Os quatro jovens entraram no ônibus em paradas alternadas. Eram quase 19 horas quando eles, usando óculos escuros e um tipo de boné com abas caindo, quase cobrindo seus os rostos, tomaram seus pontos estratégicos dentro do ônibus. Um deles procurou ficar próximo do motorista, outro junto ao cobrador e os outros ficaram no corredor. De repente, quando o ônibus entrou em uma rua mais longa, o jovem que estava próximo do motorista, sacou de um revólver, mirou sua cabeça dizendo para ele não ser otário de mostrar qualquer reação se não quisesse que seus filhos ficassem sem o pai e a mulher sem marido passando fome. O motorista, tenso, continuou guiando o ônibus.
Então, ele anunciou o assalto dizendo que seria um jogo rápido se todos cooperassem entregando dinheiro, celulares, joias cartões com as senhas. Houve um início de pânico, mas quando os passageiros viram os quatros jovens todos com as armas nas mãos, se esforçaram para não desesperar. O jovem junto ao cobrador retirou todo o dinheiro do caixa, e continuou observando-o para que ele não esboçasse qualquer reação. Um jovem mais magro chegou ao meio do ônibus e pediu a bolsa de uma senhora que estava com ar despreocupado olhando pela janela como se nada ameaçador tivesse ocorrendo. Ela entregou a bolsa calmamente e continuou absorta olhando pela janela. O jovem abriu a bolsa dela para tirar o dinheiro e seus pertences quando viu um contracheque. Ele leu e perguntou se ela era professora, ao que ela balançou a cabeça afirmativamente. Ele então entregou a bolsa sem tirar nada.
O jovem mais taludo se aproximou e perguntou se ele já havia tirado as coisas da mulher, ele respondeu que sim. O jovem taludo, irritado, não acreditou afirmando que a bolsa dela estava fechada. E ele disse que ele estava enganado. O jovem taludo tentou pegar a bolsa da senhora, mas o jovem magro impediu afirmando que não iam tirar nada dela porque ela era professora. O jovem taludo, mais irritado ainda, disse que ia tirar tudo e ainda levar a bolsa dela para presentear uma tia, porque ele odiava professora. Que foi por causa de uma professora, que lhe perseguia na escola, que ele teve que deixar os estudos. E ainda advertiu, com violência, o jovem magro lembrando que ele não estava se saindo bem no lance como alguém que participava de seu primeiro assalto. Mas o jovem magro, resoluto, apontou o revolver na cabeça do taludo e disse se ele pegasse a bolsa da professora nunca mais ele iria dormir.
Nesse momento, o jovem que estava próximo ao motorista avisou que a festa estava acabada. Era hora de ‘sorta’ da parada. Eles desceram, entraram em uma rua estreita e escura, e o motorista acelerou o ônibus. Como eles se juntaram aleatoriamente para assaltar, aleatoriamente, depois de dividirem a grana e o que ficou com o motorista pedir as armas, cada um se mandou para seu mundo. Nenhum conhecia o outro.
O jovem magro jogou em um buraco fundo, os óculos e o boné, cujas abas cobriam seu rosto, foi até o asfalto, pegou um ônibus e desceu em um bairro distante. Chegou a uma lanchonete, pediu um refrigerante e um sanduiche, sentou em uma cadeira e ficou olhando a televisão que apresentava um jornal. Baixou a cabeça, ficou pensativo quando ouvi vindo da televisão um alarido. Voltou a olhar o aparelho e percebeu que se tratava do fim de mais uma marcha dos professores do ensino público que reivindicavam seus direitos trabalhistas junto aos governos. Ele, muito atento à notícia, ouviu quando uma professora disse ao repórter que no outro dia às 9 horas, eles iriam à Assembleia Legislativa do Estado protestar, porque os deputados iriam votar o reajuste de 5% que o governo tinha dado quando a categoria pedia 20%. Depois, pagou a conta e foi para casa.
No outro dia, ele acordou cedinho. Procurou a melhor roupa que tinha, limpou bem os sapatos, se vestiu, passou um pouco do perfume da irmã que estudava no Pronatec e foi pegar um ônibus. Antes das 9 horas, estava na frente da Assembleia Legislativa onda já havia centenas de professores. Passou entre os professores, ouviu algumas conversas sobre as pautas reivindicatórias, e viu quando a porta foi aberta e um homem fazia a triagem de quem poderia entrar. Ele se aproximou entre professores que estavam juntos ao homem que fazia a triagem e quando o homem deu um vacilo ele entrou.
Já no interior do órgão sentou em uma poltrona perto de uma professora que estava muito triste. Conforme os deputados iam chegando e sentando displicentemente nas poltronas, ele ia entendendo quem eram eles. Por último, chegou um deputado que sentou no meio de todos os deputados e ele entendeu de vez qual seria o resultado da votação. A sessão começou e alguns representantes dos professores foram à tribuna expor as reivindicações da categoria. Ele viu que enquanto os professores falavam quase todos os deputados mostravam total desinteresse com a matéria. Uns folheavam jornais, outros tomavam café, outros conversavam ao celular, um total desprezo aos professores.
Quando o presidente da mesa avisou que iria iniciar a votação do reajuste de 5% concedido pelo governo, ele levantou a mão e disse que queria fazer um breve pronunciamento. O presidente da mesa quis impedir, mas um deputado da oposição pediu que fosse respeitado o interesse do jovem. Muito contrariado e com profundo ódio, o presidente concedeu o pedido.
Ele foi à tribuna, deu um sorriso largo e seguro, e se apresentou afirmando que era professor. Os professores se entreolharam querendo saber quem era aquele professor que a categoria não conhecia. Ele então disse que fazia parte de um movimento de educadores conhecido nas periferias e nos municípios do estado como Movimento Conatus. Os professores, como também os deputados, ficaram intrigados quase que dizendo que não estavam entendendo nada. Ele, então, começou explanar em se constituía o Movimento Conatus. Disse que ele e mais duzentos professores de todos os bairros da cidade e outros municípios do estado, há mais de oito meses estavam realizando uma pesquisa para saber quantas escolas existem no estado e, principalmente, em Manaus, quantos alunos estão matriculados e quantas famílias estes alunos compõem. E quantos trabalham no distrito.
Parou por um momento, olhou firmemente para o presidente da mesa, e continuou sua explanação dizendo que durante todos esses meses, eles têm realizados encontros com todas as famílias desses alunos e todas as famílias estão coesas com os propósitos do Movimento Conatus do qual elas também são vozes ativas. Nesse momento, o presidente da mesa tentou cortar sua fala alegando que o tempo havia esgotado. Entretanto, outro deputado da oposição, disse que concedia seu tempo para ele falar. Ele agradeceu e continuou, afirmando que segundo a pesquisa deles, em 90% das famílias dos bairros da e dos municípios têm, no mínimo, quatro eleitores. Nesse ínterim, os deputados largaram os jornais, os celulares, os cafezinhos, mexeram-se nas poltronas, olharam-se e depois passaram a cochichar entre eles.
Ele ficou olhando os deputados e depois começou a explicar o caso da categoria e aproveitou para lembrar a alguns professores que eles deveriam compreender a importância que eles têm para o mundo, como sujeitos de transformação. Compreender, que mesmo sem saberem, eles são também conatus: a potência que persevera a essência da vida que faz dos trabalhadores a produção de um mundo gratificante. E que, mesmo havendo entre eles, discordâncias ideológicas, eles, querendo ou não querendo, são essa potência que aumenta a alegria de viver. E que nenhum governo, por mais tirânico que seja, consegue destruí-la.
Ele tirou um celular do bolso da calça, simulou, falando alto, que estava se comunicando com alguém, dizendo que tudo estava correndo bem e que logo, logo, mantinha contato. Sorriu, afirmando que eram outros membros do Movimento Conatus que estavam do lado de fora querendo saber notícias. Bateu três cinco vezes na madeira, e começou a contar o motivo real da presença dele naquela casa do povo. Então, os deputados reacionários ouviram o que eles jamais imaginavam em suas existências ouvir. O, jovem, calmamente, disse que se eles não aprovassem o reajuste dos professores em 20%, mais o Vale Transporte, Vale Refeição, HTP, Plano de Saúde, eles jamais seriam eleitos no Amazonas porque ninguém de todas essas famílias que pertenciam ao Movimento Conatus iria votar em nenhum deles. E mais, que eles iriam fazer a maior marcha de toda a história do Norte até o Palácio do Governo e Prefeitura. E mais ainda, como uma grande parte dos pais e estudantes trabalha no distrito e no comércio, no dia da grande marcha, eles não iriam trabalhar. O que significaria prejuízos de bilhões ao comércio e a indústria. E de quebra, ao estado e a prefeitura.
Foi uma loucura, os deputados foram ao delírio. Os dois que estavam próximos do presidente exigiram que a votação fosse feita naquele momento com os 20%, e com efeito retroativo. Um deputado considerado o mais baba-ovo, disse que por ele o aumento, devido à defasagem, deveria ser de 40%, porque o estado e a prefeitura têm arrecado muito. O presidente respondeu agitado, que por ele era pra já e o governador não poderia de jeito nenhum anular a votação, é a voz do povo.
Foi uma votação relâmpago. Nem Zeus seria mais rápido. Os professores comemoraram. Acabaram as diferenças ideológicas referentes às causas da categoria. Um deputado, que trazia sempre guardado no bolso uma garrafa de uísque, ofereceu goles aos presentes. Cantaram o Hino Nacional, e os mais exaltados ufanistas, bradaram: Brasil, zil, zil, zil, zil, zil! Outros mais obstinados cantaram a Internacional. Um deputado pegou o microfone e gritou que esse sim, era um verdadeiro dia histórico, logo foi acompanhado de aplausos.
Na alegria contagiante, ninguém viu quando o jovem saiu. Ele dirigiu-se ao porto, pegou um barco e foi embora para Belém. Como já havia terminado o ensino médio, prestou vestibular no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), passou, concluiu o curso de medicina e trabalhou durante anos no interior do Pará.
Aproveitou alguns tempos de férias, viajou pelo mundo, principalmente países pobres da África, Ásia e América Latina. De volta, resolveu morar no Nordeste e, junto com amigos, criou a Faculdade Livre de Filosofia.
*Conto da obra, Contos Sem Descontos, de autores da Associação Filosofia Itinerante (Afin), em preparação. Mande o seu que nós publicamos gratíssimo.