Eu conhecia do Bumba-meu-boi aquilo que se lê nos dicionários de folclore e nos raros livros disponíveis. Definições como a de Alceu Maynard de Araújo: “O bumba-meu-boi é um bailado popular largamente praticado no Brasil, no qual se nota a presença de vários elementos da arqueocivilização: animais que falam e dançam, a ressureição do boi, animal este que, para alguns autores, é um elemento totêmico. Há um pequeno enredo, de grande simplicidade, sendo que após algumas peripécias, matam o boi e sua carne é distribuída. É uma reminiscência do banquete totêmico ou tal distribuição simbólica, feita por um cantador, um trovador que sempre provoca hilariedade, não representará o antigo “pottlach ?”
Sabia que o Boi, em cada região do Brasil, apresentava-se com características absolutamente peculiares e que, no Maranhão, apresentava-se sob quatro formas diferentes: Boi de Matraca, Boi de Zabumba, Boi de Pindaré e Boi de Orquestra, cada qual com suas variantes. Sabia que, em algumas delas, o auto ainda é mantido enquanto que em outras permanecem alguns personagens (vaqueiros, caboclos de pena, Cazumbá, Pai Francisco, Mãe Catirina) e que a parte mais valorizada das “toadas de boi”, improvisos “puxados” pelos “amos do boi” durante toda a noite e repitidos pelo coro dos “brincantes”, como lá são chamados os participantes dos folguedos populares.
São Luiz
Naquela noite morna de São João, tive meu primeiro encontro com o Boi-Bumba do Maranhão. E meus olhos, meus ouvidos, meu coração foram pequenos para sentir toda a beleza, sem dúvida a mais incrível festa que eu já presenciei. Cesário, meu irmão e companheiro nessas andanças, seguia silencioso, ouvidos atentos, gravador em punho, procurando fazer com que pelo menos uma parte de tudo aquilo ficasse fielmente documentada. Foi graças a Américo Azevedo, um apaixonado pelo folclore maranhense, que conseguimos chegar mais perto do Boi. Seus amigos (entre eles, o Gregório Bacic, da TV cultura de São Paulo e velho admirador do Boi do Maranhão) nos levaram até o bairro Madre Deus, atravessando a cidade com suas ruas estreitas, seus velhos casarões, janelas, portões literalmente entupidos de gente alegre, viva, comunicativa.
A chegada no Bairro Madre Deus foi uma experiência extraordinária. Nos contaram que, até há pouco tempo atrás, era um bairro marginal, fechado, no qual “nem a polícia entrava”. Agora as coisas mudaram um pouco, mas continua difícil um forasteiro chegar lá. Madre Deus é um bairro pobre como tantos, em tantas cidades brasileiras. Mas na noite de São João, na noite do Boi, ele se transforma: as ruas ficam embandeiradas e, de espaço em espaço, grandes fogueiras iluminam as casas, os rostos dos homens que, junto ao fogo, afinam os grandes tambores do Boi. A sensação que tivemos foi a de atravessar um túnel do tempo, de entrar numa nova dimensão,num outro mundo.
Tabaco (Boi da Madre Deus)
Fomos à casa do Tabaco, o “dono do Boi’ da Madre Deus, quem organiza a festa e, antes disto, os ensaios (que começavam a se realizar em abril), quem distribui os vários papéis entre os “brincantes”, prepara a grande festa da morte do boi, lá pra fins de julho. Tabaco resolve todos os problemas: os da brincadeira do boi e os da pequena comunidade do bairro e, por força de sua liderança, acaba se transformando numa espécie de “prefeito” de Madre Deus. Quando falei disso, ele riu, satisfeito, acrescentando que “ser dono de boi é uma canseira danada, mas que vale a pena”.
Boi de Anthero
A casa de tabaco vivia sua noite de glória e confusão. No meio da sala, vestido com um pequeno manto todo bordado de miçangas e pedrarias, a “pele” do Boi. No dia seguinte, Tabaco me mostrou uma dezena delas: todas bordadas com os motivos alegóricos de cada ano (A descoberta do Brasil, A primeira missa, Os mártires da Inconfidência, Alegria do povo, etc.). Nisso ele gasta um dinheirão. Mas, onde é que já se viu um Boi sem “pele” ? E por toda casa circulavam os “caboclos de pena” com suas incríveis fantasias de penas de ema (“ema, agora, não tem mais, então, a gente usa as penas daqueles espanadores, dos grandes, e cada fantasia fica num dinheirão”). Alguém já se encarregava de “molhar” o Boi e a garrafa de cachaça corria, fraternalmente de boca em boca, porque “boi seco” é um boi absolutamente desmoralizado.
Tabaco deu ordem para começar. Saímos de sua casa e fomos a um pequeno largo, pouco mais abaixo. E, realmente, a “coisa” começou. Não sei de onde, um som enorme tomou conta de tudo. Um som indescritível, uma batida, uma cadência que não tinha nada a ver com as que eu conhecia. Primeiro foi o “amo” “puxando a toada, depois os tambores-onça, depois as matracas (duas tabuinhas, semelhantes a dois pequenos tacos de assoalho), centenas delas batendo. Isso durou talvez meia hora, talvez mais. Depois tambores e matracas silenciaram e o povo começou a entrar numa capelinha, entoando rezas e ladainhas. Entramos também e lá, diante do altar repleto de imagens de santos e bandeirolas, estava o Boi, velas acesas sobre os chifres. Era o batizado do Boi, “porque não presta o Boi sair assim, pagão”.
Boi de Anthero
Só depois do batizado é que o Boi saiu à rua. Aí finalmente, o som dos tambores e das matracas, o canto, a dança e a brincadeira começaram. E só terminariam às nove horas da manhã seguinte, “quando o sol já estivesse alto, porque um Boi que volta para seu bairro antes do amanhecer é mal-falado o ano todo.
Na face A deste disco, tentamos dar uma ideia da Riqueza e beleza do Boi-bumbá do Norte. A beleza musical das toadas está exemplificada em “Me dá, me dá, Moreninha”, recolhida por Vicente Salles, na praia do Mosqueiro, Pará. “Boi-Bumbá” é um exemplo de um compositor erudito ou semi-erudito como Waldemar Henrique, inspirado em tema de Boi. Boi do Amazonas é outro tema de Boi, recolhido por Walter Santos. Com o Boi de Madre Deus fizemos uma colagem, reunindo toadas, batizado e entrevistas. Uma delas foi com Zé Igarapé, um velho “amo” de boi, da “turma de 1905”. Uma figura maravilhosa, respeitadíssimo e considerado pelo pessoal do Boi da Madre Deus uma espécie de patrono, de líder espiritual. Depois, seguem exemplos de Boi de Orquestra, Boi de Zabumba (Guarnicê) e Boi de Pindaré (Urrou), os vários sotaques do Boi maranhense. Guarnicê e Urrou são duas partes mais características da representação do Boi-bumbá. Finalizando mostramos uma gravação de 1938, realizada por uma equipe dirigida por Mário de Andrade, no tempo do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, o trabalho mais sério que já se fez (e isso há quase quarenta anos), no campo da cultura popular, e que prova a permanência das características fundamentais do Boi ao longo de todo esse tempo.
CAROLINA ANDRADE, Companheira de Marcus Pereira e coordenadora do projeto “Mapa Musical do Brasil” da nossa música popular. Os textos e fotos estão presente no disco “Música Popular do Norte vol.2” lançado como parte do projeto citado acima pelos Discos Marcus Pereira, e que até hoje é um dos principais registros de nossa cultura, música popular, danças e folclore.
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