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VALE A PENA OUVIR: RAÍCES DE AMÉRICA FAZ SHOW PARA COMEMORAR 40 ANOS DE CARREIRA

Agosto 31, 2022

RAÍCES DE AMÉRICA

Grupo volta aos palcos com espetáculo que reúne Drummond, Neruda, Cortázar, Meireles y Galeano

Raíces de América.Créditos: Kiyo/Divulgação
Julinho Bittencourt

Por Julinho Bittencourt

CULTURA – 31/8/2022 ·

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O grupo Raíces de América comemora 40 anos de carreira em um espetáculo gratuito (veja o serviço abaixo). Relembre aqui a célebre interpretação deles para o clássico “Guantanamera”.

SERVIÇO – Raíces de América: Drummond, Neruda, Cortázar, Meireles y Galeano

Data e horário: 1 de setembro, às 21 horas

Local: Teatro João Caetano – Rua Borges Lagoa, 650 – Vila Clementino – São Paulo – SPhttps://d-35197578793011808357.ampproject.net/2208172101000/frame.html

ESPETÁCULO GRATUITO – os ingressos serão distribuídos uma hora antes do show.

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TEMAS

Raíces de América

A AMÉRICA LATINA REDESCOBRE A POETISA GABRIELA MISTRAL

Agosto 30, 2022

Poeta chilena que revolucionou a educação no México ressurge, nos dois países, como referência de nova geração. Filha de camponeses, foi feminista, dissidente sexual e… Nobel de Literatura. Seus arquivos chegam a um Chile que se reinventa

OUTRASPALAVRAS

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Por Carla Ulloa Inostroza

Agosto – 2022 –

Por Carla Ulloa Inostroza, na Revista Anfíbia | Tradução: Maurício Ayer | Arte: Juan Fuji

– Você é bem-vinda para saturar este ambiente com os dons de seu nobre espírito.

21 de julho de 1922. Lucila Godoy Alcayaga chega de trem na Cidade do México. Tem 33 anos, é professora autodidata, escreve poesia mas a sua obra é inédita. Em sua recente visita aos portos de Valparaíso, El Callao, Havana e Veracruz, foi recebida com honras. O seu anfitrião na capital é José Vasconcelos. A viagem é acompanhada pela imprensa latino-americana. É um evento e tanto, mesmo cem anos depois.

A sociedade mexicana carrega o trauma de uma ditadura; Porfirio Díaz já ficou para a história e a Revolução Mexicana implementa novas políticas. É por isso que o governo do general Álvaro Obregón escolhe para suas fileiras um dos revolucionários mais carismáticos e inteligentes. Por ser hábil, apaixonado e agitador de escritores, José Vasconcelos é nomeado reitor da Universidade Nacional e recebe uma sonhada missão: alfabetizar o México com bibliotecas que se tornem o epicentro da cultura e com um dos maiores orçamentos destinados à educação em toda a história da América Latina. Quando o escritor toma posse, há 70 bibliotecas. Em dois anos funda mais de 2 mil, implementa estratégias para democratizar o acesso à leitura e à escrita. Faz tudo isso em uma aliança viva e lúdica, de mãos dadas com professores, poetas e artistas que percorrem todo o país.

Vasconcelos vira a educação pública de ponta-cabeça; torna-a massiva, acessível, sonhadora. Esta revolução revoluciona todos os seus participantes. É também uma chave para Lucila Godoy Alcayaga: enquanto a autora chilena acompanha, protagoniza e se entrega a esse processo, ela também se transforma. De Lucila nasce Gabriela Mistral, a mulher pública, com força para fazer discursos e dirigir projetos, a primeira pessoa na América Latina a obter o Prêmio Nobel de Literatura. A sua ascensão é marcada por seu talento mas também pelas oportunidades. Filha e irmã de professores, amiga de pessoas que têm bibliotecas, nascida em uma sociedade onde as mulheres fundam jornais e lutam pelos direitos das meninas, Mistral tem diferentes estímulos, tais como crescer ouvindo histórias lidas em casa, em voz alta. Autodidata, apaixonada, exigente consigo mesma: naqueles anos, em que a vocação se materializava, ela comia pouco, lia muito e vivia cansada.

Esta viagem lhe provoca otimismo, lhe dá confiança e, sobretudo, a chave do seu quarto. Nem tudo é poesia em sua carreira. Não é apenas lhe permite aprofundar-se em seu talento. O México lhe dá segurança econômica: um pagamento estável em nome do Ministério da Educação Pública. Personalidade cultural, aliada política, escritora e professora: a forma como desempenha esses quatro papéis ao mesmo tempo durante 21 meses é fundamental para que sua carreira salte de escala. Ganha enorme visibilidade, a ponto de ganhar o Nobel.

José Vasconcelos está por dentro da cena literária continental. Bilíngue e leitor de revistas, sabe identificar os seus pares, não só no amor à literatura, mas também na capacidade de usar as palavras para conduzir a ações políticas que transformam a realidade. Ao ouvir seu nome, não hesitou: Gabriela Mistral também dedicou sua vida à mesma tarefa e no Chile, um país tão conservador. Eles estavam unidos pela poesia, ideologia e religião: ambos são cristãos.

Vasconcelos transforma a pedagogia mexicana. Cria bibliotecas de diferentes tipos de funcionamento: móveis, grandes ou pequenas, sempre rodeadas de música, concertos, murais, obras plásticas, dança e canções infantis. O objetivo é alfabetizar milhões de pessoas, cuidar também da educação espiritual e artística. Convocam professores missionários que renovam as salas de aula e as tornam dignas de um mundo melhor. O México sangrou por décadas, havia pouco a perder e muito a imaginar.

“Já viajei com os trens velozes ou com o ritmo lento do meu cavalo de serra, o México, território ao mesmo tempo trágico e gentil, onde um povo semelhante ao japonês vive a cada dia a cordialidade e a morte. E esse meu olhar, colecionando quarenta panoramas, leva uma onda de sangue quente ao meu coração. Graças ao México, pelo presente que me deu de sua infância branca: graças às aldeias indígenas onde vivi com segurança e felicidade; graças à hospedagem, não mercenária, das austeras casas coloniais, onde fui recebida como filha; graças à luz do planalto, que me deu saúde e felicidade; aos pomares de Michoacán e Oaxaca, por seus frutos cuja doçura ainda está na minha garganta; graças à paisagem, linha a linha e ao céu que, como num conto oriental, poderia ser chamado de “sete suavidades”. Mas agradeço, sobretudo, por estas coisas profundas: vivi com minha norma e minha verdade nesta terra e nenhuma outra norma me foi imposta; ensinando sempre tive o senhorio de mim mesma; eu exprimi com alegria minha coincidência com o meio ambiente, muitas vezes, mas outras vezes exprimi minha diversidade. Deus livre o México de novas angústias”.

***

A revolução política realiza o sonho dos poetas. Vasconcelos tem entre suas tarefas urgentes publicar textos com leituras situadas da realidade social nacional. Ele primeiro se conecta com Mistral através dos meios impressos. A chilena já colaborava na revista El Maestro, projeto de Vasconcelos como reitor da Universidade Nacional.

Gabriela Mistral também ama o México, pelo que este país a desafia:

“O México não é um lugar para ficar por toda a vida. É um pântano político.”

Ela é uma das poucas mulheres tratadas com respeito por Vasconcelos; educada na região central do Chile, ela sabe lidar com a dominância dos homens de letras.

Durante sua estada no país da revolução, publicou dois livros: Desolation, em 1922, sua primeira coletânea de poemas publicada em Nova York, e Readings for Women, em 1923, uma antologia encomendada pelo Ministério da Educação. Termina Tenderness, sua segunda coletânea de poemas, de 1924, e avança Motivos de San Francisco (póstumo, 1965). Colabora na antologia Leituras clássicas para crianças , em 1924; a versão poética de Cinderela antecipa um tema que dá origem à versificação de outros clássicos. Também reúne textos traduzidos para o espanhol para crianças. Em Lecturas para mujeres, Mistral expressa seu desejo de ter mais clássicos escritos em espanhol para mulheres:

“Gostaria que, na arte como em tudo, pudéssemos nos bastar com nossos próprios materiais: que nos sustentássemos, como dizem, com sangue de nossas próprias veias, mas a indigência, que nos faz vestir tecidos estrangeiros, também nos faz nutrir-nos espiritualmente com o sentimento das obras de arte estrangeiras”.

***

Por que essa revolução cultural é lembrada no México e no Chile cem anos depois?

Em 2022, para comemorar o aniversário, dezenas de pesquisadores dos 32 estados do México começaram a trabalhar na Direção Geral de Memória Histórica e no Arquivo Geral da Nação. Recuperaram os arquivos públicos relacionados à vida e obra de Gabriela Mistral. E esta compilação será um presente do governo do México ao governo do Chile. Ela tem uma peculiaridade: documenta o percurso e a contribuição da autora nas primeiras décadas do século XX. Até então, sua vida e obra só haviam sido estudadas a partir de 1945, quando recebeu o Prêmio Nobel. Esses 400 documentos não revolucionam a biografia da autora ou sua obra – como aconteceu com o legado entregue por Doris Atkinson ao Chile em 2007, quando o lesbianismo de Mistral foi “comprovado”–, mas aprofundam a rearticulação dos governos progressistas de ambos os países e suas ideias sobre o latino-americanismo. Este acervo explica por que Gabriela Mistral continua sendo a pessoa chilena mais conhecida no México, por que o país tem centenas de escolas em sua homenagem, qual é o símbolo que lhe permite continuar desempenhando um papel nas relações bilaterais de ambos os países.

“Tenho em meu espírito um hemisfério mexicano, onde cada coisa de vocês, ruim ou boa, resulta em ansiedade ou alegria […] O México é para mim o pedaço de mundo onde vi fazer a partilha da terra, da ferramenta, do livro e do pão na escola. Isso não se esquece, ainda que se viva muito, e isso lava o resto, de erros e misérias humaníssimos […] sou uma voz do México metida em uma garganta estrangeira.”

O México vive o sexênio da “Quarta Transformação”, conceito criado pelo governo de Andrés Manuel López Obrador para se diferenciar da etapa anterior dos partidos de direita PRI e PAN e sua ligação com os Estados Unidos. Um dos pilares da 4T é a amizade entre México e Chile. É por isso que a figura de Mistral é quase um pretexto luxuoso para saudar seu país de nascimento no próximo outubro, quando sua terra irá aprovar ou rejeitar sua primeira constituição democrática, iniciando a transição para um estado plurinacional, intercultural, regional, ecológico, constituído como República Solidária, inclusiva e paritária.

***

Quando Lucila Godoy chegou ao México, as universidades da América Latina estavam convulsionadas pela efervescência das organizações estudantis. A Reforma Universitária já havia ocorrido em Córdoba, Argentina.

Mistral agitava esse processo. Em julho de 1922, ele enviou uma mensagem à Federação de Estudantes do México:

“A aproximação em direção ao povo, por parte dos alunos, foi muito discutida. É ruim que jovens universitários se tornem líderes trabalhistas? Não só aceito esta colaboração, como a louvo calorosamente. Tudo o que afasta o aluno do ambiente livresco, tudo o que leva à mistura na vida, a sentir seu hálito ardente no rosto, me parece imensamente bom. Olho para o ensino com tanta irritação em seu aspecto de rito frio, que me alegra até a raiz da alma ver os jovens saírem dessa máquina morta para entrar em ação, que, mesmo quando está errada, enriquece o experiência […] O Chile não é, como o México, um país de grandes recursos e não pode multiplicar, como faz o seu Governo, as escolas na medida exigida pelo nosso analfabetismo sul-americano ainda vergonhoso […]

Enquanto Gabriela morava no México, em 1923, a Universidade do Chile lhe concedeu o título de professora por “graça”. Como filha da classe trabalhadora e camponesa, teve como única professora a irmã Emelina. Como muitas mulheres pobres, ela havia trabalhado como professora, primeiro em escolas rurais e depois como professora e diretora de escolas secundárias femininas em La Serena, Antofagasta, Punta Arenas, Temuco e Santiago. Esses trabalhos lhe ensinaram a identificar organizações estudantis e líderes comprometidos com a justiça social.

Cem anos depois, o Chile é dirigido por líderes estudantis. Os sonhos de Gabriela Mistral continuam se realizando. E com a doação de 2007 começou a aparecer a história de uma escritora revolucionária e atraente para os jovens e os ávidos movimentos sociais. Naquele ano, a sobrinha do testamenteiro de Gabriela Mistral doou todos os documentos que estavam nos Estados Unidos. Um ano antes morria Doris Dana, a companheira da poeta, que por 50 anos protegeu os documentos relacionados à sua orientação sexual. Elas haviam pactuado: depois da morte dela, contariam ao mundo que eram lésbicas. Antes, para quê? Queriam viver em paz.

A abertura desses arquivos – cedidos ao Chile durante o governo de Michelle Bachelet – e, em particular, das cartas de amor e das experiências dissidentes que se leem nas entrelinhas, reaviva o interesse por Gabriela Mistral. Precisamente em 2006, aliás, aconteceu a grande mobilização estudantil dos “pingüinos” (os estudantes secundaristas), o primeiro grande protesto social no período da democracia.

Hoje, quando às demandas estudantis se somam as feministas – e tantas outras –, Gabriela Mistral está em toda parte. É a referência dissidente.

Para as pessoas que querem legalizar a maconha – Mistral usava, para aliviar a dor do câncer –, para as mulheres que lutam contra o lesbofeminicídio, para as camponesas pobres, para as indigenistas, para as escritoras, para o coletivo queer, para o ambientalismo, veganismo, astronomia: é uma referência transversal. Ela também é reconhecida porque conheceu muitas pessoas importantes que posteriormente defenderam os direitos humanos – como o juiz Juan Salvador Guzmán Tapia, o único que julgou Pinochet.

Em sua genealogia, os movimentos de luta no Chile definitivamente a adotam entre suas referências indiscutíveis. Neruda é discutível, Neruda está cancelado. Allende é indiscutível, Mistral também: hoje é muito mais amada e conhecida pelos diferentes povos do Chile do que era há 20 anos.

Esse processo de atualização dos usos da memória em torno de Gabriela Mistral foi sustentado por um boom editorial. A estreia do documentário Locas mujeres, da cineasta María Elena Wood, oferece imagens, áudios e vestígios nunca antes vistos.

Recuperar sua figura é habilitar todas as suas dimensões. É resgatar os significados das práticas e dos discursos. É abraçar suas estratégias para intervir em um ambiente patriarcal homossocial muitas vezes avesso à sua presença e à das escritoras em geral.

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CARLA ULLOA INOSTROZA

é professora de história, mestre e doutora em estudos latino-americanos. Autora do livro “Gabriela Mistral en México: la construcción de una intelectual (1922-1924)”.

VAI-VAI, QUILOMBO SARACURA E O METRÔ: REACENDEM LUTA PELA MEMÓRIA NEGRA NO BEXIGA

Agosto 29, 2022

VAI NO BIXIGA

O futuro e o significado de sítio arqueológico do quilombo, encontrado nas escavações do metrô, está em disputa

Gabriela Moncau e Pedro Stropasolas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 29 de Agosto de 2022 –

Roda de conversa sobre a história da resistência negra no Bixiga junta moradores nas escadarias do bairro – Pedro Stropasolas

“Respeita a minha história”. A frase estampava a camiseta de Fernando Penteado que, aos 75 anos, é embaixador mestre do samba paulista e presidente do conselho deliberativo do GRCSES Vai-vai, a agremiação que mais venceu o Carnaval de São Paulo. E resumia a luta em torno da história que veio literalmente à superfície e que junta o Vai-vai, o bairro do Bixiga, a história do samba, a memória da resistência negra em São Paulo, um dos maiores quilombos que existiram na cidade e um metrô.

Isso porque durante as escavações de uma estação da Linha 6-Laranja do Metrô, entre as ruas Dr. Lourenço Granato e Manoel Dutra, foi encontrado um sítio arqueológico do Quilombo Saracura, comunidade negra que deu origem ao bairro do Bixiga (formalmente nomeado Bela Vista). Objetos como garrafas, louças e talheres datam do século 19 ao início do 20 e foram registrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como de alta relevância.

Saiba mais: Poder público esquiva de demanda por preservação do sítio arqueológico do Quilombo Saracura

A descoberta dos vestígios deixados por quilombolas às margens do hoje aterrado Córrego da Saracura, que deságua no rio Tietê, deu origem ao movimento Mobiliza Saracura Vai-vai. Formada por moradores do bairro, coletivos do movimento negro, sambistas, pesquisadores e outros ativistas, a articulação elencou reivindicações bastante específicas cujas respostas por parte do poder público, no entanto, têm sido evasivas.

O grupo demanda a paralisação temporária das obras, um projeto de preservação do sítio arqueológico que inclua a construção de um memorial e uma política de educação patrimonial permanente, bem como a mudança do nome da estação: ao invés de 14 Bis, que seja Saracura Vai-vai. Além disso, defende que, para garantir a permanência da população negra na região, sejam implementadas estratégias contra a previsível gentrificação que a chegada do metrô deve trazer. 

A Linha 6-Laranja do Metrô, prevista para ser inaugurada em 2025, está sendo feita por uma parceria público-privada. A Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, atualmente sob gestão do governador Rodrigo Garcia (PSDB), contratou a concessionária Linha Uni e as empresas Acciona e Alstom.  

O processo que a comunidade luta para impedir – sintetizado em cartazes pelas ruas como o que diz “Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico” – já está em curso. E tem na remoção da quadra do Vai-vai a sua expressão mais evidente.  

A quadra foi deslocada permanentemente para a marginal Tietê. Mas o acordo firmado entre a agremiação e a Acciona é que uma sede social da escola seja construída pela empresa em outro endereço (na rua Almirante Marques Leão), mas no seu território de origem. Restou, na antiga quadra, uma placa da Secretaria Municipal de Cultura indicando que ali já esteve uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo.

O Quilombo Saracura 

Quando o avô de Fernando Penteado saiu de Amparo (SP) e em 1898 chegou, ainda menino, ao Bixiga, fazia apenas 10 anos da abolição formal da escravatura. Do pai herdou a música e, anos mais tarde, se tornaria o “Fredericão da zabumba” que “fazia a terra tremer”, segundo Geraldo Filme canta na clássica música Batuque de Pirapora. No Quilombo Saracura, os avós de Fernando se conheceram e ali cresceram as gerações seguintes.

No século 19, ao lado do metrô Anhangabaú, no que é hoje a Praça da Bandeira, ficava um entreposto onde tropeiros e mercantes que vinham rumo à Estrada do Piques – hoje rua da Consolação – vendiam mercadorias e pessoas escravizadas. Algumas conseguiam fugir.

Foi assim que, em região brejeira, se formou o Quilombo Saracura, um dos primeiros da capital paulista. O historiador Ernani Bruno encontrou, entre as atas da Câmara Municipal, um requerimento de 1831 pedindo que o poder público fechasse as passagens onde corria o rio Anhangabaú (modo como por vezes o rio Saracura era chamado, já que é seu afluente). Na justificativa, lia-se que nas margens habitavam “ladrões”, “escravos foragidos” e “aquilombados”.

Em 1907 uma matéria do jornal Correio Paulistano descreve a “linha de casebres que borda as margens do riacho” e se refere à região como “um pedaço da África”: “Cabras soltas na estrada, pretinhos semi-nus fazendo gaiolas, chibarros e longa barba ao pé dos velhos de carapinha embranquecida e lábio grosso de que pende o cachimbo, dão àquele recanto ares do Congo”. O texto menciona também um morador, “Pai Antonio”, cujas “mandingas celebram os supersticiosos”. Este lugar foi um dos berços paulistanos do samba.

Fernando Penteado nasceu numa terça-feira de carnaval, em 1947. Poucos anos depois, em 1953, foi batizado no Samba de Pirapora, com a presença de figuras como Carlão do Peruche e Geraldo Filme. Filho de um homem negro e de uma mulher branca, de ascendência italiana, é fruto do encontro de dois dos povos que passaram a habitar a Bela Vista. Um do continente africano, trazido à força. Outro, do europeu, que chegou na região quase dois séculos depois, voluntariamente e com estímulos governamentais, como parte de uma política estatal de branqueamento pós-abolição.

Não é de se espantar que, em um país cujo racismo se manifesta também pela tentativa de apagamento, o bairro seja lembrado, para os que não o conhecem com mais profundidade, como exclusivamente típico da cultura italiana, com suas famosas cantinas.

O Vai-vai e o atropelo do “progresso”

Foi no terreno da antiga quadra do Vai-vai, a três metros de profundidade, que o sítio arqueológico foi descoberto. “O progresso vem para trazer coisas novas. Mas esse progresso apaga o passado”, sintetiza Penteado. Essa não é a primeira vez que ele vive, com a escola na qual desfila desde os cinco anos de idade, uma remoção.

Fundado em 1928 (mas oficialmente em 1930), o Vai-vai tinha uma casinha na rua 14 de julho. Até que, em 1970, veio o Minhocão (o elevado que, por via expressa, liga a região da Praça Roosevelt até a Barra Funda). “Somos um povo turrão. ‘Não vamos sair daqui, não vamos sair, não vamos sair'”, relata Fernando. Mas o oficial de justiça chegou – em plena semana de carnaval. E não teve jeito.

“Fomos desfilar. Saímos da avenida às 4h da manhã, pegamos um caminhãozinho, fomos lá na 14 de julho, violamos o lacre e catamos nossas coisas”, conta Penteado, que é também membro da Academia dos Baluartes do Samba de São Paulo. “O seu Chiclé, que passou a ser nosso presidente, tinha arrumado um terreno na praça 14 Bis. Tinha cerquinha de bambu, uma edícula, guardamos os instrumentos, fizemos um murinho. Ficamos lá. Por 50 anos. Aí veio outra vez o progresso… A nos desalojar.”

Segundo Penteado, desde 2005, de novo, eles dizem que não vão sair. “Até que… bum! Nos vimos ali como naquela música do Adoniran [Barbosa], Saudosa maloca. A maloquinha sendo destruída e eles do outro lado da rua olhando”, descreve. “Tivemos que tirar os instrumentos, pusemos na rua. Não tínhamos para onde ir. Entendeu? Tudo na rua. Os maquinários chegando…”, suspira.

Até hoje, Penteado evita passar ali. Prefere dar a volta. “Não, não dá assim para… porque 50 anos. Quantas vidas não tiveram ali? Eu conheci minha esposa ali. Meus filhos nasceram ali. Quantos amigos, quantos namoros, quantos, quantos, quanta alegria, quanta tristeza? São 50 anos.”

:: Samba de coco: a história da família que faz do ritmo a própria natureza do Brasil ::

O Vai-vai surge da dissidência da torcida do antigo time de futebol da Saracura, o Cai-cai. Fernando Penteado ouviu a história em primeira mão do seu avô, que estava lá. Segundo ele, a banda da torcida começou a fazer mais sucesso que o próprio time de futebol e era tida como arruaceira – daí os desentendimentos começaram. O estopim foi quando o pessoal do time fez uma festa e não convidou os músicos. Que foram mesmo assim. Tocando na porta, teriam angariado parte dos convidados e, ali na rua, a coisa esquentou.

Da ruptura nasceu o cordão carnavalesco Vai-vai, com as mesmas cores do time, mas invertidas: ao invés de branco e preto, preto e branco. Em 1972 o cordão se transformou em escola de samba.

Entre as figuras históricas da agremiação está o diretor de bateria Pato N’água. Mestre do apito, como era chamado, o sambista e capoeirista foi morto em 1969, em circunstância nunca bem explicada. Quando chegou a notícia, Geraldo Filme compôs Silêncio no Bixiga. Ele, aliás, ao lado de Osvaldinho da Cuíca, Pé Rachado e dona Rosa, está também entre as grandes personalidades da história da escola.

Rezamos cantando 

Em 2022 o samba-enredo do Vai-vai teve como tema o conceito do Sankofa. Originado de um provérbio tradicional dos povos de língua Akan da África Ocidental (como Gana, Togo e Costa do Marfim), trata-se de um símbolo Adinkra: um pássaro mítico que voa para a frente, com a cabeça voltada para trás, carregando um ovo no bico. Representa o potencial de avanço a partir do olhar para trás; a ideia filosófica de que conhecer o passado permite a construção do futuro.


O provérbio que origina o símbolo é, em Akan, “se wo were fi na wosan kofa a yenki”: pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. / Reprodução

“O samba-enredo é uma reza para nós”, resume Penteado. “Eu, moleque, ia para o Vai-vai para sambar e rezar. Sabe?… Porque você goste ou não, o samba é isso. ‘Ah, mas eu não sou, eu não gosto’. Mas se você estiver numa escola de samba, no primeiro repique do tambor, os orixás encostam em tudo. Porque foram chamados ali.”

“Eu acho legal a miscigenação que o samba faz. Só fico bravo mesmo quando querem se apropriar. E é o que acontece com a nossa cultura. Enquanto é ilícito, é coisa de preto. Já fui chamado de vagabundo porque sou sambista. Já fui chamado de macumbeiro porque minha tia tinha um centro. Passou a ser lícito, o branco vem, já faz comércio, toma conta e fala que é dele”, argumenta o membro da velha guarda do Vai-vai.

Cantarolando o Vai cuidar de sua vida, samba que fala disso, Penteado relaciona as mudanças impostas pelo “progresso” que chega no Bixiga e a luta pela preservação da memória do quilombo, com o embranquecimento de diferentes manifestações da cultura afro-diaspórica. Sobre as coisas que se perdem. “A gente, mais antigo, percebe isso”, explica.

“Nossa invisibilidade acontece desde quando nós chegamos aqui, no século 16”, diz Fernando, que começa um relato histórico, nos transportando, de forma imaginativa, como se fôssemos membros da mesma família, sequestrados da África. Chegando no Brasil, “a primeira coisa que faziam era não nos comprar junto. Mas o que a gente fazia? Para não perder nosso vínculo, a gente rasgava um pedaço de roupa, desenhava um símbolo no pano. Se somos nós três, são três pedaços, cada um levava um pedaço. E daí… nunca mais a gente ia se ver. A única lembrança era aquele pedacinho de pano”.

Passam os séculos. A partir de 1827, por conta das procissões para agradecer a santa de Pirapora de Bom Jesus (SP) pelas colheitas, pessoas escravizadas de diferentes partes do estado eram levadas pelos senhores até a cidade e se alojavam em barracões na margem do rio Tietê. Ali, noite adentro, eram feitas as rodas de bate-semba: nasciam os batuques de Pirapora.

“De repente, numa dessas rodas, isso já em 1900 e pouco, eu olho para você. E falo nossa, somos parentes. Como eu descobri? Você estava usando o paninho”, diz Fernando. “E no ano seguinte, trazemos o paninho em uma flama ou em um estandarte”, relata. “A gente respeita tudo quanto é paninho. Porque atrás dele tem uma comunidade. Entendeu? Atrás dele tem gente. Isso é muito forte para nós.”


Fernando Penteado tem 75 anos, é sambista, jornalista e conselheiro vitalício da Federação das Escolas de Samba e Entidades Carnavalescas do Estado de São Paulo. / Pedro Stropasolas

Fernando Penteado levanta e caminha até o estandarte do Vai-vai, pendurado na parede. “Nosso paninho é esse aqui.”

A coroa faz referência ao cumprimento frequente entre a comunidade negra no Bixiga até a década de 1970: meu rei, minha rainha. “Já que éramos reis e rainhas lá, aqui vamos permanecer assim. Essa coroa representa tudo isso. A negritude, a resistência do Bixiga.”

O ramo de café, embaixo, é por conta dos barões do café, que moravam em grandes casarões na av. Paulista, onde muitas das moradoras do Bixiga trabalhavam e de onde vinham, por vezes, doações para o cordão. “Se doaram alguma coisa, vamos homenageá-los aqui, para aumentar”, ri Penteado.

Quem desenhou o paninho do Vai-vai foi seu avô. Fredericão não estaria vivo para ver seus netos e bisnetos cantando o samba-enredo de 2022. Mas a luta em torno da memória da resistência negra neste território, da qual ele e tantos outros fizeram parte, faz com que, como sugere o sankofa, a sua história integre a disputa pela ressignificação do presente e pelo que será do futuro. “Tambor africano de negra bravura / é o mesmo tambor da Saracura”, diz a letra: “Quilombo do samba não morre jamais”.

Edição: Nicolau Soares

BRECHT: TEATRO E LUTA DE CLASSES

Agosto 28, 2022
  1. CULTURA

OPINIÃO

Sobre a profissão do ator traz a visão de Brecht, um dos mais inovadores dramaturgos da história, sobre atuação teatral

Iná Camargo Costa

São Paulo (SP) |

 28 de Agosto de 2022-

Para Brecht, autor da peça Schweyk na 2ª Guerra Mundial, só o que tem importância histórica deveria ser mostrado – BERTRAND GUAY / AFP

Como disse um militante da causa socialista no Brasil, vivemos num tempo em que, sem paradoxo, a classe dominante exibe uma afiadíssima consciência de classe enquanto o proletariado mal sabe o que é isso. Este nem ao menos percebe que seus interesses são diametralmente opostos aos da classe dominante e, por isso, adere a projetos políticos que só contemplam a continuidade da dominação. Estamos, já em homenagem ao livro objeto desta resenha, propositalmente assumindo a máscara de ignorante do papel desempenhado por partidos tidos como de esquerda entre nós para contribuir com tal descalabro.

Como parte da classe trabalhadora, atores sofrem da mesma síndrome e a expõem de maneira muito evidente (nos palcos, nas telas e nas plataformas digitais), uma vez que se transformaram em instrumentos de precisão para o cultivo e a disseminação dos valores ideológicos da dominação: individualismo exacerbado, empreendedorismo, competitividade alucinada e uma infinidade de etcéteras.

Um livro como Sobre a profissão do ator não tem nada a dizer à chamada “classe” teatral integrada na coreografia geral das nossas artes cênicas na disputa em graus variados por celebridade nas mídias antigas (como os palcos) e recentes (como as plataformas digitais). Em compensação, os que já ouviram falar em Brecht e teatro épico, e se interessam pela briga de martelo e foice no escuro que eles pressupõem, podem começar a festejar esta publicação pois, para variar, o Mestre aqui objetivamente suprassume tudo o que já foi produzido, desde o século XVIII, sobre a arte de representar gente em cena. E pela razão que ele mesmo enuncia: adota o ponto de vista mais exigente possível, que é o dos trabalhadores na luta de classes. Isto significa suprassumir as técnicas dramáticas da representação de relações interpessoais através das épicas da representação das determinações de classe das relações interpessoais.

O livro foi organizado por Werner Hecht e publicado na Alemanha em 1970. Publica-se no Brasil agora, passado meio século, graças ao empenho da Editora 34 e dos tradutores (militantes da causa) Laura Brauer e Pedro Mantovani, que ainda produziram uma introdução muito didática, e por isso mesmo bem vinda, além de notas extremamente esclarecedoras. É bom avisar desde já que a própria organização do livro é brechtiana: Hecht tratou de dar títulos a vários textos de modo a neles evidenciar que Brecht pressupõe o conhecimento do trabalho de Stanislavski.

Não se pode atribuir exclusivamente à ditadura que nos martirizou nos 21 anos transcorridos entre 1964 e 1985 a responsabilidade pela ausência entre nós do Brecht preocupado com o trabalho do ator épico. Há outros responsáveis pela tese maledicente de que ele não se interessava por esta parte essencial à plena realização do espetáculo e pelo silêncio em torno deste livro, mas não mergulharemos neste pântano.

Uma das razões para a persistência da referida tese é apresentada por Laura e Pedro na Introdução, nota 4: o desafio que enfrentou o dramaturgo e diretor dialético nestes textos foi o de elevar ao plano do conceito os resultados da experimentação cênica (sobre este item, vejam-se neste volume os elogios aos trabalhos de atrizes como Helene Weigel e Therese Giehse, bem como de atores como Ernst Busch, entre outros). Brecht tratava de enfrentar as dificuldades dos atores (e do público) para compreender o teatro épico em seu contexto histórico que, nunca é demais lembrar, é o da luta revolucionária dos trabalhadores: eis o ponto que nos interessa.

Como insiste Brecht, a profissão de ator está submetida, como todas as demais, às relações capitalistas de produção: o ator é assalariado e o valor do seu trabalho é definido no mercado pela luta de classes. Teatro, cinema, televisão e demais praças de exposição do trabalho do ator podem e devem ser pensadas em conjunto, pois estamos falando de indústria cultural, como queria Adorno e como se designa o setor nos Estados Unidos. Brecht acrescenta que este é um ramo do tráfico de entorpecentes (como as igrejas, acrescentemos). Quanto aos atores (uma especialidade entre inúmeras outras), seu treinamento deve torná-los aptos a produzir os sonhos que, segundo os publicitários (críticos incluídos), “o público deseja consumir”. Até Hegel, na Filosofia do direito, já observava que primeiro se produzem as commodities e depois se buscam os consumidores. Parte importante da técnica do ator desta indústria tem por meta apassivar o público, isto é, extinguir nele a relação ativa, inteligente e igualmente artística com o espetáculo, de modo a produzir a seguinte correlação: quanto maior a arte do ator, menor a do espectador.

Mas desde o século XIX há um teatro sintonizado com a luta dos trabalhadores que se empenha em expor e criticar a convivência social. Na prática e na teoria, o teatro épico é uma síntese dessas experiências. Este livro de Brecht é destinado aos candidatos a atores neste teatro (que não se restringe ao épico, nunca é demais lembrar). Aqui eles são convidados, antes de mais nada, a estudar muito. Só assim aprenderão a entender a diferença entre seu ponto de vista, o do dramaturgo, o da obra e os dos personagens, que desde século XX são designados como figuras porque não correspondem mais ao conceito burguês de personagem. Entenderão que é essencial o estudo da peça como um todo, que esta e cada uma das cenas têm uma estrutura pensada e que o ator precisa se apropriar do pensamento que as estruturou; aprenderão a identificar (isso mesmo!) as contradições e a hierarquizá-las. Sobretudo: aprenderão que em cena atores sempre respondem por dois “eus”: o seu próprio e o da figura a representar. É isto que os habilita, por exemplo, a criticar suas figuras com simples gestos. Aqui também se aprende a historicizar, ou identificar relações de tempo, espaço e relações sociais sem nunca perder de vista que os conteúdos das peças estão em permanente mutação.

Mais algumas coisas que se aprendem: a surpreender-se, ou distinguir o habitual do inusitado, ou o contrário, tornar o habitual esquisito, estranho. Ficar ao mesmo tempo atento e distraído e chamar sempre a atenção do espectador, não para a sua pessoa e sua técnica inexcedível, mas sim para o assunto de que trata a peça. Este é um dos feitos de Helene Weigel. Ou então, o feito de Therese Giehse: elaborar uma concepção de sua figura que dizia respeito à encenação como um todo. Estamos, é claro, falando em diferentes maneiras de produzir os famosos efeitos de estranhamento. É preciso acrescentar que eles estabelecem a relação mais livre possível com o espectador, pois a cena é produzida para produzir conhecimento. Ainda mais importante: estamos no espaço da diversão (é teatro!) e quem não ensina divertindo e não diverte ensinando não tem nada a fazer no teatro: o teatro deve ser um lugar agradável. Atores e atrizes são aqui desafiados a atuar de tal forma que o público se empenhe em voltar e ver o espetáculo novamente para apreender tudo.

Como o ator que só se interessa por si mesmo não passa de um burguês, o ator brechtiano rejeita enfaticamente esta atitude, assim como rejeita a definição burguesa de espectador – uma figura passiva, deficiente mental, disposta a ser hipnotizada por meia dúzia de truques ilusionistas baratos. O ator do teatro épico sabe que o público é dotado de inteligência, informado e capaz de se comportar diante dele como um historiador, interessado em processos históricos, nos modos como a sociedade muda.

Para Brecht e para este espectador, só o que tem importância histórica deveria ser mostrado. E história é a história da luta de classes. Tudo isto e muito mais está neste livro em boa hora editado no Brasil.

Edição: Thalita Pires

CONHEÇA A HISTÓRIA DA FAMÍLIA QUE FAZ DO SAMBA DE COCO A PRÓPRIA NATUREZA DO BRASIL

Agosto 27, 2022
  1. MOSAICO CULTURAL

PERNAMBUCO

Família Calixto abre as portas de sua sede ao Brasil de Fato para contar as origens do coco em Arcoverde (PE)

Pedro Stropasolas

27 de Agosto de 2022 –

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O grupo Coco Raízes de Arcoverde é um símbolo cultural da cidade de Arcoverde (PE) e percursor do coco no país – Divulgação

Em meio à sala repleta de fotografias, criações em madeira, e registros da família, o mestre Assis Calixto viaja no tempo – e em sua ancestralidade – para relembrar o surgimento do samba de coco.

“O coco é uma herança dos escravos. Veio com os navios que traziam pessoas para São Paulo, para Recife, para o Rio e foi se espalhando O pessoal foi trabalhar nos engenhos e à noite eles faziam dança. Agora não tinha nome de coco”, explica.

Ao seu lado, Damião Calixto complementa a história do irmão: a roda de coco, que tinha o nome de Mazuca, surgia como uma dança de trabalho coletiva, feita para pilar o chão de barro das senzalas. 

Assista ao vídeo:

“Todos mexiam no barro para pilar o chão da casa, espalhavam o barro todinho, aí quando era de noite todos iam pisar o barro, para ficar que nem cimento, durinho, bem pisado mesmo. Aí se chamava Mazuca. Hoje é coco. Coco trupé, Coco ciranda. Coco da beira de praia. E vários tipos de coco”, conta Damião.

Os dois mestres estão à frente do Samba Coco Raízes de Arcoverde, um dos símbolos a perpetuar a manifestação popular que surgiu de dentro dos quilombos.

O grupo formado pela família Calixto completa 30 anos de existência em 2022 e é responsável por fazer do pequeno município do sertão pernambuco a “Capital do Samba de Coco”.

“Terra do samba de coco. Por que eles botaram o nome? Porque aqui é a terra do coco. Hoje, onde você chegar e disser Arcoverde, as pessoas vão falar: “ah é a terra do samba do coco”, aponta Assis Calixto. 


Assis Calixto no São João de Arcoverde (PE) de 2022 / Pedro Stropasolas

No São João pernambuco, milhares de pessoas visitam Arcoverde para assistir o espetáculo da família que dá ritmo ao coco por força dos tamancos construídos artesanalmente. Desta vez, não foi diferente. A espera foi grande: foram dois anos de espera por conta da pandemia.

“A dança do preto não é muito valorizada. A não ser a capoeira, mas que ainda é mal vista. E, graças a Deus, aqui em Arcoverde, o Lula Calixto no São João, ele fazia todo mundo dançar junto. Branco, preto, o que chegasse ali entrava na dança porque não suportava ver e não dançar também”, conta o mestre Assis, que recebeu o Brasil de Fato na sede da família Calixto, a poucas horas antes da apresentação.

A história do coco

A história do Samba de Coco em Arcoverde (PE) é a história de um resgate. Isto porque, em 1987, quando morre Ivo Lopes, o primeiro coquista da cidade, o ritmo se apaga e quase desaparece do universo cultural do município.

Foi aí que surge o protagonismo de Lula Calixto, irmão de Assis. Em 1992, a partir de uma conversa com Maria Amélia, responsável pela Secretaria de Cultura de Arcoverde no período, Lula resolveu criar o Samba Coco Raízes de Arcoverde, unindo as três famílias coquistas da cidade: Calixto, Lopes e Gomes.

“Ela (Maria) foi em Recife, comprou surdo, triângulo, pandeiro, ganzá, um figurino, e disse agora vocês vão andar, levar a cultura à frente. E foi isso que aconteceu. Em 1996 já começamos a ir as escolas”, relembra o mestre Assis.

As famílias passaram a se juntar, dançar em roda, e tocar pandeiros, bombos, chocalhos, maracas, zabumbas, cuícas e responder as toadas do puxador.

“Em 1992, quando ele resgatou, e em 1996, quando ele se reuniu para juntar o coco, ele juntou as três famílias. Então tinha muita gente, mais de 35 pessoas dançando, era muito coquista”, conta Ilma Calixto, sobrinha de Lula e filha do mestre Damião.

Dois meses antes da gravação do primeiro CD, que carrega o mesmo nome do grupo, morre Lula Calixto, em 1999, vítima da Doença de Chagas. 

Pouco depois, as Irmãs Lopes resolvem formar um grupo, e a família Gomes, acabam criando outro. Hoje, são 12 pessoas que formam o Raízes de Arcoverde. E ao todo, 7 grupos de coco na cidade.

“Hoje cada um tem seu grupo, mas a ligação não deixa de ser a mesma. Nós estamos sempre juntos na luta, sempre dividindo palco com o outro”, conta Ilma, que começou no coco aos 18 anos de idade.

Até o momento, o grupo Samba Coco Raízes do Arcoverde já gravou três CDs, aliando ao coco, ritmos como samba e os folguedos de roda. 

O coco trupé

No município, o coco de Trupe é quem ganha o destaque. Ele é guiado pelas batidas rápidas dos pés com os tamancos no chão. A dança é complementada por outros instrumentos: triângulo, pandeiro, surdo e o ganzá. 

“O que chama mais atenção é quando está fazendo o trupé, que é aquele movimento bem ligeiro. Ali é o trupé. Foi Lula Calixto que criou, um tamanco que ele fez pra levar para as escolas. Porque ele achava que dançando nas escolas, mostrando a dança, de sapato ninguém ia ouvir bem. Aí ele pegou uma tábua, cortou e fez um tipo de um tamanco, Cortou uma calça jeans, botou as correia e foi daí que nasceu o tamanco no coco”, lembra Assis. 


Os tamancos produzidos artesanalmente para a dança do coco / Pedro Stropasolas

“Eu trabalho com madeira de pinho, a gente compra tábua bruta, serra, lixa. Depois que lixa prega o couro. É muito fácil a fabricação, porque ele criou de uma maneira de ser uma percussão”, completa. 

Dai Calixto é quem está à frente da dança nas apresentações. Ela começou a dançar com os tamancos aos seis anos de idade, acompanhando o tio Lula Calixto em suas apresentações nas escolas.

“Ele sempre ensinou a gente a dançar. No começo era só parcela e o trupé e tripé cortado hoje a gente criou outros passos, que foi pergunta e resposta, cavalo manco tem gongue e assim a gente foi dando continuidade”. 

Assim como no passado, com Lula, o grupo continua a ter boa parte de suas obras voltadas às crianças de Arcoverde, compondo cantigas infantis e ensinando nas unidades escolares.


Trabalho nas escolas é um legado de Lula Calixto, formador do grupo / Divulgação

O trabalho é liderado por Assis, que recebeu em 2019, o título de Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco por conta da atuação nas escolas. Em 2021, o mestre lançou Cavalinho de Barro, um CD inteiramente voltado para a infância.

“Nos cantos que eu chego hoje a criançada já começa a cantar minha música. É muito bom pra mim isso. É um reforço muito grande pra mim dar continuidade nessa luta não só pra criança como para adulto, em todo canto né? E hoje eu sou bem apoiado pelas escolas. Tem escola que faz a festa com o coco e encomenda os tamancos para as crianças de cinco, seis anos. Faço trinta, quarenta pares de tamancos só para crianças. É muita alegria porque eles estão gostando da cultura”, conta o mestre com orgulho. 

Alto do Cruzeiro

Atualmente, a luta da família Calixto é para manter a sede no bairro alto do Cruzeiro, palco dos ensaios, encontros e oficinas de coco, e onde está a memória afetiva de Lula Calixto.

Cenário de clipes, como o da ilustre canção Andrelina, e palco de muitas apresentações culturais, foi lá que nasceu o grupo na década de 1990.

Ao lado das primas, Dai Calixto e Damares Calixto, Ilma Calixto é quem organiza a luta da família, além de produzir e organizar a agenda.

“Esse São João que existe aqui no Alto do Cruzeiro fomos nós, foi a nossa família. Foi o coco que começou. Então tudo tem uma história, a gente começou com um bingo, que era com a Iran, era na frente do coco. Iran tinha um barzinho no quintal de casa, no quintal da sede e a gente sempre todo mundo junto, toda família junto. A gente passava chapéu, fazia bingo de bode para pagar as atrações. Começou assim, em uma tendazinha em frente ao bar da gente”, pontua a cantora e produtora.

O desejo dela é por mais respeito e carinho com a cultura popular. “A nossa voz precisa ser escutada porque se escutarem as coisas fluem mais”, reforça. 

O Alto do Cruzeiro fica a 2 km do centro do município e é tido como o berço do surgimento e da valorização da cultura popular em Arcoverde. Também é conhecido pelas referências em músicas do Cordel do Fogo Encantado, banda que surgiu sob influência dos mestres de coco da família Calixto.

“Nós precisamos mais do poder, né? Vamos dizer assim. Que o poder olhe mais para nós, para a nossa cultura. Os grupos culturais são a própria natureza do nosso Brasil. Eles foram plantados junto do nascimento do Brasil”, finaliza Assis Calixto.

Edição: Vivian Fernandes

“FERIDA ABERTA DA AMAZÔNIA”, DIZ DIRETOR DE NOITES ALIENÍGENAS, LONGA MULTIPREMIADO EM GRAMADO

Agosto 26, 2022

CINEMA ACREANO

Sergio de Carvalho falou sobre cinco prêmios que longa produzido no Acre levou na principal premiação de cinema do país

Lucas Weber

26 de Agosto de 2022 –

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Noites Alienígenas foi o primeiro filme acreano a chegar no Festival de Cinema de Gramado – Divulgação/Saci Produções

O diretor Sérgio de Carvalho e toda equipe de Noites Alienígenas foram de norte a sul do país para marcar história no cinema nacional. Filmado e produzido inteiramente no Acre, o longa já chegou ao Festival de Cinema de Gramado premiado, por ser o primeiro filme do estado a participar da principal mostra competitiva do país.

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“No dia seguinte da premiação muitos produtores do Amapá, Acre, Pará e outros estados da Amazônia me ligaram e falaram ‘a gente tá se sentindo representado’. Espero que o filme possa ser uma vitrine para essa produção contemporânea do Norte do país”, conta emocionado o cineasta.

O longa foi consagrado com cinco premiações na 50ª edição do Festival de Cinema de Gramado, principal evento nacional do setor e com prestígio internacionalmente. Noites Alienígenas ganhou Melhor Filme; Melhor Ator (com Gabriel Knoxx), Melhor Ator Coadjuvante (com Chico Diaz), Melhor Atriz Coadjuvante (com Joana Gatis); e Menção Honrosa.

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Sergio de Carvalho posa para foto junto dos cinco Kikitos premiados nos Festival de Gramado

No tapete vermelho da Rádio Brasil de Fato, o diretor apresentou e contou bastidores do multipremiado filme Noites Alienígenas, na edição desta sexta-feira (26) do programa Bem Viver.

O filme é inspirado em um livro escrito pelo próprio diretor. Inicialmente o enredo focava numa história de dependência química.

“Quando eu fui fazer o roteiro, cinco anos depois de escrever o livro, percebi que precisava adaptar, porque a história do Acre tinha mudado. Neste meio tempo percebi que a periferia do Acre era outra. A gente sofreu um impacto tremendo com a chegada das facções criminosas do Sudeste. Chegou de maneira bruta, cooptando muito dessa juventude, mudando o tecido social da cidade e de outras do Norte.”

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A partir do realismo fantástico, Noites Alienígenas se passa na periferia de Rio Branco (AC) e conta o impacto social da chegada do crime organizado no Norte do país. O protagonista Rivelino é interpretado por Gabriel Knoxx, cantor e compositor da capital acreana que fez a estreia no cinema em Noites Alienígenas.

“Gabriel Knoxx nunca tinha feito nada de audiovisual. Ele vem da periferia e vive muitas das questões que o filme traz. Quando ele ganhou melhor ator eu não consegui ver mais nada. O Acre inteiro tava vendo, todo mundo ligado nessa emoção”, relata Sérgio de Carvalho.

Ferida aberta

Segundo o diretor, o filme conta sobre uma “ferida aberta da Amazônia. Esse tráfico de drogas está ligado aos garimpeiros, aos madeireiros.”

O diretor defende a importância do longa falar sobre a Amazônia urbana. A produção foge do lugar comum de produzir um filme que aborde exclusivamente a pauta ambiental ao tratar da floresta. Ao mesmo tempo que não ignora a temática.

“A Amazônia urbana está diretamente ligada à floresta. Mas existe uma ruptura, e isso se percebe na identidade plural de alguns personagens.”

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Sérgio de Carvalho mora há 20 anos no Acre, mas nasceu no interior de São Paulo e se formou em Cinema no Rio de Janeiro. “É importante falar de qual é o meu local de fala. Quando eu cheguei aqui, logo depois de formado, o Acre me arrebatou. É um estado riquíssimo com uma diversidade impressionante.”

O diretor também valoriza o momento em que chegou no estado. “Cheguei num lugar de políticas progressistas, um momento muito especial. O Acre estava valorizando muito os povos tradicionais, um momento muito bonito e forte.”

Por fim, Sérgio de Carvalho promete que mais produções vão seguir surgindo. Ele está confiante que Noites Alienígenas pode funcionar como um impulsor de mais investimento ao audiovisual da região.

“A Amazônia nunca produziu tanto como agora. Ainda que este momento esteja tudo muito frágil. Mas as políticas de descentralização fizeram diferença e espero que Noites retome essa produção.”

DENI MILLER: “PRA ONDE O AMOR LEVAR”

Agosto 26, 2022

DENI MILLER

Músicos mostram suas obras em vídeo ou áudio; basta entrar e ouvir o que tem sido feito de novo por aí

Deni Miller.Créditos: Divulgação
Julinho Bittencourt

Por Julinho Bittencourt

CULTURA – Agosto – 2022 ·

Deni´lson Miller, conhecido como Deni Miller, nasceu na cidade de Pains, Minas Gerais. De uma linhagem de músicos, ele é cantor, compositor, arranjador, violonista, produtor musical, multi-instrumentista e Radialista, além de membro votante do Grammy Latino.

Deni tem uma linda voz e acaba de lançar “Pra onde o amor levar”. Vale a pena ouvir:

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Deni MillerVale a pena ouvir

HISTÓRIA E MEMÓRIA: GETÚLIO E A POSTURA SOBERANA DIANTE DO MAIS FORTE

Agosto 25, 2022

Breve história de perspicácia do presidente, morto há exatos 68 anos. Ele sabia da condição periférica do país. Mas não se curvou aos EUA e nem Roosevelt o intimidou. Exigiu apoio à siderurgia nacional e deixou lições preciosas de altivez…

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HISTÓRIA E MEMÓRIA

Por Gilberto Maringoni

Agosto-2022 –

A foto é mais do que manjada. A data é 28 de janeiro de 1943 e o calor é tórrido. Nela aparecem Franklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA, e Vargas, chefe do Executivo brasileiro.

A imagem vale por um curso de como funciona o poder.

Trata-se de um símbolo de quem não tem postura subserviente diante do mais forte. Vargas sabia que seu país estava na periferia do sistema. Não tinha indústrias e nem geração de conhecimento capaz de alavancar a produtividade do trabalho em larga escala.

Contudo – surpreendentemente -, o gaúcho exibia espinha ereta.

Getúlio Vargas jamais foi aos Estados Unidos pedir a bênção do presidente de turno. Mas forçou o mais importante líder estadunidense do século XX vir ao Brasil para realizar uma tensa negociação.

Foi assim que em 27 de janeiro de 1943, Roosevelt se desviou da rota Casablanca-Washington e desceu em Natal, então uma cidadezinha de 50 mil habitantes. O quadrimotor Boeing B 314 que o transportava cumpriu secretamente arriscado voo pelo Atlântico Sul. Após participar de uma conferência no Marrocos francês com Winston Churchill e Charles de Gaulle, em plena II Guerra Mundial, o mandatário dos EUA veio finalizar as tratativas para a instalação de quatro bases militares em solo brasileiro. Pela proximidade com a África, suas localizações eram estratégicas para a força aérea norte-americana.

Vargas, na mesma tarde, decolara do Santos Dumont, rumo ao Nordeste. Para todos os efeitos, o presidente estaria em São Paulo, no hospital das Clínicas, ao lado do filho caçula, que enfrentava um quadro gravíssimo de poliomelite. O chefe da Revolução de 1930 ainda se ressentia de dores em uma das pernas, devido a um sério acidente automobilístico sofrido meses antes.

Foi com esse quadro de problemas que o chefe de Estado aterrissou na capital do Rio Grande do Norte.

Lira Neto, no segundo volume de sua magistral biografia de Getúlio, informa como se deu o encontro:

“Ao meio-dia de 28 de janeiro, Getúlio e Roosevelt almoçaram juntos e trocaram impressões sobre a guerra. Ao sentarem à mesa, ambos vestiam paletó de linho branco e gravata preta. Roosevelt estava com uma tarja negra em torno do braço, em sinal de luto pela queda de um avião de sua comitiva. Parte do diálogo foi feita em francês, língua que os dois dominavam”. (…)

“Depois de muito relutar em ceder trechos do território nordestino a uma nação estrangeira — ato inicialmente considerado ‘uma violência contra a soberania nacional’ —, Getúlio enfim sucumbira às injunções de Washington, impondo o financiamento da siderurgia como uma contrapartida honrosa”.

Estavam dadas as condições para o término da construção da usina de Volta Redonda, vital para nosso salto industrializante.

É importante examinar a fotografia que ficou para a posteridade (vai aqui uma versão colorizada da original). Apenas naquele momento, a população de Natal – e a opinião pública mundial – soube da presença dos dois líderes na cidade.

De forma ousada, Getúlio indicou a Rossevelt o banco dianteiro, ao lado do motorista. Com dificuldades para caminhar, o norte-americano foi carregado até o jipe. O brasileiro sentou-se atrás, lugar de destaque em qualquer condução oficial. Assento de quem manda e indica o caminho. Roosevelt teve de se virar para conversar. Getúlio impõe-se como figura proeminente.

Exatamente o oposto do atual ocupante do Planalto, que é capaz de implorar para que Donald Trump lhe cavalgue.

Ao final daquele dia, cada um partiu para seus postos. Vargas permaneceu dois dias no Rio e logo voou para São Paulo para acompanhar seu menino. Getúlio Vargas Filho morreria aos 23 anos de 2 de fevereiro de 1943.

Ah, as bases militares foram desativadas logo após o conflito. Volta Redonda seguiu como mola mestra de nossa indústria, até ser criminosamente privatizada exatos 50 anos depois.

Parece que Getúlio já não era mais presidente…

(Texto publicado em 2020)

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GILBERTO MARINGONI

Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos. Foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014).

BRECHT, INÉDITO, SOBRE A PROFISSÃO DO ATOR

Agosto 24, 2022

Brecht, inédito, sobre a profissão do ator

Editora 34 lança coletânea de reflexões do célebre dramaturgo alemão sobre trabalho e arte no teatro. A maioria dos textos são publicados pela primeira vez no Brasil. Quem apoia nosso jornalismo concorre a 2 exemplares e tem 30% de desconto

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OUTROS QUINHENTOS

Por Guilherme Arruda

Agosto-2022 –

Outras Palavras e Editora 34 sortearão 2 exemplares de Sobre a profissão do ator, de Bertolt Brecht, entre os apoiadores do nosso jornalismo. O formulário de participação será enviado por e-mail e as inscrições serão aceitas até sexta-feira, 26/8, às 14h. Quem é Outros Quinhentos tem direito a 30% de desconto no site da editora.

O dramaturgo Bertolt Brecht é um dos principais nomes da história do teatro. Isso não é dizer (felizmente!) que Brecht é um consenso, uma unanimidade: seu teatro dialético é uma prática revolucionária, surgida para se contrapor abertamente às concepções obsoletas e conservadoras que ainda insistem em subir nos palcos. Por seus esforços nesse sentido, o alemão é lembrado não só como autor de importantes peças e encenações, mas também de intervenções decisivas no campo teórico das artes cênicas.

De Abujamra à Companhia do Latão, nosso país tem em sua história uma relevante recepção de sua obra. E passará a contar com mais um importante subsídio para os estudos brechtianos: nossos parceiros da Editora 34 acabam de lançar Sobre a profissão do ator, compilação de textos de Brecht inédita no Brasil.

No livro, encontramos 63 textos de cunho bastante diverso, passando por anotações, fragmentos e breves reflexões. Subdivididos entre as seções temáticas “A arte do ator”, “Descrição do trabalho dos atores” e “Exercícios para atores”, os escritos datam desde a sua década de ascensão no fervilhamento cultural da República de Weimar até o período em que retornou à terra natal depois do exílio nazista e viveu no contexto socialista da República Democrática Alemã – uma cronologia de pouco mais de duas décadas.

Temas como sua relação com o sistema de atuação de Stanislavski, seu critério para a avaliação da atuação e a descrição do trabalho da atriz e diretora comunista Helene Weigel, sua esposa, estão contemplados na coletânea.

Laura Brauer e Pedro Mantovani, que se encarregaram da tradução da obra para o português, também contribuem com uma introdução que esclarece as condições em que foram produzidos os textos, os embates político-artísticos em que Brecht se envolveu e um pouco do que o alemão pensava sobre os rumos do teatro em seu tempo. As notas do livro, igualmente assinadas pela dupla, foram produzidas a partir de pesquisa na Alemanha.

O fato de o livro ser de alto nível teórico e reunir textos que podem ser considerados bastante técnicos não é motivo para que o leitor leigo deixe de se interessar. Como aponta o organizador Werner Hecht, “atores obterão estímulos e sugestões práticas para seu trabalho, espectadores conhecerão critérios para o trabalho teatral. O livro foi concebido tendo em vista o maior valor de uso possível.”

Além disso, também integra a nova publicação da Editora 34 um conjunto de fotografias de época que documentam o processo de trabalho de Brecht junto ao Berliner Ensemble, companhia que fundou em 1949 na Berlim socialista. Como se vê, é uma edição cuidadosamente preparada, seja a nível da forma ou do conteúdo (oposição, aliás, rejeitada por nosso Bertolt), pensada para vários públicos.

Informado pelo materialismo dialético do método marxista, o teatro de Brecht ainda ressoa com questões do trabalho cênico hoje, e muitas das problemáticas que enfrentou insistem em vigorar no teatro burguês – por isso mesmo, a publicação de seus textos inéditos é um acerto aqui e agora.

No mês em que se completam 66 anos de sua morte, Outras Palavras realizará junto da Editora 34 sorteio de dois exemplares de Sobre a profissão do ator. Poderão se inscrever todos os que colaboram com nosso jornalismo independente e sem catracas por meio da rede Outros Quinhentos.

    O formulário de inscrição será enviado por meio do boletim de e-mails direcionado aos nossos apoiadores. Para concorrer, inscreva-se até sexta-feira, 26/8, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos também têm direito a um cupom de 30% desconto no site da Editora 34 e diversas outras contrapartidas oferecidas por nossa rede de parceiros. 

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Faleceu em 14 de agosto de 1956, Berlim Leste.

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DONA JACIRA, CONTADORA DE HISTÓRIA, TEME VIOLÊNCIA POLÍTICA MAS REJEITA “FICAR EM CIMA DO MURO”

Agosto 23, 2022
  1. BRASIL DE FATO ENTREVISTA

OUÇA E ASSISTA

Escritora e artista plástica, ela conta mais sobre sua trajetória inspiradora

José Eduardo Bernardes

23 de Agosto de 2022 –

Dona Jacira, convidada desta semana no BDF Entrevista; é escritora e artista plástica. – Lana Pinho/ Divulgação

Eu tenho uma posição e eu tenho os meus pares, eu sei com quem eu posso contar

proximidade das eleições no Brasil tem acirrado os debates e os casos de violência motivados por posições políticas também têm se avolumado. E há quem, inclusive, se sinta acuado diante dos discursos de ódio e das campanhas de mentira que ganham as redes todos os dias. 

“Eu penso em outubro e meu coração recua, eu tenho medo. Eu tenho filho, eu tenho netos”, explica Dona Jacira, contadora de histórias que é a convidada desta semana no BDF Entrevista.

“E eu sei porque no Golpe de 1964 eu fui a vítima. Eu estava em período de formação, estava me educando e isso destruiu parte da minha da minha trajetória. E várias crianças vão ser penalizadas por isso, já estão sendo penalizadas”, explica Jacira, sobre a possibilidade de uma tentativa violenta de contestação do resultado das eleições.

Segundo levantamento do Observatório de Violência Política e Eleitoral da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), somente no 1º semestre deste ano, o país teve 214 casos de violência política. O número é 32% maior quando comparado ao mesmo período de 2020, ano em que foram realizadas eleições municipais.

“Eu não sei entender a dimensão da violência comparando com o Golpe de 1964, porque eu não tinha esse olhar. Hoje eu vejo a violência, as pessoas armadas, a ideia de que toda essa violência está certa, toda essa agressão…eu tenho medo e não encontro outra palavra pra isso”, completa Dona Jacira.

Como consequência de uma divisão ideológica do país, desde 2018, artistas e celebridades se viram impelidos a assumir uma posição política. Apesar de não ter sido criada sob uma cultura que, desde o início de sua vida lhe permitisse fazer escolhas políticas, Dona Jacira diz que não se exime do debate público.

“Eu não posso ficar em cima do muro, muito embora tudo isso dê errado, eu tenho uma posição e eu tenho os meus pares, eu sei com quem eu posso contar, eu tenho muito medo de perdê-los. Eu tenho muito medo das perdas, porque cada vez que a gente perde, a gente se enfraquece bastante”, completa.

Mãe dos cantores Emicida e Evandro Fióti, Dona Jacira nasceu e cresceu na Zona Norte da cidade de São Paulo. E até se consagrar como escritora e artista plástica, venceu uma série de desafios que a vida lhe impôs. 

Foi enfermeira, mas com a saúde debilitada, teve que abandonar a profissão. “Eu trabalhei muito pouco na área e fiquei doente, justamente pelos sacrifícios que eu tive que fazer pra estudar. Não tinha dinheiro, ou comia ou estudava. Isto precarizou o meu corpo”, diz. 

Essa foi uma das chaves que lhe transportaram para um mundo onde Jacira se reconectou às suas raízes e às suas ancestralidades. “Eu tomava muito calmante e fui orientada por um psiquiatra a repensar porque, na verdade, eu não tinha nenhum transtorno grave que fizesse com que eu precisasse tomar calmante. Eu tinha que repensar a vida. A grande questão é que eu ainda não havia estudado diáspora. Estudei sobre alimentação e só alimentação, porque quando a gente não é feito pela academia, começa a estudar a você mesmo”.

Na entrevista, Dona Jacira explica sobre o seu amor pela terra, pela contação de histórias e o orgulho dos filhos. “Eu sempre dizia pra eles que a vida iria dar a resposta. Então, eu não estava errada. E muito embora muitas pessoas dissessem que não era assim que se educava, eu achei que tinha que ser assim e fico muito contente com o resultado. Todo mundo que me fala dos meninos, não só como artistas, mas como pessoas, dizem que são pessoas muito interessantes”.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Queria começar o nosso papo falando sobre a sua trajetória. A senhora foi enfermeira e afirmou que fez isso pra ter uma profissão, mas que sempre seguiu sendo amante dos ofícios da arte. Ainda assim, a senhora se dedicou a estudar a saúde da mulher negra. Como é que surgiu esse interesse?

Dona Jacira: Na verdade, eu queria estudar qualquer coisa e só encontrei esse espaço para a enfermagem, porque também está dentro dos cuidados. E também, na época dos anos 1980, se abriu essa oportunidade por conta da necessidade de formar mais auxiliares, mais pessoas para a enfermagem, que era uma situação precária.

Eu aproveitei essa oportunidade e também precisava entrar no mercado de trabalho. Eu não tinha mais escolha, a arte eu havia abdicado dela por um tempo, achei até que não ia mais tocar no assunto. 

Quando você fala sobre a mulher negra, na verdade eu entrei nesse assunto a partir de mim mesma, porque logo que eu me formei, eu trabalhei muito pouco na área e fiquei doente, justamente pelos sacrifícios que eu tive que fazer pra estudar. Não tinha dinheiro, ou comia ou estudava. Isto precarizou o meu corpo. 

Então, quando eu perdi a função renal e comecei fazer hemodiálise, eu tive que estudar tudo sobre o que é ser hipertenso e deixar de ser hipertenso. Eu entro aí na questão do movimento revivalista pela alimentação, com todo o envenenamento, o excesso de sal e açúcar que é colocado no nosso corpo. 

Eu já tomava muito calmante e fui orientada por um psiquiatra a repensar porque, na verdade, eu não tinha nenhum transtorno grave que fizesse com que eu precisasse tomar calmante. Eu tinha que repensar a vida. A grande questão é que eu ainda não havia estudado diáspora. Estudei sobre alimentação e só alimentação, porque quando a gente não é feito pela academia, começa a estudar a você mesmo.

Antes de dizer que estudei sobre a saúde da mulher negra, eu comecei a estudar sobre mim, sobre a minha vida e vi que o que acontecia comigo era o que acontecia com as minhas irmãs, com a minha mãe, com as mulheres à minha volta. Nós comemos a mesma coisa e adoecemos das mesmas coisas. 

Como a senhora falou, o tema da alimentação se torna cada vez mais importante. São vários os estudos alertando sobre a questão dos agrotóxicos, a quantidade de açúcar nos alimentos, nas bebidas. Como a senhora conseguiu fazer essa transição para uma alimentação mais rica? 

Leva um tempo, porque a minha primeira consciência foi voltar aqui…a gente quer um progresso e o progresso não está ligado a uma boa alimentação. Por exemplo, eu estou aqui na minha casa, onde minha mãe tinha um galinheiro, uma horta. A minha região era agricultável e tudo isso sumiu. 

Nós fomos seduzidos por casas de pizza, por casas de esfiha, pelos rodízios que chegaram nos anos 1990, em São Paulo. Por exemplo, em casa tinha uma regra: arroz, feijão, um pedacinho de bife e uma salada. No rodízio, se você tiver dinheiro, você pode comer o que você quiser, o tanto que você quiser. A questão é que você não tem dinheiro para ir no rodízio trinta dias.

O capitalismo colocou ao lado de cada rodízio uma casa de esfiha a R$ 0,10 centavos. Surge aí uma grande quantidade de pessoas, na verdade, aumenta o número de pessoas com triglicérides aumentado, diabetes. Aqui na nossa região quase não tinha pessoas com diabetes. 

Eu lembro que quando minha irmã chegou em casa e falou “agora eu tenho triglicérides”, eu pensava, o que é triglicérides? Vinte anos depois, quando a minha irmã já tinha feito cinco revascularizações de miocárdio é que eu comecei a entender o que é isso. É a retirada da gente do nosso lugar, da nossa proteção e a nossa entrada no mercado de trabalho. 

Porque antigamente a gente levava marmita, mas também nos foi sendo ensinado pela mídia que é feio levar marmita. Mas a gente, com o que ganha do salário mínimo, não tem como comer uma refeição, um comercial todos os dias. Não dá. E aí você apela pra um pãozinho e o trigo é um fator político. 

Ele é super peneirado, então ele não tem mais nutrientes. O trigo e a batata alcançam até o último eleitor miserável, que come uma pipoca ou um miojo pra não passar fome. A gente levou muito tempo pra chegar em todas essas questões porque, a princípio, também tem aquele fator da economia. Você compra aquilo que é mais barato. 

E o que é mais barato é o terceiro ato do super processado, não é mais alimento, não é nem congelado e nem é salgado. São aqueles alimentos que não se reconhecem mais, as batatas fritas, essas coisas que a gente tem a mão pra subsistência. 

A senhora falou da horta, de como a sua região era agricultável. Hoje a senhora retomou essa ideia do quintal da sua casa como um lugar de cura, de plantio. Como isso se desenvolveu?

Você sabe que eu já tinha me esquecido porque, por exemplo, na minha infância as plantas tinham muita importância pra mim, mas a escola matou isso, como se não tivesse importância. Eu entrei em um estado de depressão tão grande e só quando eu voltei a me entender como contadora de histórias, que eu vi que eu gostava de um pezinho de feijão.

Aí eu voltei pro quintal da minha mãe e percebi que não sabia mais como as plantas nasciam. Uma amiga me falou: “faz um curso de jardinagem no Manequinho Lopes”, lá no Ibirapuera. E aí fui aprender o que era terra, uma terra argilosa, o que era uma terra que se planta. Eu me reconectei a partir daí a ideia de plantar. 

Entrei para um grupo chamado “Guardiões de Semente” e a ideia era plantar alguma coisa que a gente gostasse e eu gosto muito de morango. Odeio quando chega a época do morango, porque aquela parte debaixo da caixinha vem podre. Falei: “eu vou plantar morango” e alguém me disse que não iria conseguir. 

Mas você não planta só morango, tem que plantar uma salsa…e aquilo foi se diversificando. Eu tinha só um vasinho aqui embaixo e o meu jardim foi crescendo, mas ele se estendeu agora no isolamento porque eu tive uma suspeita de trombose. Daí o vascular me falou que eu precisava fazer caminhada e eu não gosto de fazer caminhada. Eu não gosto de caminhar à toa. 

Como minha casa tem três andares, eu espalhei os canteiros pela casa, porque aí eu sou obrigada a subir e descer, subir e descer. E foi assim que eu vivi esses últimos anos do isolamento. O canteiro era grande mas ele se estendeu, vou usando as minhas experiências e trazendo para o quintal. Hoje eu tenho uma diversidade de plantas, é uma uma fazenda. 

Vi que a senhora não se reconhecia como uma mulher negra, não tinha essa identidade. Como foi se descobrir negra e o quanto isso lhe transformou?

Aqui na nossa região, a maioria de nós somos negros. Na rua em que eu me criei, tinha uma variedade de estrangeiros, japoneses, espanhóis e portugueses. Mas a quantidade de pessoas negras era maior. Eu sempre fui tida como parda, eu não sabia o que eu era. 

E outra, eu não tinha grandes necessidades econômicas. Minha mãe sempre teve dois empregos e sempre imaginava que as pessoas mais negras eram aquelas muito mais pobres, era esse o meu pensamento. 

Se eu te disser que tem 17 anos que eu pude constatar que a África existe? Só quando eu comecei fazer o primeiro curso de diáspora, lá no Instituto Cachoeira, é que eu entendi que a África existe. Eu já estava com quarenta anos, sendo descendente. Eu não sou africana, mas sou afro indígena e desconhecia o lugar de onde eu tinha vindo.

A partir daí todas as fichas caem, porque eu fui fazer um curso que era para professores, naquela Lei 10.639 (que determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no currículo escolar da rede de ensino pública e privada), e eu caí ali de paraqueda. Aliás, fui encaminhada pelo meu psiquiatra, que me disse que eu precisava aprender História.

Então comecei a entender a expulsão da escola, o porquê do mal trato na escola da minha região, por que que não adiantava eu alisar o cabelo. Porque,  eu achava que quanto mais eu alisava o cabelo, mais eu não era aceita, mais eu não entendia. Foi quando eu falei “eu sou negra, não adianta eu ficar mascarando. Eu vou ter que entrar nesse grupo e entrar nessa luta”. A primeira coisa que eu fiz foi parar de alisar o cabelo, não vai adiantar, meu cabelo não vai mudar. 

E o quanto isso te transformou? Obviamente existe um antes e um depois desse processo todo.

Muito…para você ter uma ideia, se você ouvir a minha música, que eu gravei agora “Não Abusa de Eu” e o meu documentário, existe uma pessoa lá que é o Paulo Dias, que está inserido dentro da minha família. O Paulo Dias é a pessoa que criou a Associação Cachoeira e é essa pessoa que preserva esse lugar. Ele se tornou parte da minha família e a partir dali eu comecei conhecer o Jongo, a Umbigada, as festas do Maranhão, todas essas coisas eu já abordava mas eu nunca tinha visto. 

Então foi essa instituição que me mostrou que eu venho de um processo civilizatório e isso me dá um salto espiritual. Eu já havia passado por milhões de igrejas evangélicas procurando uma salvação e quando eu me encontro enquanto uma mulher negra, dentro desse grupo, eu descubro que não houve uma separação, eu não preciso dessa religação. A minha espiritualidade está comigo. E eu falava a partir do bordado, porque a academia não me deu lugar de escrita. Mas eu tinha que ter um jeito de extravasar para não enlouquecer. 

No podcast que a senhora desenvolveu durante a pandemia, o “Histórias de Família”, a senhora resgata as memórias como mãe, como trabalhadora e se especializou nesse ofício de contadora. Qual é a importância de não deixar essas histórias morrerem, de levá-las adiante? 

Você sabe que eu não me especializei…me avaliando, desde que eu era criança, eu estava aqui sentadinha e ali estava a minha mãe e as outras mulheres contando histórias. Antigamente, a gente não ia pra o SESC ou pra outro lugar pra contar história. A gente estava ali, as mulheres lavando roupa e contando e ouvindo… e tinha uma voz na minha cabeça que falava: “escuta isso aí, você vai ter que contar”.

E aí, agora eu falo com as minhas irmãs e pergunto: “você não ouvia quando as mulheres ficavam falando quem tinha as pernas bonitas e quem não tinha?, quando a bisa falava do homem da Ramela…” e as minhas irmãs falam que nunca ouviram nada disso, porque esse era um dom meu, eu tinha a escuta. Então não desenvolvi, ele estava comigo. 

E todas as vezes que alguém falava que isso era um erro, que isso não era uma profissão, que eu não ia conseguir viver disso, muitas vezes eu tentei sucumbir e falar: “eu vou parar”. Porque o que acontece é que eu comecei a fazer tratamento muito cedo no psiquiatra por causa disso, porque eu falava muito, eu queria recontar as coisas pra não esquecer. E eu fui ficando doente por conta da quantidade de remédio que era colocado em mim pra que eu não falasse. 

Descobrir isto e trazer essa voz à tona e todas as histórias, inclusive botar no livro Café, voltar ao largo da casa da minha mãe pra lembrar quantas voltas eu dei ali…eu poderia ter sido um Marabu, eu poderia ter sido qualquer outra coisa dentro da formação que eu trouxe e eu não consegui porque o racismo e todas essas coisas que colocaram sobre a arte que eu trouxe, sobre o meu dom, quase me mataram, não me permitiu. E eu fui enlouquecendo realmente. 

Porque o que eu queria fazer não podia. E quando eu queria ficar parecida com aquilo que as pessoas queriam que eu fizesse eu entrei para o alcoolismo. Comecei a beber porque eu não tinha dinheiro pra comprar calmante o tempo inteiro e fui enlouquecendo.

Então me entender dentro desse segmento e dizer “você é uma contadora de histórias, mexe na sua memória que está lá, você é um guardião das cavernas, é só se entender”, aí tudo ficou claro pra mim. Não é aquilo que o outro fala, eu tenho a minha filosofia, eu não penso, mas eu sinto, por isso eu resisto.

E é muito importante a tradição da oralidade, de como as histórias são contadas e recontadas, às vezes ganham outros contornos, mais brilho ou menos brilho…

Porque a gente foi sendo adaptado só àquelas histórias dos Andersen, da Branca de Neve, a Bela Adormecida, são histórias que não nos contemplam. E a gente sonhava com isso, ser uma Branca de Neve, de aparecer um príncipe. E só depois vai caindo a realidade, a gente vai vendo que em uma Festa Junina ninguém tira a gente pra dançar. Numa festinha de Primavera, a gente só vende o ingresso. Nunca ganha.

Então as histórias de casa são particulares, únicas. A minha bisa tinha essa história do “rameleiro”, que ela dizia que o “homem da ramela” passava com o balde pela maçaneta. Isso ficou, eu não consigo esquecer, acredita? Como é que ele passava lá? O mito é uma coisa que põe a gente numa realidade…eu vejo ele passando pelo buraco. 

A senhora postou há pouco tempo atrás uma foto com uma camiseta onde estava escrito: “Quero Mulheres Negras no Poder”. Nas últimas eleições, a gente teve uma melhora significativa nos índices de homens e mulheres negras eleitos e eleitas. Mas ainda estamos muito distantes de uma igualdade nos cargos majoritários. Por exemplo, no caso de presidentes e governadores estaduais, vemos poucas ou quase nenhuma candidaturas negras. Como a senhora acha que nós vamos virar esse jogo? 

Olha, eu vou te falar como foi que virou o meu jogo. Eu não sabia o que era política. Aqui, quando eu era criança, eu lembro que quando tinha eleição – só tinha Arena e MDB – eu via que o meu padastro ficava, no dia da eleição, anotando os candidatos – que só os homens anotavam. 

Quando eu já estava casada, com 14 anos, já tinha filho e um dia chegou aqui nessa região um povo para falar do que era direitos e deveres. E eles vieram pra falar da terra e que a gente tinha direito à terra. Porque nós vivemos num espaço estreitinho e as outras pessoas que eram estrangeiras tinham espaços muito grandes de terra. Mas eu ainda não entendia. 

Começou aí o meu envolvimento com o movimento Sem-Terra e foi assim que a gente viu chegar todo o bairro que tem para o lado de cá, que é o Jardim Filhos da Terra e muita gente começou ter moradia. E aí começamos a entender: todo mundo tem que ter moradia, todo mundo tem que ter o que comer, todo mundo tem que ter o que plantar e alguém disse: “isso é política”.

As pessoas que vieram pra cá, quando chegaram aqui disseram: “eu preciso que as pessoas mais jovens dessa região sejam orientadas pra que ocupem um lugar de decisão”, que eu não sabia onde era Brasília. Naquela época até teve um boom dessas iniciativas, porque hoje, quando eu confronto o meu livro com outras mulheres negras, eu vejo que o mesmo que aconteceu na Zona Norte, aconteceu em toda a Grande São Paulo, era uma emancipação e ocupação dos espaços.

Só que depois isso acabou. Esses encontros eram feitos nas casas, na verdade primeiro nas igrejas, depois nas casas. Foi um movimento tão bonito, que nos levou a pensar em uma grande emancipação e a gente entendeu muitas coisas. Eu não sei porque isso foi acabando e esse lugar, de cada regional, para falar sobre violência da mulher, sobre alimentação, ele foi sendo ocupado por uma outra igreja pentecostal.

É preciso que isso retorne, a gente precisa ocupar esses espaços. Nós não estamos onde se decide a nossa vida, a gente passa na rua aqui e são 25 buracos da Sabesp. A gente não sabe o que que é. Vai mais ali em frente, alguém tranca uma coisa, você não sabe o que está acontecendo, quem é que comanda quem. 

A gente lida com pessoas que são tratadas como deputados, mas eles são funcionários e a gente precisa entender isso. Agora, pra isso, é preciso que a educação melhore e quem é que vai despentecostabilizar as nossas fronteiras? A gente está cercado por esse povo que não deixa a orientação passar, em benefício próprio. 

E parte dessas igrejas, que de alguma maneira ocupam esse lugar de estado, estão alinhadas com o atual presidente da República…Como é que a senhora tem visto o atual cenário eleitoral? O que esperar do Brasil em caso de uma reeleição de Bolsonaro? A senhora vê uma luz no fim do túnel?

É, eu já não sei bem se eu vejo a igreja com o mesmo olhar que você. Acho que a igreja é um lugar misto, encontro algumas pessoas com um certo caráter, mas eu tenho medo da sua pergunta. Eu penso em outubro e meu coração recua. Eu tenho medo. Eu tenho filho, eu tenho netos.

E eu sei porque no Golpe de 1964 eu fui a vítima. Eu estava em período de formação, estava me educando e isso destruiu parte da minha da minha trajetória. E várias crianças vão ser penalizadas por isso, já estão sendo penalizadas.

Porque, eu não sei entender a dimensão da violência comparando com o Golpe de 1964, porque eu não tinha esse olhar. Hoje eu vejo a violência, as pessoas armadas, a ideia de que toda essa violência está certa, toda essa agressão…eu tenho medo e não encontro outra palavra pra isso.

Eu não posso ficar em cima do muro, muito embora tudo isso dê errado, eu tenho uma posição e eu tenho os meus pares, eu sei com quem eu posso contar, eu tenho muito medo de perdê-los. Eu tenho muito medo das perdas, porque cada vez que a gente perde, a gente se enfraquece bastante.

Mas eu sei onde está a minha linha de frente, eu não estou iludida. Mesmo assim, eu balanço, porque no meu meio eu ainda vejo muita gente que é favorável ao que está acontecendo. Gente minha, gente de família, gente que sofre e que fala que “ele” tem que ficar porque é temente a Deus, porque ele é contra isso…É muito grave isso dentro das nossas famílias. Tudo isso me apavora e não pode continuar. 

A senhora trouxe ao mundo quatro filhos, os dois mais conhecidos, Emicida e Evandro Fióti levam a arte, arte negra de periferia, pra todo canto do mundo. Hoje, como a senhora enxerga esse legado deixado pra eles? 

Eu tenho muito orgulho dos meus filhos, das meninas também, do caminho que a gente rumou. Você sabe que a forma como eu criei os meus filhos, as pessoas sempre diziam que estava errada. Deveria encaminhá-los pra fazer o que tinha que fazer.

Tinha muito medo de que eles ficassem como eu, à margem da estrada, que não tinha conseguido nem estudar e nem ganhar um dinheiro pra sobreviver. Eu tinha medo. Quando o Leandro começou a cantar rap e quando o Evandro entrou pro McDonald’s, eu chorei. 

Mas eu também sempre tive muita esperança, muita fé neles. Eu lembro que desde o princípio, tem uma história que as pessoas falam que crianças da periferia ou vão pro manicômio, ou vão pra cadeia ou vão pro cemitério. Mas eu tinha a convicção de que eu não tive filho pra isso.

Eu sempre dizia pra eles que a vida iria dar a resposta. Então, eu não estava errada. E muito embora muitas pessoas diziam que não era assim que se educava, eu achei que tinha que ser assim e fico muito contente com o resultado. Todo mundo que me fala dos meninos, não só como artistas, mas como pessoas, dizem que são pessoas muito interessantes. Fico com o coração aquecido.

Edição: Rodrigo Durão Coelho