A sentença “tudo acabou, eu não te amo mais”, pronunciada por ela latejava como consciência imperiosa que ele não podia se desfazer na madrugada fria. Com as mãos nos bolsos, ele caminhava pelas calçadas sob as luzes lhe emprestando uma atmosfera soturna própria para um fim de romance.
Uma visão crepuscular era, naquele momento, o mundo para ele. Foi assim, que o filósofo Plotino lhe surgiu com seu tratado Do Amor, e em seguida, Lacan, conversando com Sócrates, lhe afirmando que “amar, é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. As palavras iniciaram uma dança de desnudez de suas armaduras sociais e, então, surgiu-lhe a estética poética como frêmito salvador de seu ser.
Absorto, em seu mundo crepuscular, necessária ausência da percepção-imediata, ele foi trazido à objetividade, onde se encontrava seu amor-partido, pela voz de um rapaz com um revólver em punho afirmando ser um assalto. Ele, calmo, com um sorriso escondido na sombra de um poste onde parara, disse ao rapaz que só tinha vinte cruzeiros e foi entregando o dinheiro. O rapaz pediu o celular, ele respondeu que não usava celular e que não tinha outro objeto para lhe entregar. O rapaz simulou uma revolta, e ele completou dizendo que a única coisa de valor que carregava era uma poesia de amor que acabara de criar.
O rapaz sorriu contente e pediu a poesia dizendo que era para dar de presente a sua namorada. Ele perguntou se o rapaz tinha uma caneta e um papel, o rapaz respondeu que não, então foram até um bar próximo e pediram do garçom uma caneta e um papel. O rapaz demonstrando alegria pediu uma cerveja e dois copos. Enquanto ele escrevia a poesia, iam tomando a cerveja.
Quando terminou de escrever a poesia entregou-a ao rapaz. O rapaz deu um beijo no papel, chamou o garçom e pagou a cerveja com os vinte reais que tinha recebido dele. O rapaz lhe deu um abraço dizendo que com a poesia sua noite estava ganha, e saiu. Depois de andar cinco quarteirões, ao atravessar a rua, foi atropelado tendo morte instantânea.
O corpo no Instituto Médico Legal teve suas vestes tiradas pelo auxiliar do médico de plantão. Um rapaz de uns vinte e cinco anos. Junto com sua carteira de identidade, ele encontrou a poesia. Leu os primeiro versos, gostou, e guardou a poesia para oferecer ao seu namorado.
Quando deixou o plantão, alta madrugada foi a um bar fazer um lanche. No momento de pagar a conta, a poesia caiu de seu bolso e o vento alojou-a em uma cadeira. Um casal de namorados chegou à mesa onde se encontrava a poesia e o namorado pegou a poesia, começou a lê e disse à namorada que havia achado uma joia.
Dois anos depois, em um começo de madrugada, o poeta resolveu ir ao um point-noturno, uma espécie de pub-íntimo, onde ocorriam alguns shows musicais e lançamentos de novos cantores e cantoras. Chegou, sentou em um dos cantos do local, pediu uma bebida e ficou a apreciar um senhor com um bandoneon executar tangos de Piazzola. Em seguida um rapaz cantou músicas de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Quando o rapaz terminou sua apresentação, o gerente do recinto pegou o microfone e, com entusiasmo e satisfação, anunciou a grande atração da noite. Uma cantora revelação que ia lançar na casa o seu primeiro CD.
A cantora apareceu sob os refletores do palco, acompanhada por quatro músicos-instrumentistas, cumprimentou todos e agradeceu às presenças. Na sequência, disse que iria cantar a música que abria o CD, e que, para ela, era a música que mais gostava, principalmente pela letra, obra de um amigo regente e produtor musical do CD.
Ele, que desde que o senhor anunciara a nova atração encontrava-se de cabeça baixa, começou a fazer relação da voz da cantora com a voz de alguém que conhecia. Deixou-se ficar por alguns momentos de cabeça baixa para tentar, por teimosia-lembrança, reconhecer a voz. Foi então que os músicos executaram os acordes iniciais e a cantora pronunciou os primeiros versos da canção. Ele suspirou fundou e levantou a cabeça sorrindo dizendo para si que se não fosse coisa do homem ele acharia aquilo inconcebível. Lembrou Marx, citando Protágoras, “nada do que é humano me é estranho”.
Ficou escutando a voz grave, mas cativante da cantora, dando vida ao poema, que concedera ao rapaz da noite do fim de seu romance. Pensou que tudo que estava acontecendo era coisa do homem. A mulher que lhe disse que não lhe amava, amava um poema seu sem saber. Tomou um drinque, sorriu e Lacan, piscou para ele lembrando, “O sujeito vê o seu ser numa reflexão em relação ao outro, isto é, em relação ao ideal do eu”.
Deixou o point-noturno sob os aplausos da plateia que reconhecia o talento ímpar da cantora.
*Conto do livro em preparação, Contos Sem Dez Contos.