Archive for Novembro, 2023

‘HOJE O APOIO AOS MESTRES É INSIGNIFICANTE EM QUALQUER ESTADO’, DIZ MESTRE GILMAR, À FRENTE DE MARACATU FUNDADO NO SÉCULO 19

Novembro 30, 2023


CULTURA

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO

Estrela Brilhante tem sede em Igarassu, cidade a 27 km do Recife

Anna Ortega Nonada

30 de novembro de 2023 –

‘Só procuram a Cultura Popular quando é na hora de ganhar o voto, porque depois que ganha esquece’, diz Mestre Gilmar – Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

Quando menino, Gilmar sentava ao lado da barra das saias da avó e da mãe aperreando para aprender o maracatu. A avó Mariú não se incomodava com o garoto curioso, que mexia nos Mineiros e Gonguês, e enchia os adultos de perguntas, pois ela dizia “que precisamos de gente assim para manter o maracatu amanhã e depois”. Como é comum à sabedoria das mais velhas, foi isso mesmo o que aconteceu: hoje Gilmar Santana é um dos mestres que mantém viva a centenária tradição cultural do maracatu de Baque Virado em Pernambuco.


No Município de Igarassu, localizado a 27km do Recife, fica a Sede do Estrela Brilhante de Igarassu. Reconhecido como Ponto de Cultura e Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco desde 2009, ele é um dos maracatus mais antigos que se sabe, datado de 1824. Há quem diga que essa é apenas a versão oficial, porque nas fala dos antigos o brincar do baque virado já existia desde pelo menos 1750.


Para o Mestre, a vida longa da tradição – que é também a história de sua própria família – revela a resistência que sempre compôs a festa. “O Baque Virado é uma coisa divina, tão rica, que eu não sei nem explicar o nosso apreço”, diz em entrevista ao Nonada Jornalismo durante a sua passagem por Porto Alegre para ministrar oficinas de percussão no espaço Afro-Sul Odomodê. “Nem todo mundo vai ter o privilégio de manter uma tradição centenária como essa que estou de frente.”

Do bisavô, para bisavó, para avó, para mãe, para ele. Mestre Gilmar conta que o desejo mesmo era de que sua mãe estivesse ao seu lado, mas Dona Olga se encantou há 10 anos. O Mestre segue fazendo exatamente o que ela lhe ensinou, passando de geração em geração o maracatu de baque solto ou maracatu nação, que se diferencia da manifestação do maracatu de baque virado (ou rural). Mestre Gilmar faz o mesmo hoje com seus três filhos e os sobrinhos, porque para ele a ancestralidade está nessa continuidade que é regada no presente. O Estrela Brilhante soma reconhecimentos do trabalho que faz em relação à cultura popular.

Origem na religião


Foto: Costa Neto/Secult-PE

Em outros momentos, o Mestre já disse que o “maracatu é o Candomblé fora do terreiro”. Ele conta que durante muito tempo os brincantes eram vistos como Catimbozeiros, ou seja, pessoas de religião de matriz africana. O Mestre lembra que as raízes africanas e afro-brasileiras fundaram as nações e que o maracatu servia como uma espécie de cortina, através do barulho emitido pelas Alfaias, Gongês e Caixas, para que os praticantes pudessem praticar a religiosidade. “Na época em que era proibido, utilizava-se o folguedo para tocar na frente e, então, cultuar a religião dentro dos terreiros.” Segundo o Iphan, o Estrela Brilhante tem raiz na relação com Xangô e a jurema.

Embora exista uma proximidade histórica, o Mestre avalia que não é uma relação obrigatória. “O maracatu é um folguedo. Tem um vínculo religioso em si, mas para as pessoas que são da religião. Se você não faz parte, você vai brincar maracatu do mesmo jeito.” No caso do Mestre, a fé constitui sua prática pessoal, já que ele faz os próprios trabalhos e preparos, mas jamais torna isso uma regra ou fator decisivo para quem brinca junto. “Hoje poucas pessoas que dançam no Estrela Brilhante tem um vínculo religioso. São mais as pessoas mais idosas e alguns rapazes, mas não é todo mundo.”

As toadas – ou loas – do Estrela Brilhante são características do grupo e os diferenciam de outros Maracatus. Cantadas ao passar dos anos, as letras saúdam as entidades e o cotidiano da região. Nenhuma está registrada em sistemas oficiais, mas isso não impede que a transmissão siga e que novas loas sejam entoadas. “Somos o único maracatu que pode ser identificado pelo seu baque”, diz o Mestre. O uso do Bacalhau, uma varinha que faz um som de agudo no tambor, torna o sotaque particular do Estrela “funkeado”, alegre. Outros maracatus costumam fazer o uso de duas baquetas, produzindo um timbre diferente.

Os instrumentos utilizados no batuque tradicional são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol (ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores, que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore, chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao baque do Estrela.

Foto: Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

Canta-se e entoa-se para a Boneca Emília. Originalmente, o nome da boneca era Joventina, primeira boneca do maracatu, mas uma senhora portuguesa a levou para a Europa quando a avó de Gilmar ainda era viva. O roubo colonial não impediu que a tradição de reverência à boneca acontecesse. O mestre conta que assim que se deram conta do desaparecimento, sua avó pediu ao marceneiro que fizesse outra.“A boneca é tão perfeita que você vê uma pessoa nela”, diz Gilmar. “Até hoje a Dona Emília comanda a nossa nação”. Quem anima a boneca, cuida e conduz durante os cortejos é a Dama de Passo, figura mais antiga do Estrela, que atualmente é ocupada por Maria Joana, de 78 anos, brincante desde os 5 anos de idade.

“A Dona Emília é a dona de tudo. O povo precisa reverenciar mais ela do que o Mestre”, diz Gilmar. Segundo o que contava a bisavó Dona Maria Assu, a boneca é uma entidade, uma preta-velha, parente dela. Como as mulheres da família e o próprio maracatu, ela viveu mais de um século – 115 anos. “Elas me ensinaram a ser do mesmo jeito que minha mãe era: uma pessoa pacata, que abraça e dá atenção a todo mundo, independente de ser formado ou não, de ter dinheiro ou não.”

Preocupação com o futuro

Nas últimas décadas, o maracatu fora de Pernambuco vem se multiplicando, como é o caso do Rio Maracatu, no Rio de Janeiro, do Maracatu Truvão, em Porto Alegre, e do Maracatu Arrasta Ilha, em Florianópolis. Para o Mestre, esse movimento é importante, desde que suas raízes sejam sempre lembradas e reafirmadas. “Eu acho importante que divulguem de onde é, como começou, e que incentivem as pessoas a irem até lá também, a conhecerem todas as nações para entender a diferença de uma para a outra.” Os instrumentos, o sotaque, as letras, e até o jeito de recepcionar mudam de acordo com cada Maracatu.

Antes de se dedicar integralmente ao Maracatu, Gilmar trabalhava como operador de caldeira em uma fábrica. Há pelo menos dez anos a sua vida é o Estrela Brilhante, mas nem por isso recebe o apoio devido do estado. A falta de apoio contínuo a Mestres e Mestras da Cultura Popular é uma um problema que atravessa regiões no país, como o Nonada mostrou em uma reportagem que revelou a negligência durante a pandemia. Desde 2014, os griôs buscam a aprovação de um Projeto de Lei que garanta uma sobrevivência para aqueles que dedicam a vida para manutenção da cultura popular.

“Hoje o apoio aos Mestres é insignificante em qualquer estado”, diz o Mestre. “Só procuram a Cultura Popular quando é na hora de ganhar o voto, porque depois que ganha esquece”, denuncia o Mestre. Em setembro, mês de São Cosme e Damião, padroeiro da cidade de Recife, ele aponta que o Maracatu foi sequer convidado para os eventos de celebração.

No dia em que realizava a entrevista, o Mestre havia recebido uma mensagem no Whatsapp de uma campanha que a comunidade de Rosario estava realizando para arrecadar fundos a um Mestre de Cultura Popular que sofreu um AVC. “Vejo ele pedindo fralda, itens básicos, e se ele tivesse a renda dele isso não estaria acontecendo. É alguém que vive da maré, sem necessidade porque tem muito talento e poderia ser reconhecido”, diz. “A gente precisa ter pelo menos o dinheiro para comprar o remédio, alimentação, porque geralmente a casinha própria nós temos.”

Outra necessidade que os Mestres de Sul a Norte do país relatam é o de auxílio com deslocamento para que possam multiplicar os saberes que detém em outras regiões. Semanalmente, o Mestre tem ido até Olinda para ensinar um grupo chamado Alafia, que se apresenta no Carnaval do Recife. As aulas acontecem no Mercado da Ribeira e são gratuitas para a comunidade. “No Carnaval, a gente percebe que são muitas as manifestações: maracatu Rural, maracatu do Baque Virado, Cavalho-Marinho, Ciranda, Frevo, Afoxé, Samba, Pagode, Música Eletrônica, Galo da Madrugada. Tem som para todo mundo.”

Gilmar relata ter medo desse futuro incerto ao qual muitos acabam submetidos. “Infelizmente, se você não plantar para depois colher, você vai ficar desse mesmo jeito. Eu não quero ficar assim, não. A gente vive em uma sociedade em que a pessoa só é boa quando está produzindo, depois se esquece.”

Mestres abrem portas

“Para ser um mestre, na minha concepção, a pessoa precisa ter o conhecimento básico e profundo do início ao fim do maracatu, de trás para frente.” O Mestre de Cultura, ao seu olhar, não pode ser alguém que sabe apenas fazer uma coisa – apitar, por exemplo. Mestre Gilmar toca todos os instrumentos, desenha, confecciona e compra os figurinos. E, claro, move-se pela paixão por ensinar. “Eu não sou a estrela. Quem brilha é o maracatu”, sinaliza logo.


Como Dona Olga, Gilmar aprendeu a ser uma pessoa que gosta de acolher os outros, e é o que eu faz até hoje. “Ela abria a porta da casa dela, dava dormido, mesmo sem saber de onde a pessoa era”. Pessoas de diferentes estados do país seguem batendo na porta da sede para aprender sobre a tradição do maracatu. Em nossa conversa, o Mestre conta o sonho que tem de expandir o espaço físico do Estrela Igarassu e construir um dormitório, para que mais pessoas possam visitar, ir para o carnaval, e ter um lugar para ficar de forma gratuita. “Tenho fé em Deus que eu vou ainda conseguir realizar.”

TOM ZÉ CONTA COMO COMBATEU A DITADURA COM HUMOR: ‘NUNCA DEIXEI DE LIDAR COM O QUE ME ESPANTA’

Novembro 29, 2023

PROGRAMA BEM VIVER

Com 87 anos e preparando novo álbum, artista recebeu, em outubro, premiação italiana por carreira musical
Lucas Weber
29 de novembro de 2023 –

No ano passado, Tom Zé lançou seu mais recente álbum, Língua Brasileira – Divulgação
“Naquele tempo todo compositor brasileiro do meu ambiente era uma pessoa séria que falava sério que estava defendendo o Brasil contra a ditadura e contra a ditadura só se fala no sério.”


Nos anos de chumbo, Tom Zé percebeu que tinha outro inimigo além dos militares. O músico que recém completou 87 anos relembra que seus colegas artistas tinham uma maneira diferente de combater o regime que perdurou 21 anos no Brasil.


“Como é que eu vou imitar um negócio que tem um mal humor filho da mãe? Existe mal humor pior que o da ditadura?”, questiona em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (28).

“Enquanto todo mundo que falava, falava muito grosso, porque tinha que ser muito homem para poder ser contra a ditadura. Eu nunca achei isso.”

Relembra: Tom Zé: “Ô, meu deus, eu só queria um país normal”

A crítica de Tom Zé rendeu uma música, Complexo de Épico presente no álbum Todos os Olhos, que completa 50 anos em 2023.

Todo compositor brasileiro
é um complexado.
Por que então esta mania danada,
esta preocupação
de falar tão sério,
de parecer tão sério
de ser tão sério

“E essa era a maneira que eu caia em cima da ditadura. Então quando eu falava mal da ditadura, eu juntava uma coisa qualquer em que a ditadura ficava ridícula, ridícula para uma coisa que gerasse riso”, comenta Tom Zé, lembrando que a música Vai (Menina, Amanhã de Manhã), lançada em 1976 no álbum Estudando o Samba, fazia referência, justamente, a essa forma de criticar com ironia

Tom quem?

O humor sempre foi a alma da composição de Tom Zé. O compositor recém voltou da Itália, onde foi receber o Prêmio Tenco, distribuído desde 1974 para artistas que deram suporte à canção autoral mundial. Tom Zé foi o único artista brasileiro condecorado neste ano.

“As maiores coisas que eu recebi foram prêmios de países de outras línguas”, desabafa o compositor. Segundo ele, sua carreira foi marcada pela falta de reconhecimento dos brasileiros com seu trabalho. Na entrevista, ele relembrou a história que fez com que seu álbum mais famoso, de fato, se tornasse famoso.

“Eu tinha feito um disco, Estudando o Samba, 1976. E eu falei assim, ‘rapaz, eu tô fazendo um disco bom e é capaz de ninguém dar bola para essa banana’. Então eu resolvi fazer uma armadilha.”

‘Cheguei na gravadora e pedi para influenciar na capa do disco. Eles disseram que está bem, está certo. Ai eu fui com a casa que vende material de construção e comprei umas cordas e uns arames farpados”.


Álbum Estudando o Samba foi lançado em 1976 / Reprodução

“Disco de samba realmente se bota uma praia ou a mulher de biquíni, ou sei lá o que”, brinca Tom Zé explicando o estereótipo do qual queria fugir. De fato, o álbum saiu da maneira que o artista montou. Segundo ele, ao chegar em casa, pôs os materiais em cima da mesa e fez uma composição. O desenho que surgiu virou a capa do álbum, adicionando o título na parte superior.

“Eu achei que aquilo era um pedido de socorro”. As coisas mudaram quando uma ajuda internacional que desembarcou, despretensiosamente, no Brasil

“David Byrne [cantor da banda Talking Heads] conta que foi ao Rio de Janeiro, botar um filme dele no festival que tem no Rio de Janeiro. E ele sempre passava em casa de disco para ver o setor de samba e olhar e ter a curiosidade de comprar alguns”, lembra Tom Zé.

“Ele conta que olhou para os discos brasileiros e de repente viu um disco com corda e arame farpado. Ele achou surpreendente aquele negócio, que é samba com corda e arame farpado. Não dava tempo de ouvir, e ele botou na bolsa dele e levou para Nova York. No dia que o viu, se assombrou, saiu perguntando a todo mundo quem conhecia aquele artista, eu no caso.”

“Ele lançou em Nova York e me levou para lá e aí eu comecei a cantar pra todo mundo, e é por isso que eu estou aqui, entende? E o Brasil, que compra jornal do exterior, começaram a acreditar que eu era artista”, brinca Tom Zé.

Nem tão louco

Trabalhando em um novo disco, Tom Zé é baiano de Irará, cidade no interior do estado, próximo a Feira de Santana, mas que vive em São Paulo há décadas, “desde a época do tropicalismo”, lembra.

“Eu aqui me instalei em Perdizes [bairro na Zona Oeste da cidade] onde virou irará da seguinte maneira: todo mundo me conhece mas, ninguém fala comigo só quem fala comigo é uma outra pessoa que toma coragem”.

Segundo o cantor, as coisas mudaram um pouco desde que foi reconhecido como membro da Academia Paulista de Letras, em setembro do ano passado.

“Desde que eu entrei na Academia Paulista de Letras de letras aconteceu uma coisa inacreditável: 30% das pessoas começaram a falar comigo. E eu gosto de conversar, eu sou da roça”

“Eu acho que as pessoas achavam que eu era muito louco e ficavam com medo de falar comigo”, divaga Tom Zé. Agora, segundo ele, as pessoas pensam “se ele tá na academia, ele não pode ser tão louco”.

Sobre o novo disco, Tom Zé não abre o jogo. “Eu não posso te dizer, porque se não todo mundo amanhã vai fazer o que eu vou fazer. Até dizer um segredo já é perigoso”, brinca.

A única coisa que revela é que “eu tô trabalhando no disco, onde naturalmente tem uma coisa que o mundo todo tá vendo de uma maneira e que eu tô tentando fazer de como se tivesse mostrando ela nu”.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: DESPOJOS DE PAPEL

Novembro 28, 2023

No momento, a África está providenciando abrigo para a repatriação das 90 mil peças que a França levou ao longo da História.

Walnice Nogueira Galvãojornalggn@gmail.com

Despojos de papel

por Walnice Nogueira Galvão

Ante a amplitude descomunal do roubo perpetrado pelos nazistas, entende-se melhor a operação de resgate que os americanos fizeram para recolher papeis (London Review of Books, 2.7.2020). Bibliotecários e scholars, acolitados por militares, varreram a Europa e levaram tudo o que de longe pudesse parecer documentação, sendo de primeiro interesse os próprios arquivos nazistas, que eram numerosos,  e documentos de Estado

A coleta – se o eufemismo for adequado, pois se tratava mais de saque e pilhagem, ilícitos e ilegais – feita pelos americanos já começara às vésperas da guerra, antecipando a destruição. Livros e periódicos eram comprados e mandados para os Estados Unidos em trens e navios abarrotados. O que não dava para comprar era copiado em microfilme, uma recente invenção.

Mas também, o que já era menos justificável e relevava do roubo puro e simples, gradualmente passaram a recolher patentes e tecnologia industrial, para beneficiar os negócios americanos em casa.

A operação no seu conjunto resultou de uma parceria entre a Biblioteca do Congresso e os serviços de espionagem. Se você nunca se perguntou, ante seu gigantismo,  como é que esta veio a ser a maior biblioteca do mundo, especialista em materiais para assessorar os parlamentares, eis aí a resposta. A maior parte do material recolhido foi para lá. E,  na embriaguez da vitória, os conquistadores passaram a assaltar as bibliotecas públicas e as universidades.

Isso foi no passado, mas no presente a questão continua fervendo. Agora os franceses fizeram mais um filme, intitulado Restituer l`art africain – Les fantômes de la colonisation, que traz um histórico das relações entre França e África, analisando as várias metamorfoses que assumiram conforme os tempos foram mudando. Assim, o documentário passa pela Partilha da África, pela guerra colonial, pela ocupação do  Daomé (atual Benin) e países circunvizinhos como Mali, Senegal, Nigéria, Congo. Depois, examina as exposições coloniais e a criação de instituições como o Musée de l`Homme no Trocadéro, quando surge o interesse pela Etnografia. Esse museu atraiu os pintores modernistas que lá iam contemplar  as esculturas africanas e valorizaram esteticamente o que antes era visto pelo prisma do exotismo.

Outra fase começa após o  fim da Segunda Guerra, com a liberação  das colônias e o pan-africanismo. É então que o deus Gu é “promovido” do Trocadéro para o Louvre, ao ser reconhecido  como obra-de-arte.  Escultura de metal em tamanho natural,  parte dos famosos Bronzes do Benin, representa o deus da metalurgia e da guerra. Embora se saiba que residia no palácio real em Abomei, sua etiqueta no Louvre é muda a respeito de proveniência e condições de expropriação… para abusarmos de mais um eufemismo.

O documentário fala longamente da notável iniciativa do Musée de l`Homme que foi a expedição à África para coletar artefatos e estudar as populações, com duração de 2 anos a partir de 1931. Atribui todo o mérito a Michel Leiris, futuro autor de L`Afrique fantôme, e nem sequer menciona o nome do chefe da expedição, da qual ele era secretário.  O chefe era Michel Griaule, distinto etnólogo que estava em meio à constituição de uma notável folha de serviços, vindo a ser o maior especialista nos dogon do Mali, assim como  futuramente na Etiópia.  Griaule fez carreira como professor de Etnologia na Sorbonne. A expedição se chamava Travessia Leste-Oeste ou Missão Dakar–Djibouti. Ao fim, chegaram a desconfiar de seus próprios métodos, pois acabavam por copiar os colonialistas,  intimidando os nativos, profanando objetos sagrados de culto e confiscando estátuas de deuses.

No momento, a África está providenciando abrigo para a repatriação das 90 mil peças que a França levou ao longo da História.  Já estão funcionando três novos museus de artes africanas em Dakar,  Joanesburgo e  Gizé – todos moderníssimos,  na arquitetura e na museologia. O palácio  do rei Beanzim na capital do Daomé, Abomei, arrasado pelo invasor francês, foi reconstruído e aguarda o retorno de seus conteúdos, entre eles o deus Gu.  Em tempo: os recentes conflitos armados não são alheios à exploração pela França das riquezas da região

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

PALESTINA BRASILEIRA: DOCUMENTÁRIO ACOMPANHA FAMÍLIAS PALESTINAS MORADORAS DO SUL DO PAÍS

Novembro 27, 2023
  1. CULTURA

IMIGRAÇÃO

Rio Grande do Sul abriga milhares de imigrantes palestinos e seus descendentes

Walmaro Paz

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

 

Cartaz do documentário “A Palestina Brasileira” – Foto: Divulgação

Atualmente calcula-se que a população total de palestinos no mundo é de 6,4 milhões. Desses, 2,6 milhões são registrados como refugiados na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo, também conhecida pela sigla UNRWA (do inglês United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East). Setenta e três por cento daqueles que evadiram encontram-se em países árabes que têm fronteiras com Israel e seus territórios ocupados.

Segundo o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, a comunidade brasileiro-palestina tem cerca de 200 mil pessoas. Este número tem por base uma pesquisa recente, encomendada pela Câmara de Comércio Árabe-brasileira. Rabah esclarece que são palestinos e descendentes. “A esta altura a maioria são descendentes”, afirma.

Somente na região Metropolitana de Porto Alegre são 3 mil palestinos. Rabah também afirma que o Rio Grande do Sul é o estado que mais concentra palestinos e descendentes. A maioria deles vive nas fronteiras da Argentina e do Uruguai.

A cidade de Santana do Livramento, fronteira com Rivera, no Uruguai, concentra o maior número. Inclusive publica um jornal bilíngue (português e árabe) semanal, A Plateia, que foi comprado pelo empresário palestino Antônio Badra em 2002. Mas os palestinos praticamente dominam o comércio de cidades como Chuí, Jaguarão, Quaraí, Barra do Quaraí, Uruguaiana, Itaqui e São Borja.

Um filme com histórias de dois mundos distantes

Filmado no Sul do Brasil e no Oriente Médio, o documentário A Palestina Brasileira revela as raízes de famílias alcançadas pelo apartheid, perseguições e guerras. Questiona sua condição atual e mostra como homens, mulheres e jovens se situam frente aos direitos e valores éticos e religiosos de sua cultura tradicional. São narrativas do vivido, que resgatam lugares perdidos e histórias que ficaram para trás. São memórias compartilhadas, que revivem o passado e o quanto dele ainda resta no presente.


Cartaz do filme A Palestina Brasileira / Divulgação

O filme tem roteiro e direção de Omar L. de Barros Filho e produção de Caco Schmitt e conta a história de seis famílias de imigrantes e refugiados moradores do RS. Como vivem, preservam sua identidade e se relacionam com as sociedades locais? Seus sonhos de paz foram realizados? Pretendem retornar à terra onde nasceram? São algumas das perguntas que norteiam o documentário.

Essas comunidades originadas na nakba (palavra árabe cujo significado é catástrofe ou desastre e que se refere a 1948, ano da criação do Estado de Israel, que foi acompanhada de massacres, agressões e deslocamento forçado da população) buscam, na diáspora, ao serem expulsas da Palestina, a integração plena e uma nova cidadania no Brasil. Aqui, tratam de sobreviver, crescer e conquistar o reconhecimento por sua contribuição econômica, social e cultural. Sofrem muito com a situação atual de seus parentes que ficaram na Faixa de Gaza.

O documentário de 79 minutos foi disponibilizado gratuitamente no canal do YouTube da CenaUmProducoes. Clique aqui para assistir.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira

AQUILES RIQUE REIS: ELIANE SALEK ESTÁ DE VOLTA

Novembro 26, 2023

Com sete faixas, selecionadas dentre os singles que foram lançados entre 2019 e 2023, o trabalho expõe, mais uma vez, o trabalho de Eliane.

Aquiles Rique Reisjornalggn@gmail.com

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Eliane Salek está de volta

por Aquiles Rique Reis

Amigas e amigos leitores que costumam acompanhar esta coluna, hoje eu os convido a conhecer Mulher Brasileira (independente), o quinto álbum da mezzo soprano, pianista, flautista, compositora e arranjadora carioca Eliane Salek. Produzido por ela mesma, para acompanhá-la formou o Eliane Salek Trio, com Rômulo Gomes no baixo, Fabiano Salek na bateria e ela no piano e na flauta.

            Antes de falar sobre o disco, devo lhes dizer que acompanho Eliane há tempos. E digo isso porque revelarei agora como me derreti ao comentar o seu terceiro álbum, Eliane Salek — Modinhas e Chorinhos Eternos (independente), em 2009.

            “Mulher cantadeira, vais de campina em campina em busca da mais serena; mulher modinheira, a cada noite teu cantar mais resplandece (…) Nascida no berço dos Salek, teu nome se diz Eliane. Carregas na alma a música, nas mãos a beleza, na voz a criatividade do cantar brasileiro. Canto mágico, dedos ágeis, música profunda, que a Deus chega em forma de prece levada pelo vento matinal (…)”.

            Meu Deus! Mas voltemos ao Mulher Brasileira. Com apenas sete faixas, selecionadas dentre os singles que foram lançados entre 2019 e 2023, o trabalho expõe, mais uma vez, o trabalho de Eliane. Eis algumas:

            “A Rã”* (Joao Donato e Caetano Veloso) – o suingue come solto. O piano de Eliane se esmera em acordes dignos de João Donato. Seus agudos são bons e seus scats vocais, como sempre, se destacam. Rômulo improvisa, cantando as notas junto com as que toca no baixo. Grande abertura de tampa. O álbum promete, digo para mim mesmo. A ver.

            “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira e Paulinho Motoca) – malemolente, Eliane inicia com vocalises. O jazzísmo explicito se revela em novos scats. Revelando-se empoderado, o arranjo de Eliane agita em levadas diferentes daquelas que se ativeram à concepção original de Geraldo Pereira. Voz e piano improvisam em uníssono. Rômulo assume o improviso, tendo Fabiano a ampará-lo. É quando tanto um quanto o outro revelam-se bons instrumentistas.

            “Barco a Vela” (Eliane Salek) – Eliane compôs um tema jazzístico e o envolveu num arranjo, onde pontifica o seu teclado com efeitos. A batera segue firme e entrega a melodia para seus improvisos vocais.

            “Jardin d’Hiver” (Keren Ann Zeidel e Benjamin Biolay) – Eliane abre com vocalises. Cantando em francês, ela saboreia cada palavra da letra, que se tornou famosa com a interpretação de Henri Salvador. Dialogando com o baixo em scats, o arranjo cria uma atmosfera digna de um cabaré franco-brasileiro.

            E assim, feito quem ouve um som que a alma prontamente reconhece como atraente, sugiro aos ouvintes da boa música brasileira que curtam Mulher Brasileira, novo trabalho de Eliane Salek.

Aquiles Rique Reis

     Nossos protetores nunca desistem de nós. 

Ficha técnica: gravação, mixagem e masterização, Ricardo Calafate.

A Rã*:

‘NETO’ DO PASQUIM COMPLETA TRÊS ANOS NO RG PROMETENDO NÃO DAR TRÉGUA AOS PODEROSOS

Novembro 25, 2023
  1. CULTURA

ENTREVISTA

Mesclando jornalismo e humor, o Grifo é um caso único no Brasil, como conta um de seus editores, Celso Schröder 

Ayrton Centeno

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

 

Função do Grifo, para Schröder “foi manter razoavelmente sadios os seus produtores e, espero, os seus leitores” – Foto: Arquivo pessoal

Fazer jornal no Brasil dos últimos quatro anos nunca foi fácil. E fazer humor em jornal mais difícil ainda. Pior ainda nascer e sobreviver fazendo as duas coisas sob o mandato Bolsonaro. Mas foi o que aconteceu com o Grifo. 

“Não conheço nenhuma outra publicação similar no país neste momento. Aliás, depois do Pasquim, foram raras as publicações que combinaram jornalismo e humor”, diz o cartunista Celso Schröder, um dos pais fundadores do mensário. 

Fruto de um mutirão de cartunistas, jornalistas, escritores e intelectuais, de início apenas do Sul mas, em seguida, de todo o país, a empreitada está completando três anos.

Com a média de 24 páginas mensais, tocada sem remuneração de espécie alguma – exceto aquele prazer de chutar o traseiro dos poderosos – o jornal virtual é obra de 30 colaboradores que vão se revezando a cada edição. E, agora, acalenta o sonho da versão impressa.

Schröder relata que o projeto tinha em vista enfrentar a necropolítica de Bolsonaro e propiciar um mínimo de sanidade aos seus autores e aos seus leitores para poderem atravessar ilesos as vastas pradarias da Terra Plana.

Acompanhe a entrevista:  

Brasil de Fato RS – O Grifo está completando três anos de vida, dois deles sob o mandato de Bolsonaro. O que deu para aprender sob um período tão distópico da vida nacional? É possível dizer que a arma do humor deu sua mãozinha na desconstrução (relativa) do ex-presidente? 

Celso Schröder – O Grifo surgiu para enfrentar os vírus e os vermes, expressão do Haddad.  É um neto do Pasquim, mas filhote direto da censura na exibição de cartuns na Câmara de Vereadores de 2019 (*) e do suplemento de humor do Brasil de Fato RS. Ele nasce para enfrentar Bolsonaro e sua necropolítica. Dentro de seus limites, grandes, ele serviu para afiar as garras contra o fascismo. Fizemos um razoável registro do período e exercitamos uma análise que deve ter servido ajudar pavimentar o caminho da reação democrática. Acho que fazemos parte dos vencedores da democracia. A função do Grifo foi manter razoavelmente sadios seus produtores e, espero, seus leitores

No decorrer dos seus três anos, o Grifo obteve uma adesão bastante expressiva não só do pessoal do cartum e do texto do Sul mas de todo o país. E o mensário, como se sabe, não tem condições de remunerar seus colaboradores. E nem possui anunciantes. Isto aconteceu devido à rarefação do espaço dedicado ao humor na imprensa de modo geral? 

A continuidade da produção do jornal é um grande feito e principal mérito deste peculiar ajuntamento de cartunistas, jornalistas, escritores e intelectuais que doaram uma parte de seu tempo, num momento econômico dificílimo do país, na tradição dos jornais satíricos, organizar uma reação baseada no binômio humor/jornalismo. Parte desta gente vinha da luta pela redemocratização dos anos setenta e oitenta, parte era mais jovem.


Celso Schröder na reinstalação das obras de Cartuns na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em setembro de 2019 / Foto: Fabiana Reinholz

A adesão foi imediata e a sintonia foi intensa, o que facilitou o trabalho que foi intenso em alguns momentos. Acho que o momento político limite e as condições jornalísticas escassas produziram o corpo redacional e os leitores que foram crescendo em número com o tempo. Sem auto-elogios cretinos, é preciso salientar que a qualidade técnica e estética e pertinência política dos conteúdos também se impuseram.

Qual é o principal papel que o Grifo cumpriu nesses três anos?

A principal função do Grifo, por causa da informação e do humor, foi manter razoavelmente sadios os seus produtores e, espero, os seus leitores. O humor tem a capacidade de produzir a catarse necessária para a saúde de quem o pratica e o jornalismo ajudou a enfrentar a realidade paralela que era a principal ferramenta bolsonarista. De novo, sem nenhuma vaidade, podemos afirmar que ajudamos a conformar a resistência democrática que acabou por derrotar o fascismo. Não é pouco. O riso produzido por um jornal de humor quase nunca é de felicidade

O velho Pasquim seguidamente usava a frase “Um dia ainda vamos rir de tudo isso”. É mesmo possível rir de uma época onde mais de 700 mil pessoas morreram de covid em grande parte devido ao negacionismo do governante que chamava de “maricas” a quem respeitava o isolamento?

O riso produzido por um jornal de humor quase nunca é de felicidade. Ao contrário, quase sempre é um esgar que combina catarse e consciência. Mas também é um riso de felicidade e para isto podemos, como fez o poeta, pedir desculpas aos mortos de nossa felicidade. Nosso futuro se construirá a partir desta tragédia que ainda precisa ser apurada. Nossa literatura, nosso cinema, nossa música e nosso humor será composto, para sempre, deste horror. Não há viés engraçado em hospitais bombardeados e recém nascidos mortos sufocados por falta de energia


Capa e detalhe das páginas internas da edição que comemorou o primeiro aniversário do Grifo, em 2021 / Reprodução

Existe um certo senso comum que nos diz que o humor serve para a gente ir levando a vida de modo menos dolorido. Mas é possível fazer humor diante do que está acontecendo em Gaza?

Podemos e devemos rir de tudo. O humor judaico é constituído em parte da reflexão sobre o holocausto. Dito isto, confesso que tem sido muito difícil fazer humor com a situação palestina. Acho que Gaza significa uma perigosa fratura moral na humanidade e nunca sabemos os monstros que sobem destas fossas subterrâneas. Seria irônico, se não fosse trágico, ser Israel o agente do esgarçamento ético do século XXI.

O número 41 do Grifo tentará tratar disto. Não sei se conseguiremos. Não há viés engraçado em hospitais bombardeados e recém nascidos mortos sufocados por falta de energia.Milei é um sociopata histriônico que precisa ser desconstituído como foi Bolsonaro.

Como o governo do Brasil retornou à certa racionalidade em 2023, imagino que a Argentina ao eleger um candidato de ultra direita como Javier Milei, também histriônico e folclórico como Bolsonaro, irá se tornar alvo do Grifo, não? 

Milei é um sociopata histriônico de certa maneira mais perigoso do que Bolsonaro e que precisa ser desconstituído como foi Bolsonaro. Neste número já trataríamos da questão argentina e certamente continuaremos a enfrentá-lo porque é uma ameaça à América do Sul e ao Brasil. Para além da desgraça que significa aos meus queridos amigos argentinos.

Milei é um personagem que, segundo se sabe, consulta regularmente através de telepatia o seu cachorro Conan, que morreu algum tempo atrás, pedindo-lhe conselhos. Como fazer humor com algo assim se o humor já vem pronto e embalado?  

Schröder – Bolsonaro e seu estafe já eram um desafio para humoristas críticos. Suas piadas prontas ao mesmo tempo em que sabotavam o humorismo profissional serviam de estímulo ao seu público desprovido de qualquer senso de humor. Milei parece ser um Bolsonaro turbinado e igualmente sem limites. Se o Sig do Pasquim era o rato que rugia, o Grifo é a águia que rosna

A pauta do jornal está mais voltada para os temas nacionais e internacionais. No entanto, no ano que vem, teremos uma grande disputa pelas prefeituras. Haverá, por exemplo, mais atenção às questões de Porto Alegre, por exemplo, que são muitas e graves? 

O Grifo sempre tentou manter um olhar abrangente. As seções Brasil, Mundo e Regional foram sendo tratadas de acordo com os momentos. Desde o início do ano, a questão municipal entrou no radar do jornal. (O prefeito Sebastião) Melo representa a continuidade do projeto bolsonarista com uma agenda econômica ultraliberal que significa apropriação de patrimônio público e destruição de postos de trabalho. O Grifo não vai dar trégua.

Quais os planos do Grifo para 2024?

Somos pretensiosos. Queremos ser impresso o mais rápido possível mantendo também a versão digital. Queremos um site e um canal no YouTube além de profissionalizar minimamente algumas pessoas. Se o Sig do Pasquim era o rato que rugia, o Grifo é a águia que rosna.

(*) Em setembro de 2019, dois vereadores de ultradireita – Valter Nagelstein e Mônica Leal – censuraram a exposição “Independência em Risco” na Câmara de Porto Alegre que reunia 36 charges sobre o panorama político nacional.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira

FESTIVAL PALESTINA LIVRE, EM SÃO PAULO, REÚNE ARTISTAS EM SOLIDARIEDADE ÀS VÍTIMAS DO MASSACRE EM GAZA

Novembro 24, 2023

NESTE SÁBADO

Evento acontece no Galpão Elza Soares, no bairro de Campos Elíseos, região central da capital paulista

Redação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

24 de Novembro de 2023 –

Cris SNJ será uma das atrações do evento neste sábado – Divulgação

Artistas de diferentes estilos se encontrarão neste sábado (25) no Galpão Elza Soares, na região central de São Paulo, para o Festival Palestina Livre. O evento é um apelo por justiça e liberdade para o povo palestino, especialmente na Faixa de Gaza, e denuncia o apartheid promovido pelo Estado de Israel.

Entre as atrações confirmadas estão Cris SNJ, Camarada Janderson, Yannick Hara e a Terra em Transe e Georgia. Além da programação cultural, haverá abertura de espaço para manifestações de apoiadores da causa palestina. O evento começa às 12h.

A entrada é gratuita. Os organizadores abriram uma vaquinha para arrecadar fundos e cobrir os custos do evento. Quem puder colaborar, pode fazer a doação clicando neste link.

O galpão fica na Alameda Eduardo Prado, 460, bairro de Campos Elíseos. O evento é organizado pelo Movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS Brasil), com apoio de diversas organizações, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e os diretórios de Estudantes da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal Fluminense.


Evento já tem presença confirmada de diversos artistas / Divulgação

Edição: Rodrigo Durão Coelho

SÃO PAULO RECEBE MOSTRA POPULAR DE CINEMA CHINÊS DE QUINTA (23) A DOMINGO (26)

Novembro 23, 2023
  1. CULTURA

SESSÕES GRATUITAS

Filmes serão exibidos no Cine-Teatro Denoy de Oliveira, na Bela Vista

Redação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 

‘Guerra do Ópio’, de Xie Jin, é um dos destaques da programação – Divulgação

São Paulo recebe nesta semana a primeira edição da Mostra de Cinema Popular Chinês. Com exibições gratuitas de quinta-feira a domingo (23 a 26 de novembro), o festival promete oferecer uma viagem cinematográfica ao país asiático. Os filmes serão exibidos no Cine-Teatro Denoy de Oliveira (rua Rui Barbosa, 323, Bela Vista). 

A entrada em todas as sessões é gratuita, e a distribuição de ingressos começa sempre uma hora antes de cada exibição. Confira no fim deste texto a programação completa, com datas e horários de cada filme.

Em sua edição de estreia, o festival vai homenagear o centenário de nascimento de Xie Jin, um dos grandes nomes da história do cinema na China. Dois de seus filmes mais significativos fazem parte da programação: Grande Li, Pequeno Li e Velho Li, comédia de 1962; e Guerra do Ópio, drama histórico lançado em 1997 que foi gravado em meio à devolução da ilha de Hong Kong à soberania chinesa após décadas de ocupação britânica.

A mostra tem ainda filmes de outros diretores, de diferentes momentos históricos, como Anjos da Rua, de Yuan Muzhi, lançado em 1937; Terra Amarela (1984), de Chen Kaige; e Herói (2002), dirigido por Zhang Yimou.

O festival é organizado pelo Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES) e pelo Instituto Confúcio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que oferece cursos de língua e cultura chinesa.

Serviço:

1ª Mostra de Cinema Popular Chinês
23 a 26 de Novembro
Cine-Teatro Denoy de Oliveira (rua Rui Barbosa, 323, Bela Vista, São Paulo-SP)

Programação:

23 de novembro (quinta-feira)
19h – Grande Li, Pequeno Li e Velho Li

24 de novembro (sexta-feira) 
19h – O Rei das Máscaras

25 de novembro (sábado) 
15h – Anjos da Rua
18h – Apresentação Cultural
19h – Carteiro das Montanhas

26 de novembro (domingo)
15h – Terra Amarela
17h – Herói
19h – Guerra do Ópio

Edição: Thalita Pires

SEM A CULTURA NEGRA, A MÚSICA BRASILEIRA NÃO SERIA TÃO RELEVANTE PARA O MUNDO

Novembro 22, 2023

Apesar da genialidade de compositores e artistas, muitos sofreram com a pobreza, perseguições e apagamento apenas por serem negros

Camila Bezerrajornalggn@gmail.com

Olodum. Crédito: Valter Campanato/ Agência Brasil

Samba, rock, axé, jazz, bossa nova, MPB. Não importa qual seja o estilo musical, todos eles apresentam forte influência da cultura negra. Há historiadores e pesquisadores que dizem até que a influência da cultura negra na música brasileira é tão abrangente que é difícil separar a história da música do Brasil da história da comunidade negra no país.

A bossa nova, que fez com que as canções brasileiras ganhassem projeção internacional na década de 1960, nada mais é que “uma forma de tocar samba”, nas palavras de João Gilberto, considerado o criador do estilo. “A propria MPB, o que seria ela se não tivesse o componentem negro em relação à parte ritimica? A bossa nova traz uma influência muito grande. Temos o congo, a congada, o jongo. Todos são ritmos presentes não só dentro da canção, mas também na dança. É importante pensar este caldeirão cultural, marcado por conflitos também, pois a música brasileira tem grande referência da música negra, ainda que seja diversa”, afirma o historiador de Cultura e Arte, Juliano Nogueira Almeida.

O samba, segundo o historiador, tem influência imediata do lundu, ritmo de grande alcance popular africano ainda no século XIX, antes mesmo de a música se tornar um fenômeno de massa ou uma indústria cultural. No Brasil, o estilo surgiu com a música Pelo Telefone, a primeira canção gravada ainda em 1914 e que se tornou um fenômeno. 

“Além do samba, temos o choro, que é mais sofisticado em termos instrumentais e tem uma grande carga da negritude. Cito o Pixinguinha como grande expoente do choro no Brasil”, continua Almeida.

Muito além do samba

As contribuições da cultura negra na música brasileira não se restringem ao samba. Praticamente todos os ritmos têm referências de matriz africana, a exemplo do axé, que se refere às religiões do velho continente, mas que se tornou um estilo musical de grupos de negros do bairro Curuzu e da periferia de Salvador. Deste movimento, destacam-se os grupos Olodum e Timbalada.

Ainda no nordeste, o maracatu e o samba de coco se destacam entre os movimentos de cultura de massa, dos quais são referência Jackson do Pandeiro e Selma do Coco, respectivamente. 

Mesmo quando estilos musicais foram importados para o Brasil além da África, estes receberam nuances encontradas apenas no País. “Temos ritmos que, inclusive, vêm dos Estados Unidos, mas que no Brasil ganharam feições próprias. Rock, rap, funk e  soul. No funk e no soul, por exemplo, temos nomes como Tim Maia, Marcos Ribas e Wilson Simonal. Todos eles trazem um pouco desta influência estadunidense, mas criaram um novo ritmo traduzido pela brasilidade”, emenda Almeida. 

Além da influência no ritmo, a cultura negra influenciou a música brasileira em outros aspectos. Uma delas é o caráter performativo. “A música cantada, especificamente no palco, tem elemento performático muito forte e não tem como não considerarmos certas figuras, como Itamar Assumpção que renovou a MPB, um compositor e cantor negro extremamente performáticos. Temos também o Tim Maia, que trouxe uma nova releitura para a MPB e que trazia uma performance no palco incrível, que deu uma renovada na forma de se colocar no palco.”

Outros brasis

Enquanto a bossa nova carioca mostrava um Rio de Janeiro belo e elitizado, a participação do negro no processo de composição fez com que a musica popular ganhasse outras temáticas, a fim de revelar outras realidades do País. 

“Enquanto as músicas da MPB que estamos acostumados falam das avenidas, regiões centrais e bairros de origem italiana, o rap de São Paulo abrange uma nova realidade. Quando escutamos músicas do Criolo, do Racionais MC’s, vamos expandir um pouco essa noção territorial, ter acesso a outras regiões da cidade, o outro lado do rio Tietê. Vamos conhecer um pouco do Capão Redondo, do Grajaú, do Brooklin, regiões em que compositores como Sabotagem cresceram e trabalharam”, acrescenta Juliano Almeida. 

O rap paulista traz ainda uma nova linguagem para as canções, agora mais coloquiais e faladas, deixando a melodia em segundo plano. 

Perseguições

Apesar de toda genialidade trazida pela comunidade negra, esta população, como em diversas outras situações, também foi perseguida simplesmente por expressar sua arte. “A música negra foi totalmente marginalizada. Há testemunhos na história do samba de que, se um músico fosse pego com um violão, o violão era confiscado pela polícia. A ideia de que se você era musico e negro, então você era malandro, não um trabalhardor”, afirma Tânia da Costa Garcia, professora em História da América na Unesp. 

A docente conta que Tia Ciata, sambista e mãe de santo, costumava promover festas na Pequena África, na região portuária do Rio de Janeiro, em que o espaço tinha três ambientes. Na sala de entrada, tocava-se chorinho, para evitar a fiscalização da polícia. Já na sala adiante e no terreiro se tocava samba e batuque. 

Foi graças à colaboração da imprensa carioca e à organização de concursos carnavalescos que o samba ganhou visibilidade e deixou a mira das autoridades, a partir de 1928. “São os jornais cariocas que montaram os júris e organizaram critérios para os concursos de escolas de samba. O carnaval deixa de ser apenas um desfile do corso, em que carros da elite carioca desfilavam em fila com homens e mulheres fantasiados, e passa por um momento em que cordoes se organizam em alas e surgem as escolas de samba. “A partir daí o samba deixa de ser um maxixe, e o samba vai ganhando outros ritmos, construindo o que chamamos de samba moderno”, comenta Tânia. 

Branqueamento

A indústria fonográfica também investiu em ritmos que pudessem se tornar nacionais, especialmente para legitimar o poder dos governos populistas, como o de Getúlio Vargas. 

Mesmo assim, os estilos ligados à cultura negra, especialmente o samba e o axé, passaram por uma política de branqueamento, tanto que as letras já não trazem palavras de origem africana como antigamente. 

Vale ressaltar ainda a falta de reconhecimento dos artigas negros, tendo em vista que a maioria morreu pobre, a exemplo do Cartola, apesar da contribuições fundamentais à cultura nacional. 

O historiador Juliano Almeida conta que Monsueto Menezes é um bom exemplo do apagamento de compositores e artistas negros. É dele a autoria de grandes sucessos da música brasileira, como Mora na Filosofia e Eu quero essa mulher assim mesmo, ambas gravadas por Caetano Veloso, A fonte secou, famosa na voz da cantora Cláudia, e Ensaboa, sucesso na voz de Marisa Monte. Falecido em março de 1973, Monsueto, no entanto, é pouco conhecido.

POR QUE O TOQUE É UM EVENTO POLÍTICO?

Novembro 21, 2023

Autora explora o papel dos sentidos para analisar conceitos de violência, gênero, sexualidade, segurança, democracia e identidade. O tato informa o corpo e sem ele o Estado não existiria, diz. Leia um trecho do livro, publicado pela GLAC

OUTRASPALAVRAS

DESCOLONIZAÇÕES

por Erin Manning

21/11/2023 –

Foto: Fábio Messina

Este texto integra o livro Políticas do toque: sentidos, movimento e soberania, de Erin Manning, publicado pela editora Glack, parceira editorial de Outras Palavras.

O corpo como modalidade sensorial se engaja com um outro através do toque, o qual, por sua vez, transpira violência potencial em seu desejo de transformar o espaço entre si mesmo e o outro. O que diferencia isso do modo de organização do corpo-político nacional é o fato de que o toque como um modo de alcançar é um meio sem fins. Não há preocupação com um destino final no que concerne ao toque. De fato, não há nem self, nem outro como tal. O corpo é o intermediário através do qual crio, com você, o espaço compartilhado de nosso toque, nossa subjetividade-em-processo. O toque como um estender-se é um gesto de espaçamento, uma instância da violência inexorável da diferença, do incognoscível. O toque é um movimento em direção a um outro através do qual re-conheço a mim mesmo de modo distinto, espaçando o tempo enquanto temporalizo o espaço.

Meu gesto em sua direção é momentâneo. Não há toque que possa durar para além do primeiro instante de contato. Para tocar demoradamente, preciso tocar novamente: como meu foco se alterna para outra coisa, minha pele se esquece de reconhecer a sua. Para me tocar, você precisa retornar o toque para si mesmo, em um processo de contínua troca. Por ser temporário e imediato, o gesto não é mais do que momentâneo. Este é um instante político no sentido mais ético, já que requer uma contínua re-articulação, em lugar da subsunção ao mesmo. Caso eu tente assimilar você pelo toque, não poderei te alcançar. Pelo contrário, aplicarei o pior tipo de violência sobre seu corpo, pois ele agirá apenas como um receptáculo para minha direcionalidade. Seu corpo se transformará em presa. Se, ao invés disso, eu reconhecer a efemeridade do gesto, arrisco uma abertura em direção ao “ethos como esfera mais peculiar do humano”.1

O momento do toque como um alcance é o momento raro em que a política e a ética existem lado a lado. É raro não apenas porque ocorre com pouca frequência, mas também porque é acidental, momentâneo e efêmero. É uma ético-política em desconstrução que resiste brevemente à segurança, à estabilidade, à classificação. Esta ético-política, por mais violenta que possa ser (já que sempre resulta de uma “tomada” de decisão), caso fosse pensada juntamente com o toque como modo de codificar a política do corpo, liberta-nos momentaneamente da dinâmica de construir fronteiras sobre qual se baseia o aparelho de Estado que, se se confrontasse com o toque como meio de codificação do corpo-político, faria uma tentativa de aprisionar este terceiro espaço recém-criado em suas matrizes de inteligibilidade. É esta ético-política que estou tentando indicar, uma ético-política que está, por necessidade, sempre levemente fora de nosso alcance.

O toque, como momento ético-político, rompe com a alternativa falaciosa entre fins e meios, que paralisa tanto a ética quanto a política no interior da matriz de regimes de territorialidade imposta pelo Estado. A mediação do toque não é nada além de um processo tornado visível, um processo que se volta para a criação e disseminação do meu corpo através da reciprocidade do seu corpo, não como uma entidade per se, mas como potencialidade. Porque o toque torna visíveis os meios de alcançar, ele pode ser considerado como uma contrapartida do momento político do encontro, momento no qual há a emergência do ser-em-medialidade da humanidade. Este momento é ético não em razão das intenções daquele que se inclina para alcançar , mas porque o próprio ato de alcançar não pressupõe nada além da intermediação de uma resposta, ou seja, além da criação de um terceiro espaço. Ainda que me retraia e não alcance você de fato, já alterei o espaço que modula nossos corpos relacionais. O gesto que é o toque, não importando se é ou não capaz de alcançar aquilo para o que se inclina, torna-se a comunicação de uma comunicabilidade. Este gesto não fala por meio de frases, fala ao corpo, recordando-nos que nossa pele sempre está em movimento no tempo e no espaço, derramando-se e derramando-nos.

A decodificação das informações através dos órgãos sensoriais do corpo é obtida por meio da relação entre o corpo e o ambiente. A percepção sensorial depende do encontro do mundo com o corpo à medida que o corpo se torna mundo. Os sentidos traduzem o corpo não como indivíduo, mas como troca relacional entre corpos e mundos. Tal como descrito por Gil, “as esfoliações do espaço do corpo, enquanto formas abstratas, integra a informação proveniente de um corpo perceptível e torna possível sua tradução em um outro objeto, pertencente a uma esfera sensória distinta.”.2 As esfoliações do tato em várias superfícies do corpo como espaço-tempo, resultam no desaparecimento do Um e no aparecimento de uma diferença singular em movimento, que se desconstrói infinitamente. Ao esfoliar-se, o corpo se dissolve no espaço, torna-se espaço, reemerge como espaço.

Esta é a metamorfose do corpo da qual fala José Gil, “uma condição da atividade de traduzir códigos: a cada esfoliação, há a metamorfose de todas as formas em modos espacializados de si”.3 Somos o espaço da relação: não há corpo unificado. Há peles, superfícies receptoras, movimentos gestuais, desejos por um outro. O corpo é um potencial ativo, não uma tautologia.

Nos escritos de Aristóteles, destaca-se sua observação de que a percepção primária mais comum é o tato. O tato, sugere o filósofo, é necessário para os outros sentidos. De acordo com ele, o meio que corresponde ao tato é a carne, e o elemento do tato é a terra. De algum modo, Aristóteles complexifica esta compreensão do tato ao sugerir que o órgão do tato “deve estar dentro de nós”.4 A invisibilidade do órgão que representa o tato leva Aristóteles a se questionar se o tato seria composto por um ou vários sentidos. Para ele, o tato é o primeiro sentido, o mais necessário para a manutenção da vida: “O tato em bom desenvolvimento é a condição para a inteligência do homem”.5 O tato, para Aristóteles, é o sentido indispensável para a vida, o sentido que o ser humano temsimplesmente por ser, enquanto os demais sentidos, ele sugere, os “temos para o bem-estar”.6 Para o filósofo, o tato é o “senso comum”, não algo além nem superior aos demais sentidos, mas sua natureza comum.

O tato como senso comum nos leva de volta ao campo político da res-publica do Estado, às suas práticas de inclusão e exclusão baseadas no consenso. Também nos leva a refletir sobre a insólita mudança entre con-sentir e con-senso, como de fato se define. O senso comum, no sentido aristotélico, aproxima-se do con-sentir em sua etimologia, que referencia aquilo con-sentido. Entretanto, ambos os termos foram usurpados na política para simbolizarem uma soma de opiniões análogas. O senso comum, assim como o consenso, é frequentemente associado a uma política que faz suposições sobre a base de conhecimento de seus constituintes, uma certa filiação de um grupo político delimitado. O senso comum é, muitas vezes, o sonho do consenso, que impulsiona o imaginário da nação e suas narrativas adjacentes de identidade e território. “Para o bem comum” é a prática e a promessa de uma política baseada no consenso. A noção de esfera pública, de Jürgen Habermas, e a política de reconhecimento, de Charles Taylor, são dois exemplos desta operação.

A vocação intrínseca da política de Estado é unificar objetivos e organizar aspirações em uma unidade espaço-temporal. Ela não lida bem com rompimentos em seu tecido social: a política deve ser comum, e onde a comunalidade não pode ser encontrada, deve-se traçar uma linha criando uma fissura entre o dentro e o fora, entre o conhecido e o desconhecido, o eu e o outro. Esta unificação de forças em nome do “bem comum” tolera a dominação em nome de um reequilíbrio das relações sociais. Cada corpo deve ser colocado em seu lugar, e é necessário colocá-los em posições específicas, para que possa haver a distribuição de poder que inscreve adequadamente a ordem social nas matrizes de inteligibilidade. O corpo se torna inteligível tão logo é visto como comum. A inteligibilidade como comunalidade é a articulação política primordial na linguagem do Estado-nação.

Entretanto, sempre há fugas possíveis da matriz de inteligibilidade do corpo-político, uma desarticulação resiste. Estas possibilidades contestam a soberania do Estado-nação em seu cerne, mesmo quando a resistência ainda não está em ação com este propósito definido.7 Uma política toque é um dos meios pelos quais o corpo resiste ao Estado. O toque como uma inclinação adiante coloca em primeiro plano a incognoscibilidade que está no âmago de todos os corpos de conhecimento, recordando-nos de que não podemos conhecer o corpo, tal como alega o Estado, já que nenhum corpo está plenamente articulado. Cada corpo se mover de modo distinto, in-diferença ao Estado.

Tocar outrem é um gesto recíproco rumo à incognoscibilidade que sublinha a incompletude do Estado, instância invariavelmente falha na tentativa de subsumir o corpo ao seu domínio. O toque enfatiza a discrepância entre a violência do corpo como multiplicidade e a violência do corpo como identidade. O que sabemos sobre o Estado é que ele não pode operar sem violência: o poder do Estado não pode existir a menos que detenha o direito maior e exclusivo de empregar a força. E esta violência é reproduzida em nome da segurança enquanto o Estado não identificar e docilizar todos os corpos sob seu domínio (e ao longo de suas fronteiras). A violência do toque, por outro lado, não se refere ao controle, ela é produtiva. Quando o Estado se apodera do corpo, tenta criar um laço de reciprocidade absolutamente hierárquico; quando o corpo abandona o (imaginário do) Estado, passa a criar outros corpos, outros mundos. A violência é operacional em ambas as instâncias. Entretanto, quando o corpo se afasta de um espaço soberano, territorializado, demarcado e passa a se mundificar, emerge um cronotópo que não pode ser delineado rigorosamente, através do qual ocorrem justaposições e convergências que multiplicam o espaço-tempo por meio de camadas textuais, criando novos corpos em movimento. O espaço se amplia com o corpo e se encolhe com o Estado.

Certamente, a violência permanece fatal, mas neste caso o Estado não a detém exclusivamente, podendo ser vista, agora, como uma rede de forças que produzem efeitos de poder e de conhecimento com os quais o corpo pode operar. Enquanto no sistema de soberania do Estado as infrações permanecem sendo crimes contra o Estado, o corpo que desafia tais limites compartilha do potencial de violência e, portanto, concebe-a não como um momento da “queda” exterior, mas como um momento de habilidade em ser responsivo. Esta é uma mudança fundamental, pois quando a violência é um direito exclusivo do Estado, todos se tornam culpados por serem culpados. Porém, quando a violência se apresenta como um empreendimento compartilhado entre corpos através da complexa modalidade que é o toque, ela se torna a medida de resposta na tomada de decisão, envolvendo a capacidade em responder não apenas ao outro, mas a si mesmo.

O Estado necessita do corpo. Se desalojarmos o corpo do Estado (um dilema conceitual sempre em exercício, uma vez que o corpo está em contínua metamorfose), a rede de forças que sustenta a imagem do Estado desaba imediatamente. Torna-se evidente que o corpo nunca pertenceu ao Estado, que sempre extrapolou seus limites. Isso não significa que não haja uma representação do corpo ativo na política do Estado-nação atual. Afinal, a operacionalidade do conceito de nação depende dos corpos.

Conceitualmente, o Estado-nação poderia ser denominado de Estado-corpo, razão pela qual o corpo-político do Estado concentra-se tanto em desenhar uma imagem do corpo que deve permanecer dependente do imaginário do Estado-nação. Caso removêssemos do Estado o corpo, a fusão entre território e identidade não poderia ser sustentada. Se imaginássemos o corpo não como um contêiner que regressa ao Estado para sustentar-se, mas que desafia, através de condições de metamorfose, as conclusões predeterminadas pelo Estado sobre seu pertencimento e inseguranças, encontraríamos um corpo desestatizado e um Estado descorporificado. Este Estado descorporificado atravessa o espaço e o tempo não em direção às estriadas matrizes de inteligibilidade, mas rumo a novas redes de poder e conhecimento. Este corpo vive nas infralinguagens, não nas récitas silenciosas dos encantamentos da soberania do Estado.


Notas:

1 Giorgio AGAMBEN, Means without ends, op. cit., p. 57; ed. bras.: Meios sem fim, op. cit., p. 58.

2 José GIL, Metamorphoses of the body, op. cit., p. 25; ed. port.: Metamorfoses do corpo, op. cit.

3 Ibidem, p. 38.

4 Aristóteles, De Anima, ed. Sir David Ross (Oxford, Oxford University Press, 1961), 11, p. 423b.

5 Ibidem, p. 9.

6 Ibidem, p. 13.

7 Ver capítulo 7 para uma elaboração sobre a política de Espinosa.

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