Nas duas primeiras partes da entrevista histórica como o teatrólogo José Celso Martinez Correa, realizada por Tite de Lemos expostas por este Blog Esquizofia, publicada pela Revista Civilização Brasileira, em seu segundo caderno especial com o título Teatro e Realidade Brasileira, o rebelde-inovador do teatro brasileiro analisou as condições da sociedade paulista dominada pela burguesia-reacionária com um gosto alienado voltado aos valores culturais importados e começou uma mostra do teatro brechtiano.
Nesta terceira parte Zé Celso fala sobre a eficácia do teatro político, do cinema Terra Em Transe do cinegrafista Glauber Rocha no contexto do Brasil golpeado pela ditadura e da necessidade da criação de uma cultura brasileira no sentido do antropofágico Oswald de Andrade.
JOSÉ CELSO – Hoje, conforme for montada a peça, ela poderia ser conformista. Pois não há hoje uma luta palpável contra o que se poderia (mal) comparar ao nazismo, aqui no Brasil. A peça poderia levar o espectador a uma supercrença no poder mágico da dialética, na própria tese engendrando a antítese, nas contradições caminhando por si e na crença de que há realmente um fenômeno espontâneo de reação histórica ao atual estado de coisas. Na realidade não há. Não há oposição. Esta tem que ser suscitada, criada, não mistificada ou fantasiada. O importante não é somente denunciar os generais e americanos. É mostrar que enquanto nós nos entregamos ao nosso oportunismo, somos os beneficiários do estado de coisas que eles criaram. E não adianta chorarmos ou rirmos nos teatros em que isso é mostrado. Estamos colaborando.
A eficácia do teatro político hoje é o que Goddard colocou a respeito do cinema: a abertura de uma série de Vietnãsno campo da cultura – uma guerra contra a cultura oficial, a cultura do consumo fácil. Com o consumo não só se vende o produto, mas também se compra a consciência do consumidor. O sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha teatral. Da anticultura, do rompimento com todas as grandes linhas do pensamento humanista. Com todo descaramento possível, pois sua eficácia hoje somente poderá ser sentida como provocação cruel e total. O dia em que este país tiver um teatro em que cada dramaturgo, ator, diretor, cenógrafo, cada plateia, se manifeste sem medo – é porque alguma coisa de novo poderá estar acontecendo neste São Paulo engravatado, recalcado, introjetado, sem iniciativa e escravizado à imbecilidade do vídeo da TV que compra tudo.
É claro que se nos dirigíssemos a um outro público, e pudéssemos ter um circo para dois mil lugares, por exemplo, onde se pudessem abrigar outras camadas sociais, aí a coisa seria outra. Mas para esse público que paga o mínimo de três cruzeiros novos (ingresso-estudante) para ver o espetáculo, para nós que somos desta mesma classe e para ela falamos, somente a violência e principalmente a violência da arte, sim, da arte, sem o cartilhismo e o pedagogismo barato, nessa situação criadora poderá talvez captar os pontos sensíveis desta plateia morta e adormecida.
Hoje eu não acredito mais na eficiência do teatro racionalista. Nem muito menos no pequeno teatro da crueldade, que na realidade não passa de um teatro de costume; dos maus costumes, com suas prostitutas folclóricas e tudo mais. Para um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é o teatro da crueldade brasileira – do absurdo brasileiro – teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos. A eficácia política numa plateia que não vai se manifestar como classe não será medida pela certeza do critério sociológico de uma peça, mas pelo nível de agressividade. Nada se faz com liberdade neste país, e não é só culpa da censura. Esta realmente pouco trabalho tem. Se se for medir a censura com a violência do que cotidianamente recalcamos!!! A única possibilidade de eficácia é obrigar a se tomar posições e fazer este país, uma ditadura de classe média, tentar sair do seu marasmo. Não se trata mais de proselitismo, mas de provocação. Cada vez mais essa classe média que devora sabonetes e novelas estará mais petrificada e no teatro ela tem que degelar, na base da porrada.
Com isso, depois deste golpe, uma coisa ganhou sentido. O sentido de fazer a arte. A arte pela arte. Nada com mais eficácia politica do que a arte pela arte, porque a arte em si é um fenômeno de criação, de descompromissos com fórmulas feitas, é sentido de reivindicação e portanto de subversão. Um filme como Terra Em Transe dentro do pequeno público que o assistiu e que o entendeu, tem muito mais eficácia política de que mil e um filmecos politizantes. Terra Em Transe é positivo no sentido de colocar quem se comunica com o filme em estado de tensão e de necessidade de criação com este país. A agressividade, a violência que tem a arte é mais forte no campo do teatro que mil manifestos redigidos dentro de toda prudência que a política exigiria. A arte não tem compromisso e neste país parado, tradição de compromisso ou então de criação de um Brasil fictício para consumo da boa consciência da burguesia brasileira e da classe média.
Hoje em dia pode-se dizer que existe uma cultura brasileira – mas se formos ver de perto o que é essa cultura, veremos que não passa da aceitação de tudo que aí está e sempre esteve. Uma cultura que parte de uma ideia ufanista, filha do Estado Novo. O incrível é a semelhança do espírito, por exemplo, da “cultura nacional” de integralismo, com suas editoras, seus Alberto Torres, seu culto nacional a qualquer preço, com o projeto de cultura nacional da esquerda festiva. Uma mesma cultura exótica, folclorista, apologética, grandiloquente, romântica, pseudo-revolucionária, tem sido nossa tradição.
Oswald ri de tudo isso e furiosamente devora este Brasilde papelão fabricado para substituto de nossa história real. Oswald é a possibilidade de uma cultura crítica, fora do oficialismo, do lirismo, do romantismo político. E é o oposto disso. É a devoração antropofágica de todos os mitos criados para impedir este país de copular com a sua realidade e inventar sua história. Neste sentido, é um monumentos isolado (continua).