Archive for Março, 2021

CINCO FILMES E LIVROS PARA AJUDAR A ENTENDER A DITADURA MILITAR NO BRASIL

Março 31, 2021
  1. CULTURA

DIA DO GOLPE

Em tempos de atos antidemocráticos, olhar para o passado pode nos dar uma perspectiva de que futuro queremos

Catarina BarbosaBrasil de Fato | Belém (PA) | 31 de Março de 2021.

A seleção de livros e filmes ajuda a refletir sobre esse período sombrio da história brasileira – Reprodução

Em 1º de Abril de 1964, o Brasil dava início a um período que marcaria a sua história: a ditadura militar (1964-1985). No dia anterior, 31 de março, tanques do exército foram enviados ao Rio de Janeiro, onde estava o presidente João Goulart, e deram início ao golpe.

Três dias depois, o presidente partiu para o exílio no Uruguai e uma junta militar assumiu o poder no Brasil.

Em 15 de abril, o general Castello Branco tomou posse, tornando-se o primeiro de cinco militares a governar o país durante esse período. Assim, iniciou a ditadura militar.

Para entender mais sobre esse período da história brasileira, o Brasil de Fato separou uma lista com cinco livros e filmes que podem ajudar a entender melhor o regime militar.

Seleção de livros

1. A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari

Durante 30 anos, o jornalista Elio Gaspari reuniu documentos sobre os militares no Brasil. Os arquivos deram origem a um conjunto de cinco volumes que contam a história da ditadura no país.

O título se deve ao fato de que “nos primeiros anos após o golpe de 1964, o governo militar ainda relutava em se assumir como uma ditadura, por isso o título A Ditadura Envergonhada.

Na obra, o autor reconstitui os momentos mais cruéis do regime, como a prática da tortura contra os opositores e a violência contra os guerrilheiros do Araguaia.

Outros títulos que compõem a série de livros elaborados pelo autor são: A Ditadura Escancarada; A Ditadura Encurralada; A Ditadura Acabada; e A Ditadura Derrotada.

2. A Noite da Espera, de Milton Hatoum

O livro é o primeiro de uma série com três volumes, um drama familiar que se mescla com a história da ditadura militar.

A história conta a saga de Martim, um jovem paulista, que se muda para Brasília com o pai depois de uma separação traumática da mãe. Na capital do Brasil, recém-inaugurada, Martim vira amigo de jovens que são filhos de altos e médios funcionários da burocracia estatal.

As descobertas de Martim fazem oposição à dor que sente pela separação da mãe, da qual passa longos períodos sem notícias.

3. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães

A biografia que inspirou o filme Marighella, dirigido pelo ator Wagner Moura, levou nove anos para ser escrita.

Em 784 páginas, a obra conta a vida, a produção e a militância do baiano que foi deputado federal, poeta e estrategista da guerrilha no Brasil. A biografia de Marighella (1911-69) é também um livro sobre a história política entre as décadas de 30 e 60 do século 20.

O militante foi vigiado pela CIA (Agência Central de Inteligência) e monitorado pelo KGB (o Comitê de Segurança do Estado da União Soviética), e ainda assim se manteve ativo ao longo de seus quase quarenta anos de militância.

Suas obras são conhecidas mundialmente, principalmente o Minimanual do Guerrilheiro Urbano.

4. A ditadura militar e os golpes dentro do golpe, de Carlos Chagas

jornalista Carlos Chagas (1937-2917) explorou a história contada por jornais e jornalistas para destrinchar o período entre 1964 e 1969, além dos anos que precederam a tomada de poder pelos militares.

5. Infância Roubada: crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”

O livro, produzido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, revela histórias privadas e álbuns das famílias vítimas da ditadura  militar, com foco nas crianças filhas de militantes perseguidos ou mortos.

O material tenta rememorar, a partir das histórias das vítimas, como o Estado militar tratou os filhos de seus opositores. A versão digital pode ser lida aqui.

Seleção de filmes

1. Cabra Marcado Para Morrer (1984), Eduardo Coutinho

Em 1962, Eduardo Coutinho chegou à Paraíba junto com um grupo de integrantes da União Nacional dos Estudantes (UNE). Dias antes, João Pedro Teixeira, líder de uma liga camponesa, foi assassinado a mando de latifundiários da região. O fato atraiu o cineasta, que começou a fazer um documentário sobre a vida de João.

Com o Golpe Militar de 1964, as gravações foram interrompidas e, após confisco dos militares, o conteúdo só pode ser resgatado em 1981.

Eduardo Coutinho, então, passou a resgatar as memórias dos participantes originais trazendo um panorama do que mudou desde o início das filmagens. Assista ao trailer aqui.

2. O Que é Isso, Companheiro? (1997), Bruno Barreto

filme conta a história um grupo de jovens que se organizam para a luta armada após o decreto do Ato Institucional número cinco (AI-5). Eles decidem sequestrar o embaixador dos Estados Unidos no Brasil para negociar o resgate de militantes presos.

O filme retrata o fato verídico na visão de Fernando Gabeira, que participou do caso e relatou em um livro com o mesmo nome. Assista ao trailer aqui.

3. O Dia que Durou 21 Anos (2013), Camilo Tavares

O documentário mostra como o governo dos Estados Unidos esteve diretamente envolvido com o Golpe de 1964 e com a ditadura militar no Brasil. 

O período durou 21 anos até a redemocratização, em 1985. Assista ao trailer aqui.

4. Tatuagem (2013), Hilton Lacerda

Em 1978 um grupo de artistas provoca a moral e os bons costumes policiados pela ditadura militar. Em um teatro/cabaré, localizado entre duas cidades do Nordeste do Brasil, eram realizados os espetáculos da trupe, conhecida como Chão de Estrelas.

O filme mostra um esfacelamento do regime militar, mas ainda a força da repressão. Assista na Netflix.

5. Zuzu Angel (2006) de Sérgio Rezende

O filme que retrata a história de uma mãe que decidiu fazer justiça com as próprias mãos ao descobrir que seu filho foi torturado e morto pela ditadura. Assista ao trailer aqui.

Edição: Rebeca Cavalcante

CEM ANOS SEM JOÃO DO RIO

Março 30, 2021

Ele levou a vida de cortiços, favelas e marginalizados aos jornais. Retratou outra cidade, fora do mito de “ordem e progresso”: violenta, mas vibrante pela cultura popular. Lê-lo, até hoje, é um mergulho na alma encantadora dos brasileiros…OUTRASPALAVRASHISTÓRIA E MEMÓRIApor Pablo Ferreira

03/2021.

Figuras capazes de fazer peso na história, seja pela irreverência, seja pelo talento, não pululam aos montes, o tempo inteiro, como artefatos de uma produção em série. Quando surgem e apresentam ao mundo a razão pela qual vieram, invariavelmente causam a impressão de que de outro modo não poderia ser, de que aquele indivíduo, aquele sujeito em especial, quem sabe por uma combinação de elementos históricos, quem sabe por uma sucessão de acontecimentos coincidentemente convergidos, não poderia ter nascido e feito história em outra época e em outro lugar: haveria de ser ali, naquele momento, naquele contexto dado. Aparentemente, é desse modo que surgem aqueles aos quais chamamos de “geniais”.

Pelo menos, assim é que se pode falar de João Paulo Alberto Coelho Barreto, que também foi, no escoar de sua carreira jornalística, ClaudeJoe, X, Godofredo AlencarCaran D’Ache, José Antônio José e, por fim, o sofisticado, o dândi, o “Oscar Wilde” tropical,o ilustre e atípico João do Rio. Conheçamos um pouco da sua história.

Foi na Rua do Hospício (atual Buenos Aires), no Rio de Janeiro, em 1881, entre epílogos monarquistas e prelúdios republicanos, que nasceu um dos principais cronistas brasileiros do século XX. Filho de um professor de mecânica e astronomia, um modelo elucidativo da progênie positivista que ia despontando à época, e de uma mãe matrona, mulata e carioca, Paulo Barreto não teve a mesma sorte que tiveram os últimos filhos dos abastados senhores de engenho, que cedo eram enviados para o outro lado do Atlântico para lá ficarem durante anos estudando direito em universidades europeias. A ventura o estabeleceria aqui, no ardor severo dos trópicos.

Não se pode dizer, contudo, que esse fato fez de Paulo Barreto um homem menos culto, desses que viviam às margens das discussões culturais que ocorriam na agitada abertura do século XX. Muito pelo contrário. Quando o jornalismo lhe acena, através de uma oportunidade no jornal A TribunaPaulo Barreto retribui logo com uma crítica da peça “Casa de Boneca”, de Henrik Ibsen, manifestando desde cedo o interesse pelo teatro que o acompanharia por toda a sua vida. Em seguida, completada a maioridade, segue no campo jornalístico colaborando com publicações em A Cidade do Rio, de José do Patrocínio, periódico que já havia estampado as crônicas de Olavo Bilac. Foi nesta oportunidade, inclusive, que Paulo Barreto publicaria Impotência, ficção em que abordou, de modo reservado, mas quase que pioneiramente, no Brasil, o tema da repressão e do desejo homoerótico.

Escrito morreu em 23 de junho de 1921. Seu enterro esteve entre os mais frequentados do Brasil, com um público estimado de 100 mil pessoas, ao lado de Getúlio Vargas (300 mil) e Carmen Miranda (60 mil)

Esse contato bem-sucedido com a gazeta, porém, não faria com que o jornalismo deixasse de ser, para o Paulo Barreto de então, um meio subsidiário. Atraído pela pertinência das Relações Exteriores da segunda década republicana, foi tentar a sorte nas sendas da diplomacia, em 1902. Para o intento, dispunha de requisitos consideráveis: temperamento espirituoso, elegância nas vestimentas, inteligência, eloquência,conhecimentos em literatura, em política e em francês, além de dispor de um certo ar bourgeois e aristocrático que muito bem caía aos jovens de antigamente; detalhe decisivo era que, para mais, Paulo Barreto era gordo, mulato e, ao que se dizia, “afeminado”, características essas quase que contrárias àquelas que o Barão do Rio Branco, o austero comandante do Itamaraty, desejava para representar os Estados Unidos do Brasil mundo afora.

A rejeição, numa análise de longo prazo, foi na verdade uma daquelas típicas derrotas da vida que, tempos após, revelam-se imprevisíveis e pertinentes vitórias. É daí em diante que Paulo Barreto entraria decididamente no universo do jornalismo, carreira que abraçaria dedicadamente até o último dos seus dias. Agora, aos 22 anos de idade, 1903, enquanto colunista na Gazeta de Notícias, assinaria pela primeira vez como João do Rio, escrevendo crônicas urbanas e críticas teatrais. A sociedade carioca não tardaria a assistir a sua primeira obra de sucesso.

Com a publicação de As Religiões do Rio, em 1904, livro que reunia uma série de reportagens investigativas escritas para a Gazeta, o jornalista triunfa originalmente sobre a maioria dos autores de sua época. Tratava-se de uma verdadeira pesquisa de campo sobre as religiões existentes no Rio de Janeiro no despontar do século XX. O candomblé, a umbanda, o positivismo, o maronismo católico, o movimento evangélico, o satanismo, o judaísmo, o espiritismo: a própria população carioca não afigurava a coexistência de tantos credos numa só cidade – no Rio de Janeiro ainda por cima, a cidade sobre a qual o Cristo Redentor estende os seus braços hoje em dia. E esse estranhamento bem constata João do Rio logo na introdução do livro:

Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos, pagãos, literários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida, reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto.”

O autor fez o livro e o livro fez o autor. Raimundo Jr. Magalhães, autor da biografia intitulada A Vida Vertiginosa de João do Rio, disse que a partir dessa obra João do Rio pode ser considerado, “sem dúvida, o primeiro grande repórter brasileiro do início deste século”. E não era por menos. Um só homem embutir, num só trabalho, com brilhantismo e sem embaraços, crônica jornalística, estudo antropológico e ensaio sociológico, tudo isso num estilo literário elegante, brilhando de realidade e de impressões fantásticas, era algo que, à época, somente Euclides da Cunha havia alcançando com Os Sertões – com as devidas proporções, naturalmente.

Ainda na Gazeta de Notícias, no ano de 1907, João do Rio ganha salvo-conduto para escrever sobre tudo o que desejasse, na coluna Cinematógrapho, a qual assinava sob o pseudônimo de Joe. Críticas sociais, literárias e teatrais, crônicas, perfis de personalidades, impressões pessoais: a bem consolidada carreira que havia construído, assim como seu talento único para a escrita, havia lhe assegurado a liberdade que tão bem fazia à criatividade do autor. E foi essa mesma criatividade, fundada na inquietação e ombreada ao interesse pela temática urbana e quase que exigida pelas metamorfoses da Belle Èpoque carioca que, nas talentosas mãos do autor, se tornariam crônicas, e estas, reunidas, culminariam em outro grande sucesso do autor: A Alma Encantadora das Ruas.

Enquanto o prefeito Pereira Passos e as autoridades públicas da capital federal empreendiam a política do “bota-abaixo”, dedicando todas as forças governistas na eliminação urbana de qualquer reminiscência do “popular” para fazer do Rio uma metrópole à la française, eis que irrompe João do Rio com sua A Alma Encantadora das Ruas, iluminando o verdadeiro Rio de Janeiro em toda sua nudez, belíssimo, é claro, mas também sórdido e vulgar.

Não que quisesse a afronta pela afronta. João do Rio nunca fora um agitador.Mas se os administradores públicos diziam que no Rio havia palacetes, João do Rio lembrava que também havia favelas e cortiços, e em quantidades superiores; se diziam que havia diplomatas, lembrava que também havia malandros, prostitutas e tatuadores, também em quantidades superiores; e se diziam que havia bonança, ordem e progresso, era preciso lembrar que, nos arredores, verificava-se a existência de viciados sob o efeito narcotizante do ópio cujos corpos se moviam “como larvas de um pesadelo” e de mulheres detentas de “perfis esqueléticos de antigas belezas de calçadas, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas” e “rostos brancos de medo”.

Comprovadamente um escritor talentoso e indiscutivelmente um jornalista inovador, João do Rio é admitido na Academia Brasileira de Letras em 1910, após duas tentativas fracassadas. É ele, inclusive, quem inaugura a tradição de vestir o cobiçado “fardão”, costume continuado pelos imortais da ABL até os dias atuais.

Nos anos que se seguem, pelo menos até 1914, a vida de João do Rio é uma sucessão de glórias. Ainda trabalhando na Gazeta de Notícias, jornal que o acompanhou durante todos seus momentos de prestígio, não demoraria a alcançar o posto de diretor. Publicaria, também, diversos livros, como Os Dias Passam (1911), Vida Vertiginosa (1911), Portugal d’agora (1911) e Psicologia Urbana (1911), além do sucesso que alcançaria nos teatros cariocas com a sua peça A Bela Madame Vargas.

Em 1915 rompe com a Gazeta de Notícia e passa a emprestar seu talento ao periódico O Paiz, que já havia contado com inúmeros nomes de peso da literatura brasileira, como Joaquim Nabuco, Aluízio Azevedo, Coelho Netto e Euclides da Cunha. Nessa empreitada João do Rio inaugura a Pall Mall Rio, célebre coluna social que ganharia o apreço da elite carioca e que, lastimavelmente, daria início a um dos períodos mais frustrantes da vida do autor.

Não se sabe como, nem como e nem por que, mas a coluna foi o rastilho que reacendeu a antiga inimizade entre João do Rio e o também jornalista e membro da ABL Humberto de Campos. Por tempos a Pall Mall Rio foi o principal alvo de sátira de Humberto de Campos, que desferia seus deboches a partir da seção À maneira de Pelle Molle, uma paródia explícita à coluna de João do Rio. O antagonismo entre os autores, que tinha seus precedentes desde as tentativas de João do Rio em entrar para a Academia Brasileira de Letras, ocasionou uma verdadeira campanha difamatória da parte de Humberto de Campos, que aniquilou, impiedosamente, a reputação de João do Rio, explorando, inclusive, os rumores de homossexualidade que acompanhavam desde muito o cronista carioca. O abalo provocado pelo evento trepidou tanto a vida de João do Rio que este, consternado, partiu do Rio rumo à paz de Poços de Caldas, em Minas Gerais, para lá ficar durante um tempo.

Os anos seguintes da sua vida já não seriam tão vertiginosos quanto os de antigamente, com exceção, é claro, da sua ida à Europa em 1918, na plenitude da Primeira Guerra Mundial. João do Rio havia sido enviado à França como correspondente internacional para cobrir a conferência na qual se negociou um armistício entre os beligerantes. As observações extraídas do período em que permaneceu na Europa por cerca de 8 meses resultaria na publicação de Na Conferência de Paz, alguns anos depois.

Continuaria publicando suas crônicas e escrevendo obras sem muita relevância, especialmente no campo do teatro. Em 1921, após sofrer um infarto fulminante no miocárdio, morre tragicamente dentro de um táxi, deslizando sobre as mesmas ruas que havia descrito com tanta magistralidade em suas crônicas jornalísticas.

Atualmente, nos 100 anos de sua morte, apesar de uns poucos trabalhos acadêmicos e da tumba de bronze erguida por ordem de sua mãe, no Cemitério São João Batista, no bairro do Botafogo, a memória de João do Rio resta descuidada. Testemunha fiel de um dos períodos históricos mais relevantes para a história brasileira, os anos inicias da primeira república, além de um escritor talentosíssimo, pouco ou nada se vê em referência ao autor nos meios culturais. Numa praça em Lisboa, Portugal, país que recebeu algumas colaborações do autor em razão de parcerias firmadas com autores portugueses, há um busto erguido em memória de João do Rio; no Rio de Janeiro, terra que abraçou e sobre a qual dedicou sua pena durante quase toda sua vida, não se vê uma exposição, uma estátua, um grafite, uma placa comemorativa que seja que represente a gratidão que se deveria ter pelo patrimônio construído por esse importante jornalista de outros tempos.

Mas ter esperanças é importante. E certamente devemos continuar a sustentar aquela que Marques Rebelo havia esboçado no romance O Trapicheiro, publicado em 1959, e que merece ser aqui transcrito com as todas as suas letras:

“– Não se iludam com o mérito de João do Rio. É defunto demasiado fresco ainda para ser julgado com isenção e clareza. O homem que era, mundano e vicioso, perturbou a valorização real da obra, eivada de futilidades e de facilidades, impregnada do terrível sal do mundanismo. E o Movimento Modernista contribuiu sobremodo para o momentâneo esquecimento. Mas tempo virá, não tenha dúvida, em que seremos obrigados a reconhecer a importância da sua contribuição. As religiões no Rio, Vida vertiginosa e Alma encantadora das ruas são formidáveis documentários, que não pretenderam, quando escritos, ser mais que reportagens para jornal. Caramba, foi o nosso primeiro repórter, o reformador da nossa imprensa mambembe, dando-lhe vivacidade, trepidação, contato com o povo, com a realidade! Acham pouco? Marchamos sobre as suas pegadas, mas depreciamos o semeador – é irrisório!


ANTELO, Raúl. João do Rio – o dândi e a especulação. Rio de Janeiro, Taurus, Timbre, 1989.

ANTELO, Raúl, A alma encantado das ruas. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

MAGALHÃES Jr., Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1978.

SOUSA, Patrícia de Castro. João do Rio: O repórter com alma de flâneur conduz a crônica-reportagem na belle époique tropical. Universidade Federal de Santa Maria: Dissertação de Mestrado, 2009.

ANIMAÇÃO PARAENSE “AS ICAMIABAS” NEGOCIA INGRESSO NO MERCADO INTERNACIONAL

Março 28, 2021
  1. MOSAICO CULTURAL

AMAZÔNIA

Idealizadores estão em conversa com serviços de streaming. Com isso, o acesso ao público será facilitado

Catarina Barbosa Março de 2021.

Ouça o áudio:Play00:0005:51MuteDownload

A série mostra diversos elementos da cultura indígena como os deuses Tupã — que na série é um cozinheiro — e Jacy — que se apresenta como uma blogueira. – Divulgação

“O grande lance da Cidade Amazônia é que a gente pense em uma Amazônia decolonial”

Quando você escuta ou lê a palavra Amazônia, uma das primeiras coisas que te vem à mente não é preservação? E se eu te contar que existe um desenho que conta a história de índias que protegem a Amazônia do ataque de invasores? Pois é, o Iluminuras Estúdio, de Belém do Pará, criou o desenho animado “As Icamiabas”, que em breve estará disponível em serviços de streaming.

A animação foi inspirada na lenda das “Icamiabas” ou “Iacamiabas”, índias guerreiras que formaram uma aldeia só de mulheres na Amazônia.

:: Convite à imaginação: conheça a tradição paraense dos brinquedos de miriti ::
 
Atualmente, os responsáveis pela série estão em conversas com serviços de streaming, que ainda não podem ser revelados, para conseguir recursos tanto para criar novos episódios quanto para levar a série para o mercado internacional. 

A série, batizada de Icamiabas na Amazônia de pedra, foi produzida em 2012, a partir de um edital da TV Cultura do Pará, e resultou em animações de um minuto de duração.

Agora, a série conta com episódio de aproximadamente 11 minutos cheio de mensagens sobre a defesa da floresta, o cotidiano amazônida e a reflexão de como seria viver um outro tipo de sociedade. Tudo isso com aventura e diversão como todo bom desenho animado.

Para quem é nascido no Pará, a série é um presente para os ouvidos, cheia de gírias como “égua”, “mimimi” e “não te faz de leso”.

:: Radinho BdF – programa semanal ::

Otoniel Oliveira, trabalha no Estúdio Iluminuras e é o criador de “As Icamiabas” junto com Petrônio Medeiros. Ele conta que a ideia da série, desde o início era ir além.

“Com essa versão maior da série, de 11 minutos, a nossa ideia era tanto expandir o universo quanto expandir a ideia. O grande lance da Cidade Amazônia é que a gente pense em uma Amazônia decolonial, que possa representar um exercício de como a nossa sociedade poderia se desenvolver se a gente tivesse uma outra lógica que não uma imposição europeia de valores e mercados, mas um outro tipo de relação com a vida e com os outros”. 

Essa outra relação que Otoniel fala pode ser encontrada, por exemplo, na relação com as árvores. Na “Cidade Amazônia” cada casa tem uma árvore, que é uma companheira com que as pessoas podem conversar. Além disso, as construções humanas estão imbricadas com a natureza. Uma reflexão a tantas árvores derrubadas para dar lugar a construções humanas. 

:: Livro retrata história dos sem-terrinha na superação de desafios na luta pela terra ::

Na série, dona Samaúma, é moradia, mas também uma companheira das personagens Iuna, Laci, Conori e Thyhi. Para o criador da série, essa ideia veio não só de uma criação só, mas de uma percepção de que no Norte do país, sobretudo, na região amazônica, a relação com o feminino é particular.

“Isso também vem da observação de que a gente é um pouco mais matriarcal nesta região. Temos a percepção de uma dinâmica familiar, do centro da família, que gira ao entorno de uma presença feminina, de uma certa sabedoria. Isso pode ser observado tanto em sociedades indígenas quanto não indígenas. Então, para a gente é muito natural fazer uma série que aborda essa dinâmica e esse aspecto”. 

Apesar de todas as mensagens que a série traz, Otoniel Oliveira, afirma que o que pretende é que as pessoas possam encontrar na série uma forma de se divertir e também de pensar uma outra Amazônia para o mundo.

:: Amazônia: Radinho BdF adentra a maior floresta tropical do mundo ::
 
“A gente só quer que seja divertido, assim como é divertido para uma criança o conceito de super herói, de samurai ou o conceito de pirata, a gente tem o conceito de uma mitologia amazônica sendo representada para que se desenvolva essa percepção de que é legal, faz parte da nossa vida, faz parte da nossa realidade e também faz parte de algo que tu devas pesquisar e te aprofundar mais”. 

Se essa é a recomendação, o meu filho Rafael Barbosa Bentes, de quatro anos, ficou hipnotizado com o desenho e como todo desenho que ele gosta, pediu para ver “mais uma vez”.

O primo do Rafael, Joaquim Corrêa, que tem 10 anos, conta que viu pela primeira vez a série na TV Cultura, na televisão. Além de gostar da série, ele diz que sua personagem preferida é a Thyhi.

“Eu gosto do poder que ela tem, mas também gosto das outras personagens e da dona Samaúma. O que eu acho mais legal na série é que eles falam do jeito que eu falo e elas também protegem a natureza e é muito importante a gente cuidar da natureza”.

Edição: Daniel Lamir

LIVRO CONTA 21 HISTÓRIAS DE ESTUDANTES QUE LUTARAM PELA EDUCAÇÃO

Março 27, 2021

Por Redação Carta Maior 03/2021.

(Divulgação)

Créditos da foto: (Divulgação)

 
Pode um estudante mudar a escola? É uma dúvida para muita gente, inclusive os próprios estudantes. A Associação Quero na Escola lançou recentemente um livro que reúne diversas experiências importantes, de estudantes de diferentes partes do mundo, que lutaram por novos paradigmas na educação não deixa dúvidas: a resposta é sim. A obra “21 Histórias de Estudantes que Mudaram a Escola” é uma coletânea de casos reais, de adolescentes que conseguiram, de alguma forma, transformar sua própria escola e, às vezes, até mesmo o sistema educacional.

Se tratam de pessoas de carne e osso, que ainda muitos novas precisaram lutar para ter acesso à educação ou melhorar a educação que eles e seus colegas recebiam. No livro, há casos mundialmente famosos, como os de Malala Yousafzai, que lutou pelo direito das meninas estudarem, e de Greta Thunberg, que se tornou a maior voz contra o aquecimento global ao escolher faltar às aulas. Mas há também histórias emocionantes que nunca ganharam os holofotes ou que não são vistas como se tivessem sido feitas por pessoas ainda nos bancos escolares. São histórias que merecem ser conhecidas por todos.

A Associação Quero na Escola trabalha há anos incentivando ações que visem dar protagonismo aos alunos, e perceberam que muitas vezes os estudantes não se veem como pessoas capazes de sugerir mudanças na educação.

“A escola parece para eles um sistema estático, com regras que só os adultos podem mexer. As 21 narrativas do livro mostram que a verdade é bem diferente: os alunos têm sim grande poder e quando o usam mobilizam muito mais”, diz Cinthia Rodrigues, uma das autoras.

Outra das autoras do livro é Luciana Alvarez, que afirma que “reunir histórias de conquistas educacionais promovidas pelos adolescentes – e não pelos governos, estudiosos ou professores – colabora para o grande esforço da atualidade de colocar os alunos no centro do processo de ensino-aprendizagem. Queremos que essa centralidade seja plena”.

Cinthia Rodrigues e Luciana Alvarez são jornalistas com mais de 10 anos de experiência na cobertura de temas relacionados à educação, tendo atuado em jornais como O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, além de revistas como Nova Escola e Educação. Ambas são cofundadoras da Associação Quero na Escola.

O livro está em campanha de financiamento coletivo, na qual se pode contribuir com valores a partir de 50 reais. Para conhecer melhor o projeto e os benefícios que a campanha oferece basta clicar neste link: https://www.catarse.me/21estudantes.

Os valores arrecadados na campanha serão usados para financiar o trabalho da Associação Quero na Escola, uma organização não governamental criada em 2015 com o objetivo de contribuir com a educação pública em suas demandas reais dos estudantes por aprendizados além do currículo obrigatório, fomentar o debate na sociedade sobre essa necessidade e atender às solicitações dentro das próprias escolas públicas.

QUANDO TRUMAN CAPOTE FOI PAI

Março 26, 2021

TRUMAN CAPOTE

Documentário ‘The Capote tapes’ retrata a relação de proteção que o autor de ‘A sangue frio’, morto há 35 anos, manteve até o final da vida com Kathy Harrington, filha de um dos seus amantes

Truman Capote, no 10º aniversário da revista 'Interview', de Andy Warhol, no mítico Studio 54 nova-iorquino, em 1979. Em vídeo, o trailer de ‘The Capote tapes’. / FOTO: GETTY
Truman Capote, no 10º aniversário da revista ‘Interview’, de Andy Warhol, no mítico Studio 54 nova-iorquino, em 1979. Em vídeo, o trailer de ‘The Capote tapes’. / FOTO: GETTY

ANDREA AGUILARMadri – 26 MAR 2021.

Ele conhecia todo mundo, e todo mundo sabia quem era ele. Foi um dos escritores norte-americanos mais brilhantes e ímpares do século XX. Truman Capote (Nova Orleans, 1924 – Nova York, 1984) sempre teve claro que a literatura não tinha motivo nenhum para brigar com os holofotes. Desde sua brilhante estreia, aos 24 anos, deu muito que falar, e, como provam as biografias e filmes que foram saindo, o diálogo não terminou com sua morte, que completa agora 35 anos, quando ele estava prestes a fazer 60.

Ousado, provocador, fofoqueiro incorrigível, sua língua viperina e sua pena afiada eram capazes de dissecar com a mesma frieza um assassino e uma deslumbrante estrela de Hollywood. Mas há outras caras de Capote mais desconhecidas, como o papel protetor que exerceu para sua afilhada Kathy Harrington, filha de um de seus amantes. Esta história é narrada agora no documentário The Capote tapes, escrito por Holly Whiston e Ebs Burnough e dirigido por este último. O filme, apresentado no Festival de Toronto de 2019 e estreado há pouco mais de um mês no Reino Unido chegou nesta quarta-feira à plataforma europeia Filmin.PUBLICIDADE

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Ebs Burnough, assessor da primeira-dama Michelle Obama e subsecretário do gabinete de relações externas da Casa Branca durante a administração de Barack Obama, compreendeu após ler uma biografia do fundador da rede CBS, William S. Paley, que a história que realmente lhe fascinava era a subtrama envolvendo Capote. “Voltei a ler os livros dele e comecei a entrevistar gente como a jornalista de fofocas Liz Smith, que o conheceu muito bem”, conta Burnough por videoconferência do Caribe, onde se encontra com seu marido, o financista belga Pierre Lagrange, e sua filha pequena.

Foto tirada no Studio 54 mostra Truman Capote rodeado por Gloria Swanson (à dir.) e Kate Harrington, filha de um amante dele que era protegida do escritor. / GETTY / EL PAÍS
Foto tirada no Studio 54 mostra Truman Capote rodeado por Gloria Swanson (à dir.) e Kate Harrington, filha de um amante dele que era protegida do escritor. / GETTY / EL PAÍS EL PAÍS

Burnough estava intrigado com a estreita amizade que uniu o escritor à mulher de Paley, a bela Barbara, ou Babe, mas sobretudo seu final abrupto. O corte radical com esse “cisne” (assim Capote se referia às mulheres da alta sociedade com quem compartilhava confidências) foi uma resposta à publicação na revista Esquire, em 1975, de um trecho de Súplicas atendidas, o romance no qual ele passou anos trabalhando e não conseguiu concluir.

O título do novo documentário faz referência às gravações com as entrevistas que o editor da The Paris Review, George Plimpton, fez com mais de uma centena de pessoas enquanto preparava uma história oral sobre Capote, afinal publicada em 1997, na qual “vários amigos, inimigos e detratores recordam sua turbulenta carreira”, como esclarecia o subtítulo. A equipe de Burnough transcreveu aqueles áudios. As vozes neles contidas incluem desde a atriz Lauren Bacall até o escritor Norman Mailer. “Sua atitude era exaustiva!”, ouve-se Mailer dizer, recordando a tensão que passou quando entraram juntos em uma cervejaria lotada de fornidos irlandeses e Capote ciscava entre aqueles sujeitos, enquanto Mailer só pensava que acabaria tendo que sair no soco com algum deles. Nada aconteceu. “Capote foi abandonado quando criança, passou por muita coisa e desenvolveu uma couraça que lhe permitiu sobreviver. De algum modo, suponho que isso o fazia ser cruel com os outros”, reflete Burnough.

Truman Capote com Gloria Guinness. / FILMIN / EL PAÍS
Truman Capote com Gloria Guinness. / FILMIN / EL PAÍS EL PAÍS

The Capote tapes também inclui imagens novas e entrevistas com o historiador da arte John Richardson, o romancista Colm Tóibín, a crítica Sadie Stein, o jornalista de moda André Leon Talley e o editor Lewis Lapham. Mas a grande desconhecida que o filme apresenta é Kathy Harrington, filha de um dos últimos amantes de Capote, o corretor de valores Jack O’Shea. “Eu o conheci na sala da nossa casa”, conta essa mulher loira e franca, olhando para a câmera. Meses depois, seu pai tinha largado a família e ela escreveu a Capote, que a incentivou a viajar a Nova York e a apresentou ao fotógrafo Richard Avedon para que trabalhasse como modelo.PUBLICIDADE

Tinha 13 anos quando foi morar com o autor de A sangue frio e, embora tenha saído do apartamento anos depois, acompanhou Capote até o final. “Foram uma dupla até a morte dele. Capote é conhecido como alguém malvado, um diabinho terrível [’tiny terror’], como o apelidavam, uma rainha perversa. E tudo isso é verdade, mas também é verdade que teve um extraordinário desejo de dar e receber amor”, observa Burnough. “Sua história com Kate demonstra que ele queria formar uma família em um momento em que um homossexual não podia tê-la. Porque outra das coisas que não se reconhecem nele é que foi um homem abertamente gay, quando isso era punido.”

O documentário ‘The Capote tapes’ homenageia o escritor no 35º aniversário da sua morte. / EL PAÍS
O documentário ‘The Capote tapes’ homenageia o escritor no 35º aniversário da sua morte. / EL PAÍS EL PAÍS

Capote foi corajoso e expôs sua homossexualidade sem disfarces desde o começo, e isto permeou em parte sua escrita. No filme se descreve seu primeiro livro, Outras vozes, outros lugares, como uma versão gay de As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, e também se menciona a intensa relação de Capote com Perry Smith, um dos dois assassinos de A sangue frio.

O trabalho de Capote é entendido melhor hoje do que na sua época? “Sim e não, porque seu mundo se baseava em uma hierarquia e em estruturas muito diferentes das que vigoram hoje”, diz Sadie Stein por e-mail. “A confiança e a discrição tinham que existir para poderem ser traídas. E na era da internet damos como certas muitas coisas que são escandalosas e temos integrados a não ficção narrativa e o true crime que Capote criou.”

John O’Shea, Kate Harrington e Truman Capote.
John O’Shea, Kate Harrington e Truman Capote.

Aos seis anos sua mãe deixou Truman a cargo de algumas tias no Alabama e mais tarde o levou com ela a Nova York, para que vivessem com o segundo marido dela, um empresário cubano que lhe deu o sobrenome Capote. No primeiro colégio onde aterrissou em Manhattan ficou amigo de Carol Marcus, Gloria Vanderbilt e Oona O’Neill. “De todas elas e de sua mãe tomou algo para sua personagem de Bonequinha de luxo”, comenta Burnough. “Esse livro conta uma história bastante dura de uma senhorita de companhia e um gigolô, mas é maravilhosamente escrito. Sua escrita era pessoal e reconhecível, mas o álcool e as drogas acabaram por cegá-lo. Os vícios podem consumir um talento tão grande como o dele.”

Calculou mal o efeito de contar as intimidades de suas amigas ricas e famosas? “Capote precisava estar conectado e o deixaram de fora. Perdeu sua família, as pessoas com quem tinha passado os últimos 20 anos da sua vida”, relembra Burnough. Foi então quando se voltou para Warhol, a Factory e a casa noturna Studio 54, que frequentava com Kate, sua afilhada. Também mostrava sua franca decadência nos estúdios de televisão. Será que a história de Capote esconde alguma mensagem moral a levar em conta para não se perder no glamour? “Bom, o brilho é muito divertido, mas há trabalho por trás”, conclui Burnough.

BLOG DO CINEMA: ANTES DE MERGULHAR

Março 25, 2021
Cena de "Druk"
25 DE MARÇO DE 2021 | JOSÉ GERALDO COUTO

“É preciso estar sempre bêbado”, escreveu celebremente Baudelaire num poema em prosa. Druk – Mais uma rodada, de Thomas Vinterberg, põe essa ideia à prova na ficção, ao narrar uma experiência levada a cabo por quatro professores de um colégio dinamarquês. O longa-metragem, que concorre aos Oscars de filme estrangeiro e direção, está entrando em cartaz nas plataformas de streaming Now, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube Filmes.https://www.youtube.com/embed/r3jPVVvpQOA?feature=oembed

Numa comemoração de aniversário, um dos quatro colegas, Nikolaj (Magnus Millang), professor de psicologia, fala aos outros três sobre a teoria de um filósofo norueguês segundo a qual os seres humanos têm um déficit de 0,05% de álcool no sangue, e que, para realizar plenamente suas potencialidades, eles deveriam suprir diariamente essa dose que falta. Mais do que a frase de Baudelaire, a tese lembra uma conhecida boutade de Humphrey Bogart: “A humanidade está sempre duas doses atrasada”.

Pois bem: meio por brincadeira, meio por curiosidade científica, os amigos passam a testar em si mesmos a hipótese, munidos de bafômetros e evidentemente escondidos da direção da escola e dos alunos. Seu desempenho em sala de aula tem uma visível melhora, sobretudo para o professor de história, Martin (o excepcional Mads Mikkelsen, de A caça).

Também o relacionamento dos quatro com os estudantes passa a ser mais rico. É como se eles ampliassem a sensibilidade para o ambiente em torno e recuperassem a paixão por suas áreas de atuação (os dois restantes são um professor de música e um de educação física). O problema é que eles resolvem aumentar cada vez mais as doses diárias, o que acaba ocasionando problemas familiares, em alguns casos, e profissionais, em outros.

Estética trôpega

Não vou entrar em detalhes da trama, só dizer que o filme enfrenta bem os perigos implicados numa obra com essa premissa, quais sejam, de cair na apologia do alcoolismo ou em seu oposto, a condenação moral do vício. Cada história individual (não só dos quatro professores, mas também de alguns alunos que ganham visibilidade na trama) é um caso específico. Cada indivíduo reage de uma maneira à ingestão de álcool. Este, quando muito, potencializa tendências – boas ou más – já existentes e amortecidas pelas convenções cotidianas.

As verdadeiras questões que inquietam os personagens, tanto os adultos como os adolescentes, são angústias típicas de nossa sociedade globalizada: a solidão, o medo da rejeição, o sentimento de inadequação, o temor de não corresponder às expectativas, a frustração. Por isso, em alguma medida, todos bebem. Segundo consta, a Dinamarca é um dos países com maior índice de consumo alcoólico entre adolescentes. Mas, com algumas modificações, a mesma história poderia ser contada na Rússia, no México ou no Brasil.

Do ponto de vista formal, pela primeira vez parecem justificar-se plenamente a recorrência da câmera na mão, dos enquadramentos aparentemente descuidados, dos “estouros” de luz e da montagem abrupta que caracterizam vários filmes de Vinterberg desde os tempos em que participou do movimento Dogma 95, há mais de duas décadas.

Aqui, esses procedimentos servem para transmitir uma sensação de instabilidade característica do estado etílico. Essa estética deliberadamente trôpega, que só tem a aparência de improvisada, pois certamente demandou muito ensaio e preparação, permite que os atores (todos formidáveis) não precisem forjar trejeitos convencionais de embriaguez, como o andar cambaleante e a fala pastosa. A câmera se embriaga por eles.

A estrutura narrativa é circular, ou melhor, em espiral. Começa com uma bebedeira coletiva dos estudantes (uma corrida em que o vencedor é o grupo que conseguir beber mais cervejas em menos tempo ao redor de um lago) e termina com outra, que não vou antecipar aqui. Entre um e outro porre, cada um dos personagens principais vive experiências pessoais intransferíveis, com os resultados mais diversos, para o bem ou para o mal.

Competição e comunhão

Na primeira bebedeira a atmosfera é sôfrega, quase desesperada, marcada pela competição e pelo desejo de autoafirmação. A segunda é de euforia e comunhão. Mas não é necessariamente um final feliz, pois alguém tombou no caminho – e o protagonista Martin termina literalmente no ar. Seu futuro pode ser o melhor ou o pior. Afinal, como cantam os versos de Caetano Veloso, “a vida não é mais do que o ato/ da gente ficar/ no ar/ antes de mergulhar”.

Em tempo: isto não conta para a avaliação do filme, mas Druk ganha uma densidade dramática extra quando se sabe que a filha de Thomas Vinterberg, Ida, que estava escalada para fazer o papel de filha do protagonista, morreu num acidente de carro dias depois de iniciadas as filmagens. Foi ela que contou ao pai sobre as competições de bebedeira nos colégios dinamarqueses. Vinterberg foi substituído no set por seu corroteirista Tobias Lindholm durante uma semana, depois retomou o trabalho “para não enlouquecer de dor”. O filme é dedicado a ela e foi filmado em parte em sua sala de aula, com alguns de seus colegas.

3ª MOSTRA NEGRITUDE INFINITA EXIBE 34 FILMES DE REALIZADORES NEGROS DE TODO O PAÍS

Março 24, 2021
  1. CULTURA

CINEMA

A mostra acontece até o dia 28 de março em formato online com exibição gratuita das produções

Da RedaçãoBrasil de Fato | Fortaleza (CE) | Março de 2021.

Ouça o áudio:Play01:2301:23MuteDownload

Curtas, médias e longas-metragens de realizadores, produtores e/ou atores negros foram feitos antes e durante a pandemia – Foto: Divulgação/Filme Entremarés

Até o dia 28 de março, a 3ª Mostra Negritude Infinita promove a exibição de 34 filmes, entre curtas, médias e longas, feitos antes e durante a pandemia, por realizadores, produtores e/ou atores negros. As produções estão disponíveis gratuitamente no site da Negritude Infinita, separados em oito sessões. 

A programação inclui debates a cada sessão e uma oficina de crítica ministrada por Bruno Galindo e Lorenna Rocha. A oficina AMPLI_AR acontecerá de 23 a 26 de março e ocorrerá em quatro encontros com o objetivo fazer uma breve introdução à crítica [negra] brasileira, a partir da implicação entre o campo da crítica e do cinema negro no Brasil. O programa faz parte do Eixo Formativo da Negritude Infinita.

A Mostra, que teve início na última quinta (18), conta com a curadoria de Darwin Marinho, Leon Reis, Lílian do Rosário e Luly Pinheiro. Parte das produções possuem Legenda para Surdos e Ensurdecidos (LSE).

Confira a programação completa

Oficina AMPLI_AR – Programa de Crítica – Com Bruno Galindo e Lorenna Rocha, de 23 a 26 de março, das 14h às 17h.

3° Mostra Negritude Infinita
De 18 à 28 de março, no site www.negritudeinfinita.com
Sessões 01, 02, 03 e 04 disponíveis de 18 à 22
Sessões 05, 06, 07 e 08 disponíveis entre 23 e 27 de março

Todas as sessões disponíveis no dia 28 de março

Sessões

Sessão 1 – Linha umbilical
1. Papiamento – 
Felipe Oladele – 13m – MG
2. Cavalo – Raphael Barbosa e Werner Salles – 85m – AL – (LSE)

Sessão 2 – Habitar o Escuro
1. COSMOVERSE ARKSTRA – 
TRANSÄLIEN – 9m – SP
2. A Noite Se Tornará Ainda Mais Escura – Bianca Ellen, Lux Farr, Isa Vitório, Fran Xyk e Arara – 12m – CE
3. Sobre Olga – Tayná Almeida – 20m – PR
4. A Barca – Nilton Resende – 19m – AL
5. EGUM – yuri costa – 23m – RJ

Sessão 3 – Como peixes errantes
1. Entremarés – 
Anna Andrade – 20m – PE – (LSE)
2. PATTAKI – Everlane Moraes – 21m – CUBA
3. Pindorama, terra das palmeiras – Zahra Alencar – 6m – SP
4. Suellen e a Diáspora Periférica – Renata Dorea – 4m – MG
5. Puerpério – Luciana Oliveira – 9m – SE

Sessão 4 – Pássaro que voa para frente e olha para trás
1. Acervo ZUMVI –
 O Levante da Memória – Iris de Oliveira – 36m – BA
2. Macumba as guardiãs do segredo – Viviane Maísa – 43m – SP – (LSE)
3. Rastros da z’encruzilhadas – Pedra Silva – 6m – CE
4. Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé – Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra – 14m – RJ
5. Rio-coral – Kulumim-Açu – 5m – CE

Sessão 5 – Línguas Enroladas – Linguagens em Parto
1. Yá Me Conte Histórias – 
Carine Fiúza – 8m – PB
2. Chico Rei Entre Nós – Joyce Prado – 95 min – SP – (LSE)

Sessão 6 – Presente é ficção
1. Ancestralidade de Terra e Planta –
 Keila Serruya Sankofa – 5m – AM
2. Desguardar – Ed Borges – 3m – CE
3. Ecstatic – Vitor Rennan – 8m – CE – (LSE)
4. Você Já Tentou Olhar nos Meus Olhos – Tiago Felipe – 4m – PR
5. I am vírus – Paula Trojany – 8m – CE

Sessão 7 – Reinvenções de si, cuidado e afeto com o outro
1. Álbum de casamento – 
Otávio Conceição – 7m – BA
2. Notícias De São Paulo – Priscila Nascimento – 11m – PE
3. Rosário – Igor Travassos e Juliana Soares – 18m – PE
4. Os Dias Com Você – Letícia Cristina e Luan Santos – 4m – SP
5. À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente – Bruna Barros e Bruna Castro –  13m – BA

Sessão 8 – Trabalho de Amar
1. Rebento –
 Vinicius Eliziario – 18m – BA – (LSE)
2. Meninos Rimam – Lucas Nunes – 20m – SP
3. Bonde – Asaph Luccas – 18m – SP
4. Cool for the summer – Vitória Liz – 6m – SP/PE
5. Di cumer, rezar e trabalhar – Fabinho Santinho – 11 min – SP

Fonte: BdF Ceará

Edição: Francisco Barbosa e Poliana Dallabrida

CINEMA: OS 7 DE CHICAGO E OS DILEMAS DA REVOLUÇÃO

Março 22, 2021

Favorito ao Oscar, inspira-se na perseguição real aos protestos contra a Guerra do Vietnã. Desvela o racismo jurídico e as rixas do pacifismo, entre a revolução e as instituições. Tem a eficiência de Hollywood mas peca pela simplificação moral…OUTRASPALAVRASPOÉTICASpor José Geraldo Couto

03/2021.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, que está na Netflix e concorre ao Oscar de melhor filme e a outras cinco estatuetas, trafega confortavelmente na intersecção de dois filões seguros do cinema americano: o drama de tribunal e a releitura ficcionalizada de momentos importantes da história dos Estados Unidos.https://www.youtube.com/embed/hunYgcovmjQ?feature=oembed

O fato histórico, no caso, é o julgamento de sete ativistas presos quando participavam de uma manifestação contra a guerra do Vietnã que terminou em confronto sangrento com a polícia, por ocasião da convenção democrata de 1968 em Chicago.

Os sete de Chicago, na verdade, eram oito – e não eram de Chicago. A acusação que pesava sobre eles era, justamente, a de ter vindo de outros estados para, de caso pensado, provocar uma insurreição violenta e desafiar as instituições americanas. O oitavo acusado, o militante dos Panteras Negras Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), acabou sendo retirado do caso e julgado em separado.

O que há de mais interessante e atual no filme de Sorkin talvez seja justamente a presença desse indivíduo à parte, Seale, o único negro do grupo e o único que estava preso à época do julgamento, sendo conduzido algemado à sala do tribunal. Ele estava encarcerado por outra acusação (o assassinato de um policial), da qual foi depois inocentado. Seu advogado, com problemas de saúde, ficou impossibilitado de atuar no caso de Chicago e por isso Seale foi inserido a contragosto no julgamento dos outros acusados, todos sob a defesa do advogado William Kunstler (Mark Rylance).

Não cabe entrar em detalhes sobre o enredo, nem sobre as entranhas do sistema judiciário norte-americano e suas relações perigosas com o jogo do poder. Basta dizer que o republicano Nixon assumiu a presidência no início de 1969, substituindo o democrata Lyndon Johnson, e essa mudança alterou os rumos do processo.

Pacifismo dividido

O interessante, do ponto de vista histórico-social, é observar as várias tendências do movimento pacifista dos anos 1960, e que estão representadas nos sete de Chicago: os estudantes democratas, como Tom Hayden (Eddie Redmayne), os anarquistas do Partido Internacional da Juventude, como Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong), e os pacifistas radicais independentes, como David Dellinger (John Carroll Lynch). Além, é claro, dos Panteras Negras, representados por Seale, o oitavo elemento.

Em flashbacks que reconstituem os acontecimentos do dia fatídico a partir das lembranças e depoimentos dos envolvidos, ocasionalmente incrementados por vibrantes imagens documentais, ficam evidentes as diferentes perspectivas e motivações em jogo. Uma cisão, em especial, sobressai: entre a “revolução cultural” pregada por Hoffman e Rubin, que incluía sexo, drogas e rock’n’roll, e a tendência de participação dentro das instituições, representada por Hayden, que de fato se tornaria depois um político democrata de longa atuação no Congresso.

Mas mesmo essa divergência parece secundária, quase superficial, quando comparada com o fosso entre esses militantes brancos e o negro Seale, sem advogado e sem direito a voz. Uma das melhores cenas é aquela em que esse abismo histórico-social se explicita, com Seale interpelando o futuro deputado Hayden, que gagueja seu constrangimento.

Piloto automático

Do ponto de vista da condução narrativa, Os 7 de Chicago tem aquela eficiência básica, convencional, quase de piloto automático, do bom cinema comercial americano, com mudanças bem dosadas de ritmo. Acelerado no início, quando apresenta o assunto e os personagens em cenas breves, passa a alternar depois os tempos mais lentos das sessões do tribunal e das discussões de bastidores entre os acusados com os flashbacks nervosos do dia do confronto, assumindo por fim um crescendo dramático que desemboca na catártica cena final.

O problema aqui é o de quase todos os filmes hollywoodianos “baseados em fatos reais”: as forças sociais e motivações político-ideológicas acabam sendo colocadas em segundo plano em favor do mecanismo de projeção/identificação do espectador com os personagens. Há uma simplificação moral de modo a produzir quase a cada cena pequenos embates que mobilizem a emoção do espectador, preparando-o para a apoteose lacrimejante final.

Nada contra essa fórmula, desde que se tenha consciência, primeiro, de que é uma fórmula e, segundo, de que não se deve tomar o filme como “a verdade sobre os fatos”, mas apenas como uma leitura deles, ou melhor, um recorte, uma reconstrução ficcional. Se o filme incentivar as pessoas a pesquisar sobre os eventos e personagens e a pensar sobre os assuntos abordados, ótimo. Se o espectador sair pensando “Sei tudo sobre esse caso, eu vi o filme”, terá sido ludibriado.

QUADRINHOS AFRICANOS MOSTRAM DIVERSIDADE DO CONTINENTE E COMBATEM PRECONCEITOS

Março 21, 2021
  1. CULTURA

SEM ESTEREÓTIPO

As narrativas buscam evidenciar a diversidade existente nos diferentes países africanos

RedaçãoBrasil de Fato | São Paulo (SP) | 21 de Março de 2021.

Campanha internacional para a libertação de Ramón Esolo Ebalé – Divulgação

Por muito tempo persistiu – e ainda persiste – no imaginário coletivo o estereótipo de que a África é um lugar atrasado e assolado pela miséria. Essa forma de pensar e de se representar a África vem sendo colocada em cheque graças ao esforço de diversos intelectuais e artistas africanos que apresentam outras perspectivas sobre o continente, denunciando, assim, o grande perigo que é contar uma história única.

Nesse cenário de reivindicação das narrativas e reinterpretação dos sentidos na busca de evidenciar a diversidade existente nos diferentes países africanos, a cena de quadrinhos africanos surge como uma potência criativa que vem chamando a atenção dos leitores não só do Brasil, mas de todo o mundo.

Leia também: Artista questiona a representação de pessoas negras nos HQ’s

“Há na cena de quadrinhos do continente uma variedade enorme de estilos, traços e influências distintas abordando as mais diversas temáticas. Temos desde contos infantis, como Akissi, de Marguerite Abouet e Mathieu Sapin, passando por narrativas biográficas como o The Initiation, de Mogorosi Motshumi, que permite vislumbrar a vida cotidiana de um artista em formação durante os anos do apartheid sul-africano, até deuses renascendo para combater vilões, como em El3osba, de John Maher, Maged Raafat e Ahmed Raafati.” É o que nos diz o professor e pesquisador de quadrinhos sul-africanos Júlio Sandes.


Capa de Aya de Yopougon de Marguerite Abouet e Clément Oubrerie / Divulgação

Interesse de longa data

Júlio aponta que o interesse tanto do público, quanto dos pesquisadores brasileiros por HQs africanas não é algo novo e que vem crescendo há cerca de uma década. “O fortalecimento das discussões sobre o papel das histórias negras e africanas na indústria do entretenimento em nível mundial faz com que público se pergunte: ‘onde estão as histórias africanas contadas por artistas de África’”, comenta.

Um dos fatores atuais que despertaram o interesse do público brasileiro foi o curso Quadrinhos Africanos, ministrado gratuitamente pelo pesquisador e editor Márcio Rodrigues em seu canal do Youtube. “O curso online é uma reedição de um curso presencial que ofereço no Maranhão há um tempo”, afirma Márcio.

“A ideia surgiu inicialmente como uma parceria com o Curso de Estudos Africanos e afro-brasileiros da UFMA, e foi construído junto do Centro Acadêmico Maria Firmina dos Reis, encabeçado por estudantes do referido curso”, complementa.

:: “Para as pessoas saírem da bolha”, defende autor de HQ sobre vida de Marighella ::

A respeito da recepção do curso, Márcio diz que o público se mostra bastante interessado. “O interesse é tanto que o pessoal me aguenta falando por quase 4 horas seguidas sobre quadrinhos africanos e só se lembra de pedir para assinar a lista de presença após 3 horas de falação”, brinca.

Interesse do público, desinteresse das editoras

Todavia, mesmo que haja interesse pelos quadrinhos africanos por parte do público leitor e dos pesquisadores, as editoras voltadas para a publicação de HQs no Brasil parecem não dar tanta importância, ou até mesmo desconhecem essa produção.

Márcio afirma que costuma acompanhar o catálogo de editoras que geralmente se identificam como progressistas e percebe a falta de diversidade nas publicações. “Fico espantado de ver como em alguns catálogos não há publicação de autoria negra ou feminina, até quadrinhos europeus, como os alemães, são ignorados. Agora imagina se vão dar atenção para os quadrinhos africanos?”, afirma.

Saiba mais: História em quadrinhos plurilíngue retrata língua indígena de sinais de forma inédita

Entre as poucas publicações de quadrinhos africanos feitas no Brasil, temos Funmilayo Ransome-Kuti e a União das Mulheres de Abeokuta, de Obioma Ofoego e Alaba Onajin, Njinga Mbandi – Rainha de Ndongo e Matamba, de Edouardserbin Joubeaud e Wangari Maathai e o Movimento do Cinturão Verde, de Wangari Maathai e Eric Muthoga. Essas sãoobras que fazem parte da coleção Mulheres na História da África, publicados pela Casa das Letras.


Quadrinho infantil: Akissi o ataque dos gatos / Divulgação

A Sesi-SP Editora lançou Púrpura, de Pedro Cirne. A HQ foi inspirada na história da avó do autor, que é luso-angolana, e traz perspectivas dos países africanos falantes de português, como Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.

Já a embaixada brasileira em Cabo Verde lançou uma adaptação do romance O Mulato, que foi ilustrada pela cabo-verdiano Hegui Mendes. A embaixada também produziu um quadrinho com contos de diferentes países falantes de português.

Também passou por aqui uma coletânea de autores falantes de português, o BDLP – Banda Desenhada da Língua Portuguesa, organizado pelo Estúdio Olindomar. A publicação chegou a ganhar o HQmir, considerado o Oscar dos quadrinhos no Beasil, e contou com a participação de autores brasileiros. A BDLP já está no quinto volume, mas só o primeiro teve uma boa repercussão por aqui.

Atualmente a Skript Editora está realizando a pré-venda de dois quadrinhos africanos. O primeiro é Ligeiro Amargor: uma História do Chá, do costa-marfinense Koffi Roger N’Guessan, com roteiro da dupla Elanni e Djaï.

Já o segundo quadrinho é O Pesadelo de Obi, quadrinho guinéu-equatoriano com roteiro de Chino e Tenso Tenso e ilustração de Ramón Esolo Ebalé. A obra satiriza o atual presidente da Guiné Equatorial Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, o que ocasionou na perseguição política dos autores, sendo que Ebelé chegou a ser preso.

Leia também: Artigo: a Literatura como tambor das vozes subalternizadas 

As duas HQs contam com a edição de Márcio Rodrigues e só chegaram no Brasil graças ao curso sobre quadrinhos africanos. “O convite surgiu após o Sandro Merg, organizador do Butantã Gibicon, ter dito ao Douglas Freitas, um dos donos da Skript Editora, que ele estava fazendo o meu curso online. Douglas então entrou em contato comigo e desde então temos passado 24 horas por dia falando sobre quadrinhos”, comenta.

Mas de todos os quadrinhos africanos publicados no Brasil, Aya de Yopougon, com dois volumes publicados pela L&PM, com roteiro da costa-marfinense Marguerite Abouet e arte do francês Clément Oubrerie, talvez seja a obra mais conhecida e acessível por ter sido selecionada para o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) em 2012.

“Esqueça tudo o que você já ouviu sobre a África”

É assim que se inicia a sinopse de Aya de Yopougon. A HQ acompanha a rotina de três amigas, Aya, Bintou e Adjoua, que vivem dilemas normais de tantos outros jovens: garotos, festas e dúvidas sobre o futuro. Tendo como palco o bairro de Yopougon, na Costa do Marfim, a obra é ambientada nos anos de 1970 e traduz algumas das vivências da própria Marguerite Abouet.

“Acompanhar a história daquelas jovens por Yop City desafia as noções pré-concebidas que o senso comum constrói sobre o que seria uma juventude africana”, comenta Júlio Sande. “Aya não é ‘de África’, nem tampouco ‘de Abidjan’ – cidade onde habita. Ela é de Yopougon. Um bairro que é o seu mundo”, completa.

Para o professor e pesquisador, esse fato já coloca em cheque a noção racista de uma africanidade universal, que toma toda experiência e toda pessoa africana como um exemplar da mesma história, da mesma realidade.

“Um equívoco que só ocorre por conta da ‘história única’, para usar a expressão tornada famosa pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, que o senso comum conhece sobre todo um continente e que precisa ser implodida para ser complexificada”, diz Júlio.

Novos universos

Sobre a publicação de quadrinhos africanos no Brasil, tanto Márcio quanto Júlio apontam para a importância não só de atender uma demanda antiga de leitores e pesquisadores, mas também de apresentar ao público outros universos simbólicos que são totalmente diversos e diferentes dos que estamos acostumados a ver, contribuindo para expandir a nossa ideia sobre quadrinhos e sobre o continente africano.

“Essas publicações certamente contribuem para o questionamento dos estereótipos generalizantes e frequentemente racistas que o senso-comum costumeiramente atribui à região e aos seus povos”, finaliza Júlio.

*Edmar Neves é filho de Oxóssi; mestrando em Teoria e História Literária pelo IEL/Unicamp e pesquisador de histórias em quadrinhos, literatura, arte e cultura negra/periférica.

Edição: Rebeca Cavalcante

CONVITE À IMAGINAÇÃO: CONHEÇA A TRADIÇÃO PARAENSE DOS BRINQUEDOS DE MIRITI

Março 19, 2021
  1. MOSAICO CULTURAL

CORES VIVAS

Artefatos são responsáveis por colorir as ruas da capital, Belém (PA), durante a procissão do Círio de Nazaré

Adrielly Marcelino*19 de Março de 2021.

Ouça o áudio:Play03:3104:08MuteDownload

Brinquedos criados pelo artesão Valdeli Costa – Valdeli Costa

As cores vibrantes dos brinquedos refletem a diversidade da flora e fauna da Floresta Amazônica

Brincar é adentrar o universo dos sonhos, onde os brinquedos são como um convite para a imaginação de crianças e adultos. 

No estado do Pará, os brinquedos de miriti são tradicionais. Feitos de forma artesanal, a confecção dos objetos envolve um conhecimento transmitido entre gerações. 

“Eu gosto do brinquedo de miriti porque é muito colorido e legal”, afirma Ana Vitória, de 4 anos, que é apaixonada pelo pigmento dos brinquedos. 

:: Radinho BdF – programa semanal ::

O avô de Ana Vitória, o artesão Dezidério Neto, conta que a inspiração do artista é justamente o que é visto ao seu redor. Logo, as cores vibrantes refletem a diversidade da fauna e flora da Floresta Amazônica que cobre todo o estado.

“O brinquedo sempre foi gerado no ver do artesão. O que ele vê, ele tenta reproduzir no miriti. Se ele vê um pássaro, um barco que passa na frente da cidade, uma canoa que passa também”, afirma. 

:: Amazônia: Radinho BdF adentra a maior floresta tropical do mundo ::Cobra de miriti – Créditos: Valdeli Costa×

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Dezidério mora em Abaetetuba, município localizado a 120 quilômetros da capital e referência nos brinquedos de miriti. Ele destaca também que o ofício de produzir as peças está se espalhando por outras cidades do interior paraense.

“A gente tem muito orgulho de chegar e dizer hoje para alguém: ‘onde você mora?’ ‘Eu moro na capital mundial do brinquedo de Miriti! Que seria Abaetetuba'”, relata. 

Miriti

“Natural da jangada, do coqueiral. Do pescador, de cor azul!” 

A música “Cores vivas”, composta e interpretada por Gilberto Gil fala sobre o coqueiro, uma palmeira que é fonte de matéria prima de artesanatos. O miriti é a fibra do buritizeiro, a palmeira que dá um fruto chamado buriti.

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Valdeli Costa é um dos artesãos que mantém viva a tradição com o miriti. 

“A gente utiliza o cabo da folha desta palmeira, que é a Mauritia flexuosa. Dependendo do terreno onde ela ocorre, o cabo da folha chega a medir até 5 metros de comprimento”, salienta. 

Cortar miriti é trabalho duro. A árvore, que pode medir até 25 metros de altura, precisa ser manejada por trabalhadores especializados no corte que conhecem bem essa espécie. 

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Além de caracterizarem um trabalho coletivo, Valdeli afirma que a confecção das peças é ecologicamente sustentável. 

“O brinquedo é ecologicamente correto porque a gente não utiliza tinta tóxica. E a atividade é ecologicamente correta porque não derrubamos a palmeira, só coletamos o cabo das folhas e a palmeira continua crescendo”, destaca.  

Festa do Círio

O registro de origem desses artefatos está perdido no tempo, mas alguns historiadores associam sua comercialização às feiras que acontecem desde o primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré, ocorrido na capital Belém do Pará, no ano de 1793. Considerada a maior festa católica do Brasil, a procissão atrai milhões de fiéis para as ruas e as águas de Belém do Pará. 


Procissão do Círio de Nazaré em Miriti / Leandro Tocantins

O Museu do Círio de Nazaré atua na valorização dos brinquedos e dos seus instrumentos e técnicas tradicionais, que dispõem de longa história. A instituição possui um inventário de 740 peças de brinquedos. 

O antropólogo e diretor do Museu do Círio, Anselmo do Amaral Paes, ressalta a importância dos artesanatos para a comemoração:

“Nós podemos dizer que não há círio de Nazaré sem a potência, sem a presença dos brinquedos de miriti. Eles fazem parte exatamente da paisagem devocional que surge durante a quinzena nazarena, mas principalmente, durante a procissão do Círio de Nazaré.

Edição: Daniel Lamir