O homem é um ser mudanças. Um ser que constrói história porque é movimento. Mas há uma incoerência quanto ao tema movimento. Alguns acreditam que movimento é o movimento determinado por Newton. Deslocamento dos corpos nos espaços. Movimento sem mudança qualitativa nos corpos. O cinema, ou Kinema, como dizem os gregos, como imagem em movimento, carrega os dois sentidos. Imagens que se movimentam diante de espectadores sem proporcionar qualquer mudança na percepção e entendimento do espectador, e imagem que se movimentam levando o espectador a mudanças perceptivas e cognitivas.
No primeiro caso temos a imagem-suporte do filme comercial, quem não tem qualquer corpo esquizosófico. O filme da indústria hollywoodiana. Cujo interesse é apenas, como toda mercadoria do capitalismo, obter lucro fazendo crer que o espectador tem um bom e necessário entretenimento. Na verdade violência perceptiva e cognitiva. No segundo caso temos o cinema como arte. O cinema esquizosófico. O cinema do ante guerra e, principalmente, o do pós-guerra, com os diretores que não ofereciam um mundo de imagens já postas para participarem de um espetáculo de recognição: ver, o já visto. Como ocorre com as pessoas em seus cotidianos, em seus mundos familiares, com seus objetos, seus parentes, seus parceiros de trabalho, moradores de suas ruas, os locais da cidade onde moram. Totalmente em outro plano, o neorrealismo italiano mostra como se fazia cinema. Nada de recognição.
Hollywood sempre fora em toda sua história um caso claro de entretenimento comercial, onde não falta o glamour, as caras e bocas de diretores, atores e estrelas estereotipados e falsos críticos. Falsos porque seu modelo de julgamento de um filme está diretamente colado ao modelo do lucro. Para eles, filme bom é o que cai no gosto do senso comum. A Fonte de lucro. Daí os filmes que apelam para afetos conturbados, heroísmo norte-americano e batalhas.
Sem qualquer laivo de purismo, Cannes tem uma história totalmente diversa da de Hollywood. Primeiramente, porque seus diretores conduzem uma formação intelectual, política e sensível muito diferente dos diretores hollywoodianos carregados por um forte pragmatismo calculista. A Europa proporcionou a esses diretores como Goddard, Fellini, Antonioni, Bergman, Rossi, Rossellini, Resnais, Duras, Buñuel, entre outros inatingíveis, uma possibilidade estética com eficiente potência cinematográfica.
São cinegrafistas profundamente envolvidos com ideias filosóficas, muito deles marxistas, o horror dos diretores hollywoodianos. No caso dos cinegrafistas do pós-guerra, forte ligação com o Existencialismo de Sartre. Não foi por acidente que o filósofo francês foi amigo de quase todos. E não foi por acidente, também, que Sartre escreveu o roteiro profundo de Freud Além da Alma, e que o diretor John Huston queria que ele escrevesse um Freud romântico e ele não aceitou, e quebrou o acordo com o diretor hollywoodiano.
Nesse plano, entende-se que Cannes representou o território da experiência cinematográfica, mas que nos últimos anos para cá, qualquer filme, que nos bons tempos seria de terceira categoria, como os de Hollywood, tem demonstrado que mudou. Mas, infelizmente, não em qualidade, como ocorre com a mudança dialética. Mas como mudança decadente. É por isso, que no Festival de Cannes se pode assistir Como Treinar Seu Dragão 2, The Captive…, filmes sem qualquer possibilidade de educação sensível.
Mas como os cinemas de Goddard e companheiros estão por aí, nos acervos cinematográficos, Cannes não faz falta.