essa mesma revolução forçou o fim do que Bukharin chamou de uma “sombria fábrica de cadáveres”.

A Primeira Guerra Mundial foi uma carnificina total em que até mesmo pessoas completamente alheias ao conflito foram obrigadas a participar. Conforme observou o respeitado historiador britânico A. J. P. Taylor, “cerca de 50 milhões de africanos e 150 milhões de indianos foram envolvidos, sem consulta, em uma guerra a respeito da qual não compreendiam nada”. Foram simplesmente recolhidos pelo governo londrino e deportados a milhares de quilômetros de distância, para serem conduzidos a uma “sombria fábrica de cadáveres” que agora operava a pleno vapor na Europa. Foram levados lá como membros de uma “raça inferior”, que uma “raça superior” podia em boa consciência sacrificar como bucha de canhão (ver Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917, pp.176-7, 309 e 168).

E, no entanto para Ferguson, e para a ideologia hegemônica hoje, não há dúvida: a dominação colonial e o banho de sangue da guerra mundial são sinônimos de normalidade, ou mesmo de sanidade psicológica, enquanto que a Revolução de Outubro – oposta a tudo isso – representa uma epidemia, a disseminação da loucura.

Quando afinal teria atacado primeiro essa doença revolucionária? De acordo com outro dos mais aclamados historiadores da corte por parte do ocidente liberal e capitalista, Richard Pipes, o Outubro Bolchevique não passou da conclusão do ruinoso ciclo histórico que iniciou na Rússia com a Revolução de 1905. Outros expoentes do revisionismo histórico vão ainda mais longe, afirmando que, no ocidente, o vírus revolucionário e essa epidemia toda começou a encolerizar-se já em meados do século XIX, com a publicação do Manifesto Comunista, ou ainda antes, com a disseminação da filosofia das luzes que deu origem revolução jacobina (prólogo à Revolução Bolchevique).

A essa altura, tudo fica evidente: tanto para os revisionistas históricos quanto para a ideologia dominante, equaciona-se saúde espiritual e mental com estabilidade do ancien régime. No conjunto, esse último foi caracterizado por uma hierarquia social e racial, caracterizado nas colônias pela expropriação, deportação e dizimação dos nativos. Esse é o mundo que a Revolução de Outubro teve o grande mérito de mergulhar em crise. Se o apelo de Lênin aos “escravos coloniais” para que rompessem seus grilhões inspirou e estimulou a revolução anticolonial mundial, outros slogans ainda estão para serem realizados. Talvez eles devessem ser repensados hoje, tendo em vista realizar sua plena efetividade.

* nasceu em 1941, na Itália. Professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino. Pela Boitempo, lançou A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010), A luta de classes: uma história política e filosófica, e o mais recente Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917 (2017)

Fonte: Fundação Maurício Grabois

Os contrastes de Caravaggio: quatro séculos do pintor

Julho 19, 2017

Caravaggio foi um pintor barroco, o melhor exemplar da pintura naturalista do início do século 17; morreu em 1610 aos 38 anos

Por Max Altman

Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio, pintor italiano, morre em 18 de julho de 1610, aos 38 anos em Porto Ercole. Sua obra poderosa e inovadora revolucionou a pintura do século 17 pelo caráter naturalista, realismo por vezes brutal, erotismo perturbador e o emprego da técnica claro-escuro que influenciou numerosos pintores cujo talento foi revelado depois de sua época.

Caravaggio foi um pintor barroco, o melhor exemplar da pintura naturalista do início do século 17. Utilizou modelos da classe mais baixa da sociedade em seus primeiros trabalhos e posteriormente nas composições religiosas em que apela ao gosto da Contra Reforma pelo realismo, simplicidade e compaixão na arte. Igualmente importante foi a introdução dos efeitos dramáticos do claro-escuro.

Ele levou uma vida dissoluta, rica em escândalos provocados por sua índole violenta de desordeiro – chegando até a matar durante uma briga –, a frequência habitual ao bas fond e às tavernas, bem como por sua sexualidade escandalosa para a época, o que lhe acarretou inúmeros problemas com a justiça, a Igreja e o poder. Encontrou em sua arte, uma espécie de “redenção de todas as torpezas”. No entanto foi necessário esperar o começo do século 20 para que seu gênio fosse plenamente reconhecido, independente da reputação corrosiva.

O pintor nasceu em 28 de setembro de 1573, na montanhosa cidade da Lombardia, Caravaggio. Levou quatro anos como aprendiz no ateliê de Simone Peterzano em Milão, antes de ir a Roma em 1593, onde passou a auxiliar o pintor Giuseppe Cesari, para quem pintou quadros de frutas e flores. Entre os seus trabalhos iniciais mais conhecidos estão cenas da vida cotidiana, por exemplo, Os Músicos (1591?-1592, Metropolitan Museum, Nova York) ou A Vidente (1594, versões no Louvre, Paris, e no Museo Capitolino, Roma) quadros de grande apelo aos seguidores do artista.

O estilo da maturidade de Caravaggio começou por volta de 1600 com a encomenda para decorar a Capela Contarelli em San Luigi dei Francesi em Roma com três cenas da vida de São Mateus. O Chamado de São Mateus (1599? -1600) é notável por seu dramático uso da “luz de sótão”, que emana de uma fonte acima da ação a fim de iluminar o gesto de mão de Cristo (baseado no Adão de Michelangelo na Capela Sistina) e outras figuras, a maioria das quais com roupas contemporâneas. Por volta de 1601, Caravaggio recebeu seu segundo grande encargo da igreja Santa Maria del Popolo em Roma para a Conversão de São Paulo e A Crucificação de São Pedro.

Acusado de assassinato, Caravaggio fugiu para Nápoles em 1606. Ali passou vários meses executando obras como O Flagelo de Cristo (San Domenico Maggiore, Nápoles), cruciais para o desenvolvimento do naturtalismo. Nesse mesmo ano viajou para Malta, foi feito cavaliere, da Ordem Maltesa, tendo executado um de seus poucos retratos, o do cavaliere Alof de Wignacourt (1608, Museu do Louvre). Em outubro de 1608, foi novamente preso. Escapando da prisão, viajou para Siracusa na Sicília, onde pintou diversas telas monumentais, inclusive O Enterro de Santa Lúcia (1608, Santa Lucia, Siracusa) e A Ressurreição de Lázaro (1609, Museo Nazionale, Messina). Eram composições com múltiplas figuras envoltas em um grande drama, produzidas com tonalidades escuras e uso seletivo de luz.

A despeito de declarações que a natureza era sua única mestra, é evidente que Caravaggio estudou e assimilou os estilos de mestres da Alta Renascença, em especial o de Michelangelo.

O impacto de Caravaggio na arte de seu século foi considerável. O impressionante é que quatro séculos após sua morte, em 2010, a Galeria Palatina dentro do Palácio Pitti, Florença, apresentou uma exposição excepcional de suas obras. O pintor que fascinou os Médicis, incluiu personagens do bas-fond à nobreza, imortalizando-os em suas telas sobre um fundo neutro, cor lisa, sem exagero nas luzes, nada de decoração, de ação, um culto e uma extrema precisão nos detalhes.

Florestan Fernandes:Reedição de livro debate democracia racial

Junho 28, 2017

Florestan Fernandes pensou na abolição da escravidão inconclusa. Ele questionava, criticava. Sua obra nos convida a pensar o mito da democracia racial”, afirma Weber Lopes, doutorando que estuda o movimento negro na Universidade Federal do ABC (UFABC). O acadêmico esteve presente no debate de lançamento da reedição do livro Significado do Protesto Negro, de Florestan Fernandes, sociólogo e político brasileiro falecido em 1995.

“Conheci Florestan quando me aproximava do movimento negro, em 1977, em plena ditadura militar. Os primeiros textos que li foram xerox distribuídas pelo pessoal da Universidade de São Paulo (USP). Ele tinha uma grande relação com o movimento negro e era considerado subversivo pela ditadura, pela mesma direita conservadora que agora mostra novamente sua cara”, afirmou Flávio Jorge Rodrigues da Silva, membro do Conselho Curador da FPA e da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen).

Também esteve presente o jornalista Florestan Fernandes Júnior, filho do pensador, e a coordenadora do Núcleo de Consciência Negra da USP, Maria José Menezes, a Zezé. Com mais de 50 obras publicadas, Florestan construiu vasta carreira na academia das Ciências Sociais, lecionando em instituições como a Universidade de Toronto, no Canadá, em Colúmbia, nos Estados Unidos e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Como político, Florestan foi deputado federal pelo PT e participou da Constituinte, sendo um dos signatários da Carta de 1988.

“Florestan era um lutador, socialista, intelectual e militante. Ele não foi um parceiro da luta contra o racismo, e sim um militante. Sempre digo que a Constituição de 1988, que hoje está sendo destruída pelos golpistas, tem o pensamento, o dedo e a voz dele. Neste livro, que está sendo lançado, tem uma emenda que ele mandou para a Constituinte, chamada Dos Negros. Se vocês lerem, existe um projeto de reparação da população negra”, afirmou Flávio.

Segundo ele, estão presentes neste livro “dois textos publicados na primeira vez que o PT discutiu a questão. São eles: O Negro e a Democracia e Luta de Raça e de Classe. Também tem um outro texto chamado A Classe Média e os Mulatos, onde trata de negros que não pensam como negros, uma leitura do ponto de vista do conservadorismo”.

Por fim, o ativista exaltou a relevância do trabalho de Florestan. “Esses textos são atualíssimos, especialmente no debate que a esquerda está deixando de lado, que é a relação de raça e classe em um projeto de transformação para a sociedade. Isso é real, a ênfase atual é muito focada na questão de classe, mas em um país com 54% da população descendente de escravos e onde existe um forte racismo, não existe projeto nenhum sem levar isso em consideração.”

A acadêmica da USP Zezé reafirmou a importância do debate dentro da sociedade contemporânea brasileira. “O Estado brasileiro sempre foi racista e repressor. E a obra de Florestan é muito atual porque ele questiona a ausência dos negros em estruturas de poder. Ele coloca o dedo na ferida e mostra que a manutenção dos privilégios das elites depende de barrar a democracia racial. Isso funciona até hoje”, disse.

Para Zezé, o cenário político atual reforça a importância da obra. “Avançamos em alguns aspectos, mas tudo que construímos está sendo destruído”, disse em relação à agenda tocada pelo presidente Michel Temer (PMDB), que inclui as reformas trabalhista e da Previdência. “Estamos perdendo a possibilidade de nos aposentar, visto que a expectativa de vida do negro é inferior em dez anos. Isso, porque temos os piores indicadores sociais na área da saúde. Temos as piores escolas nas periferias. Em São Paulo, veja, o governo do PSDB tira recursos da educação para investir em prisões. O governo do PSDB mata e aprisiona os negros e negras”, completou.

Já Florestan Fernandes Júnior apresentou uma expectativa de enfrentamento entre elites e as camadas populares, como inevitável para mudar o cenário problemático que persiste ao longo dos anos. “Não estou pessimista, porque acho que a liberdade nem sempre se faz na paz… Precisaremos de muita luta e organização. O golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff (PT) veio porque eles perceberam que o poder estava fugindo da mão deles”, disse.

Por fim, ele leu um trecho do livro, de autoria de seu pai. “Como socialista, como militante de movimento social, como sociólogo e professor, coloquei-me na vanguarda dos que combatiam na questão do negro, que não é apenas social, é racial, a pior herança da sociedade de castas. Ela trouxe para o presente todas as formas de repressão neste país. Enquanto não houver liberdade com igualdade para o negro, a ideia da democracia racial é um mito. Por isso devemos repelir esse racismo que indica que vivemos em uma sociedade hipócrita e autocrática. Tenho vergonha e vou lutar com vigor. Prefiro participar da fraternidade dos irmãos negros e lutar por igualdade como objetivo universal.”

“Mulher do pai” e o lugar da mulher no cinema

Junho 16, 2017

Primeiro longa de Cristiane Oliveira, Mulher do Pai, estreia dia 22 de junho. É um filme encabeçado por mulheres e com uma temática feminina muito presente no roteiro. Protagonizado por Maria Galant e Marat Descartes, o filme conta a trajetória da adolescente Nalu, que, após a morte da avó, precisa cuidar de seu pai cego, mas, ao mesmo tempo, vive o dilema entre ser tecelã como a avó ou buscar uma nova vida longe da comunidade.

Outras Palavras, em parceria com a equipe do longa Mulher do Pai e do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema apresentam o Cinedebate Mulheres no Cinema, com exibição do Making Of de 23 minutos do filme. No debate, estarão presentes Heloisa Passos, diretora de fotografia e integrante da Associação Brasileira de Cinematografia e do Coletivo das diretoras de Fotografia do Brasil, Samanta Do Amaral, colorista e integrante do Coletivo das diretoras de Fotografia do Brasil, Cristiane Oliveira, roteirista e diretora, Isabel Wittmann, do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e do podcast Feito Por Elas.

Não só a temática do filme traz uma questão sobre o feminino e a condição da mulher, como o próprio processo de produção do longa também levanta pontos importantes. Rodado em municípios do interior do Rio Grande do Sul, onde a cultura do gado é muito forte, consequentemente, com menos atuação das mulheres no mercado de trabalho, o filme deu a oportunidade para muitas delas terem seu primeiro emprego remunerado.

O filme já arrebatou oito prêmios em festivais, entre eles o de melhor Direção e melhor fotografia no Festival do Rio e o Prêmio Abraccine na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ambos em 2016. Também foi exibido em importantes festivais internacionais, como o de Berlim, Guadalajara e o do Uruguai – onde ganhou o prêmio da Fipresci na competição Ibero-americana.

O longa conta com a participação do ator paulista Marat Descartes (conhecido por sua participação em filmes como Trabalhar Cansa e em novelas da Globo como Totalmente Demais) e da atriz uruguaia Verónica Perrotta, que ganhou o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante pelo filme no Festival do Rio, além de apresentar a jovem gaúcha Maria Galant.

A exibição no Brasil, no dia 22, acontece na rua Conselheiro Ramalho, 495, na capital paulista. A entrada é gratuita, mas contribuições voluntárias são bem-vindas.

Assista ao trailer: 

Há 200 anos, era inventada a bicicleta

Junho 13, 2017

Em 12 de junho de 1817, o funcionário público e inventor Karl von Drais se sentou no selim de sua máquina de correr de madeira e foi embora. O test-drive foi bem-sucedido: nascia a precursora da bicicleta moderna.

O momento não poderia ser melhor: a região era fustigada por um desastre climático, desencadeado por uma enorme nuvem de cinzas que uma erupção vulcânica na Indonésia tinha jogado no mundo inteiro. O resultado: frio, seca, perda de colheitas, fome. A situação também vitimou muitos cavalos – que foram simplesmente para a panela.

Drais vinha pensando há tempos sobre uma alternativa sensata para o cavalo – e assim foi inventada a chamada “draisiana”. Provavelmente, ao experimentar sua invenção pela primeira vez, ele não chegou a pensar que, com ela, alteraria para sempre a mobilidade da humanidade. Na verdade, ele só queria ganhar dinheiro.

A viagem inaugural começou na cidade de Mannheim e seguiu por cerca de 14 quilômetros em direção ao sul, rumo a Schwetzingen. A imprensa em toda a Europa comentou a invenção vinda da Alemanha. O aspecto financeiro foi o mais celebrado: o custo de uma draisiana era de 20 libras, enquanto o de um cavalo, 1.900 libras. Imbatível também foi considerado o fato de que o dispositivo não tinha custos adicionais – afinal, não precisava receber ração.

Mas, para decepção de Drais, o novo meio de transporte não entusiasmou a todos. Afinal, não era todo mundo que gostava de se movimentar caso não fosse necessário. As pessoas comuns do campo costumavam permanecer por toda a vida no mesmo lugar onde nasceram e achavam estranha a ideia de se afastar voluntariamente de suas casas. Foi então que essa nova máquina se tornou mais um brinquedo de alguns esportistas ricos.

Mas o invento não passou sem ser notado por outros inventores. Drais patenteou sua máquina, mas a patente só tinha validade na sua região, Baden. Além das fronteiras daquela área, seu veículo foi copiado e aperfeiçoado.

Até aparecer a bicicleta em sua forma atual, se passaram muitas décadas. Inventores na França e na Inglaterra melhoraram o projeto de duas rodas continuamente, indo desde o primeiro velocípede movido a pedal até o modelo com a roda dianteira aumentada, que apresentava risco de vida aos ciclistas. Então, no final do século 19, a bicicleta clássica apareceu, com os elementos conhecidos até hoje: duas rodas de tamanho igual, com dois pneus e uma corrente entre os pedais e roda traseira.

A tecnologia da bicicleta foi, aliás, também aproveitada na indústria automobilística, como, por exemplo, no caso dos pneus. Muitas formas foram criadas em 200 anos – e muito foi modificado até que o veículo se tornasse um meio prático de transporte para todos. A bicicleta foi ridicularizada, considerada imprópria por associações conservadoras de mulheres e mais tarde foi considerada um brinquedo exclusivo para ricos. Então, chegaram a motocicleta e o carro como concorrentes.

Hoje, a bicicleta é objeto de consumo, de culto, meio para esporte e diversão, usado por bilhões de pessoas ao redor do mundo. Tornou-se símbolo da mobilidade sustentável. Quem deixa o carro em casa e vai para o trabalho de bicicleta não faz algo de bom só para o meio ambiente, mas também para si mesmo. Pois quem pedala muito permanece mais tempo saudável.

Passado e presente de mãos dadas no filme Cinema Novo, de Eryk Rocha

Junho 11, 2017

Vencedor do prêmio Olho de Ouro em 2016, em Cannes, o documentário Cinema Novo, de Eryk Rocha, resgata a história de um dos mais importantes movimentos cinematográficos latino-americanos, a paixão dos diretores pelo cinema e seus sonhos de transformação do Brasil em um país mais justo e igualitário.

Por Xandra Stefanel

Chamado pelo próprio diretor de “ensaio poético”, o documentário mergulha na criação do cinema novo e na visão de mundo e de cinema de seus diretores: seu pai, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Walter Lima Jr. e Paulo César Saraceni. Não se trata, porém, um filme histórico e didático, mas sim uma reconstrução sensorial do movimento.

Foram usadas imagens de arquivo e cenas de 130 filmes do Cinema Novo, entre os quais o clássico de Glauber Rocha Terra Em Transe, Vidas Secas e Rio 40 Graus, ambos de Nelson Pereira. Com uma montagem espetacular de Renato Vallone, o resultado é um mosaico harmônico tanto na forma quanto no conteúdo. As entrevistas de bastidores filmadas na época exalam as aventuras e as lutas de uma geração de cineastas que acreditava na arte como um potencial de transformação social.

Pelas mãos destes cineastas, o cinema nacional deixava antigos moldes e renascia como uma nova forma que tinha como lema “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Era um cinema que tomava as ruas e registrava o verdadeiro povo brasileiro, a vida nos subúrbios e nas fábricas, nossas manifestações culturais, nossas mazelas e contradições mais profundas.

Por isso tudo, o filme resgata o passado sem desconectá-lo dos dias atuais, como afirmou recentemente Eryk Rocha: “É muito emocionante estrear este filme em Brasília neste momento histórico do país. Eu acho que este filme é fruto de um diálogo entre gerações, desse entendimento da memória não como uma coisa do passado, hermética, ou cristalizada, ou idealizada, mas a memória como uma construção de futuro… Eu acho que essa geração do cinema novo tinha uma grande paixão pelo Brasil e pelo cinema. Mas é uma geração, também, que vivenciou um golpe militar e todos os desdobramentos trágicos de uma ditadura militar no Brasil. E a gente, infelizmente, tragicamente, está vivendo esse momento no Brasil, um novo golpe. Eu, como cidadão, fico indignado com isso. Acho que o filme dialoga nesse sentido, visceralmente, com o Brasil contemporâneo”, critica Eryk.

Assista ao trailer: