Archive for Maio, 2020

CONFIRA CINCO CURTAS DE FICÇÃO DIRIGIDOS POR MULHERES PERNAMBUCANAS

Maio 31, 2020

Assista on-line e de graça a filmes de Lia Letícia, Ayla de Oliveira, Dandara de Moraes, Biarritz e Letícia Batista

Iyalê Tahyrine
Brasil de Fato | Recife (PE) |
Trecho de Terra não Dita Mar não Vista (2017), da cineasta pernambucana Lia Letícia – Reprodução

Durante o período de isolamento social, o acesso às várias expressões culturais se torna ainda mais necessário. Apesar disso, muitos trabalhadores e trabalhadoras da cultura estão vivenciando situações de vulnerabilidade econômica por não poderem exercer seu ofício. Por isso foi tão importante a aprovação na Câmara dos Deputados da Lei Aldir Blanc, que viabiliza um auxilio emergencial para os trabalhadores da Cultura.

Pernambuco é, reconhecidamente, um estado com vasto histórico de manifestação e produção cultural. Pensando no ramo do audiovisual, o estado tem ganhado bastante destaque no cenário nacional nos últimos anos. Filmes aclamados pela crítica e pelo público como Bacurau e Aquarius, ambos de Kleber Mendonça Filho, são alguns bons exemplos desse celeiro de produção audiovisual que é Pernambuco. 

Contudo, na contramão da lista dos famosos diretores aclamados, o Brasil de Fato Pernambuco selecionou uma lista de cinco produções audiovisuais dirigidas por mulheres pernambucanas, que têm realizado bastante conteúdo no último período, mas com pouca visibilidade, sobretudo a produção de mulheres negras. Neste primeiro momento, as produções selecionadas são do gênero ficção e estão todas acessíveis nas plataformas digitais.

Terra não Dita Mar não Visto (2017) – Lia Letícia

Terra Não Dita Mar Não Visto é um ensaio audiovisual que surgiu a partir da proposta da artista e professora de Filosofia Loraine Oliveira para a diretora Lia Letícia. No filme, são discutidos os arquétipos femininos da figura de Yemanjá. A proposta foi recuperar a visão europeizante e folclorísticas e reorganizá-las numa perspectiva artística contemporânea.

 

 

Entre Pernas (2018) – Ayla de Oliveira

“Quais mecanismos você usa para materializar o que está oculto na mente?” A lenda urbana da Perna Cabeluda que assombrou o imaginário pernambucano na década de 1970 retorna 49 anos depois com ares fantásticos. A ida à delegacia para realizar uma denúncia dizendo-se vítima da Perna é um mecanismo da Mulher. Em uma tentativa de se fazer ouvir, ela vai de encontro a materializar o oculto.

 

 

Bup (2018) – Dandara de Moraes

Curta-metragem dirigido e protagonizado por Dandara de Moraes, Bup faz referência ao remédio antidepressivo Bupropiona. A personagem-diretora aborda em ritmo frenético uma tragicomédia sobre a presença da angústia, incômoda insegurança e constante inquietude.

 

 

Mandacura (2017) – Biarritz

Como precisamos dos nossos deuses? O que eles estão tentando nos dizer? O fim está próximo. O começo também. Um pedaço de uma era, de uma história, de uma única história? Nós. E uma mão que rege o mundo.

 

A Vida Delas (2018) – Letícia Batista

O curta metragem conta a história de Malu, uma vlogueira que no mundo da internet sua roupas são caras, sua voz é ouvida e não há dificuldades. Mas, ao desligar as câmeras, a realidade é outra.

 

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Marcos Barbosa e Camila Maciel

BRUNO OLIVEIRA*: RESENHA DO LIVRO DOIS IRMÃOS DE MILTON HATOUM

Maio 30, 2020
Resenha: Dois Irmãos, por Bruno Oliveira
30/05/2020

Se pudéssemos atribuir valor literário a uma obra pela quantidade de prêmios que possui, com certeza o livro do Milton Hatoum, Dois Irmãos, publicado em 2000, ganharia a alcunha de Magnus opus. Dentre as honrarias estão o Jabuti, o mais conceituado prêmio da literatura brasileira.

Milton Hatoum utiliza a cidade de Manaus como pano de fundo para desenvolver a maior parte da história. O aspecto urbano e a fidelidade para com o descrever do espaço é algo que chama atenção. Logo nas primeiras páginas é perceptível o quanto dos efeitos de avanços e recuos no tempo serão utilizados. Pois tudo que podemos saber ocorrem como flashs de memória, como se através dos narradores buscássemos a melhor forma de colocá-las em palavras. Por isso, os conflitos dramáticos são apresentados ao leitor de forma lenta. Digo narradores, porque existe uma co-relação entre principalmente três personagens para a narração: Halim e Domingas, os narradores indiretos, e Nael, o narrador responsável por construir um quadro claro dos conflitos. Lembrando, esses personagens são os mais nítidos como narradores, mas não os únicos, porque em toda obra haverá quem acrescente algo. Muito do que será contado a Nael virá em retalhos, através da oralidade, ou seja, a maior parte dos acontecimentos é transcrito em cima da incerteza.

Podemos montar um quadro ordenando começando por Halim, um senhor que veio do Líbano ainda criança, e que para ganhar a vida tornar-se mascate vendendo de tudo por toda Manaus. Em um dia de andanças encontra um restaurante, que começa a frequentar assiduamente, pois se apaixona por Zana, filha de Galib, o dono do estabelecimento. Passam-se alguns meses até que Halim crie coragem e recite gazais (poema lírico de origem árabe) para sua amada. Enfim, depois de alguns dias, casam-se. O pai da moça viaja ao Líbano e de lá não retorna. Esse episódio impulsiona o jovem casal a abrir seu próprio negócio. Zana, sentindo-se muito sozinha, convence Halim a terem filhos. Logo após tantos pedidos nascem Rânia, e os gêmeos: Yaqub e Omar, este quase morre enquanto recém-nascido o que causará por parte da mãe um cuidado excessivo que durará por toda vida. Os irmãos crescem. E num sábado festivo uma tragédia marcará a vida de todos os personagens envolvidos na trama; os gêmeos brigam e se saparam.

Antes do nascimento dos filhos, Zana adota uma “cunhatã” chamada Domingas. Essa que depois de uma tragédia na infância é levada para um orfanato controlado por freiras. Domingas é possuidora de uma visão panorâmica privilegiada da história, pois ao mesmo tempo em que consegue ser distante da família libanesa, é parte integrante desse conjunto. Por isso, consegue captar aspectos e tirar conclusões que ninguém dentro da casa teria.

A abordagem com que os temas e os motivos são colocados é o que torna diversificada a obra de Hatoum. Pois apesar de ser um assunto trabalhado, mas não esgotado, por inúmeras narrativas passadas – exemplos máximos é o conflito de Abel e Caim, na bíblia; e Esaú e Jacó, de Machado de Assis -, o autor amazonense consegue transformar o embate de Omar e Yaqub em algo peculiar. Milton monta uma a intrigada relação entre os gêmeos. Estes por serem possuidores de personalidades antagônicas – Yaqub é um ser fechado, sério, introvertido; e Omar é um boêmio, sempre à procura de aventuras – não conseguem viver harmoniosamente, quadro este agravado por uma briga que ocorre enquanto os irmãos ainda são jovens.

Um drama que fica em segundo plano, mas não por isso menos importante, é o de Nael, narrador que assume funções autodiegética e homodiegética conforme o desenrolar da trama. Filho de Domingas, Nael não sabe quem é o seu pai. Desconfia que possa ser um dos gêmeos, mas qual? Perguntas como essa ganham força no enredo.

Outros aspectos importantes afloram na história criada por Hatoum. Dentre tantas podemos citar a crítica ao período da ditadura militar instaurada no Brasil. É comum na narrativa do escritor amazonense a mescla entre o fato histórico e a ficção. Essa crítica ganha seu ápice em um episódio no qual, o professor de francês do Nael, mestre Laval sofre duras perseguições por parte dos militares. Esse capítulo é um dos mais fortes e interessantes, pois transborda sentimento, produto, talvez, de um fato biográfico ocorrido na vida de Milton, do qual foi também perseguido, enquanto participante do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP, pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).

O que também chama atenção é forma como o autor caracteriza as personagens mulheres; todas elas possuidoras de grande força e inquestionável beleza. Zana é controladora, influenciando muitas vezes a opinião do marido, e sendo complacente (até certo ponto, pois ela controla as relações amorosas do filho) com as aventuras boemias de Omar; aventuras essas que trazem diversos desconfortos e conflitos para dentro da casa dos imigrantes libaneses. Rânia se transforma, apesar de sua perceptível reclusão, na provedora econômica do lar; cuidando dos negócios da família, há tempos abandonados por Halim. E por fim, Domingas, nem escrava nem completamente livre, mas responsável pela casa, numa espécie de governanta conformada; seus excessivos cuidados a residência tornam-se sua obsessão.

Não podemos deixar de salientar a explanação que Hatoum faz da cidade de Manaus; um lugar promíscuo, onde o sexo é tratado como banal. Tudo isso é perceptível em muitas passagens da obra.

Enfim, o livro desde o início prende a nossa atenção. A cada releitura é uma nova forma de vê o mundo. O livro é bom, pois tem algo a dizer. Surge para concretizar o que há muito tempo faltava aos escritores amazonenses: reconhecimento. Os recursos estilísticos na criação da narrativa, do ambiente, na trama, dos personagens só atribuem mais qualidade a obra. Em muitos de seus ensaios, George Orwell falava sobre um conjunto de livros que mereciam ser resenhados, sem sombra de dúvidas a obra de Milton Hatoum encontraria lugar nesse panteão. Recomendo.

*Bruno Oliveira é filósofo, músico e crítico literário.

URARIANO MOTA: O TERCEIRO EPISÓDIO DO LIVRO ANTIFASCISTA

Maio 29, 2020

O encontro das feras literárias se fez em torno da  resistência na literatura contra o fascismo.

O terceiro episódio do livro Antifascistas *

por Urariano Mota

O terceiro episódio é o segundo lançamento.

NÃO PULE A INTRODUÇÃO

Na quinta-feira 21/05/2020, foi a vez do encontro das escritoras Carol Proner, Pilar del Río, Juliana Neuenschwander e do escritor  João Ximenes Braga. Esse lançamento virtual da coletânea e os próximos foram e serão apresentados por Regina Zappa e Leonardo Valente, um dos organizadores do Antifascistas, ao lado de Carol Proner. O encontro das feras literárias se fez em torno da  resistência na literatura contra o fascismo. E acabou o trailer. Vamos sem demora aos trechos dos quatro autores, sem spoiler

AÇÃO NA ESPANHA

Carol Proner:

“Com os dedos comprimindo as têmporas, como que sentindo muita dor, a jovem loira e esguia parece não me ver postada à sua frente. Pergunto se está tudo bem, mas ela permanece alheia. Repito, fitando-a nos olhos: “¿estás bien? A pergunta não deve fazer parte das normas de um aeroshopping, podendo soar como intromissão ou mesmo algum tipo de assédio. Passado o estranhamento, a moça, um pouco pálida, também quebra o protocolo e justifica que está exausta, tendo passado o dia em pé, sem um apoio para sentar. Confidencia, discretamente e já desviando o olhar, que não há quem possa substituí-la para “ir a los servicios”. Espantada com o desabafo, penso em como poderia ajudá-la. Assumir a caixa por alguns minutos não me custaria nada, mas obviamente não avancei tal proposta. Menos descabido seria a moça baixar a porta de aço, deixando um aviso de volto logo, e se aliviar no banheiro ali a poucos metros. Naquele momento a loja estava quase vazia, apenas dois clientes folheavam revistas. Pensei em me aproximar e lhes relatar a situação de emergência, apelar para a solidariedade internacional, pedir que esperassem do lado de fora por cinco minutos. Distraída com essas conjeturas, mal percebo que ela largou o troco na bandeja, como que a marcar distância novamente. Quando vou lhe agradecer, já virou de costas e murmura: “esto no vá bien, esto no está bien”.

AÇÃO NO LEBLON, RIO

João Ximenes Braga:

“A sra Angela Regina anunciou que, já que havia descido, iria participar da reunião. E propôs que discutissem como os cachorros e porteiros seriam incluídos no racionamento. O sr. Eséas Arnaldo propôs que os porteiros trouxessem água de suas próprias casas, ao que todos os presentes concordaram. E que o caminho para os cachorros nestes tempos era naturalmente o sacrifício, o que despertou uma crise de choro na sra. Catharina.

O sr Fratinelli pediu a palavra para uma nova questão de ordem. Era urgente denunciar o sr Gabriel à polícia pela prática de terrorismo, afinal, ele havia mencionado o MTST na frente de todos, havia testemunhas. O sr Otávio protestou, mas todos os outros concordaram e, diante disso, o sr. Eséas Arnaldo, em nome do condomínio, fez a denúncia no aplicativo do site http://www.oguardinhadaesquina.gov.br.”

AÇÃO FASCISTA NA WEB PROFUNDA

Juliana Neuenschwander:

“Que sejam destruídos os museus, as bibliotecas, as universidades, os acervos; que sejam apagadas as memórias, as lembranças, as invocações do tempo, do passado e do futuro. Desprezamos a experiência, o conhecimento e toda forma de saber, sejam eles cultivados ou selvagens. O presente é a História.

No presente, a única realidade possível é aquela do espaço-tempo virtual, da multiplicação das redes sociais, tecida por fios invisíveis de palavras cruas e grossas, ásperas, diaspóricas e secas, costuradas por imagens banalmente brutais e pornográficas. No presente, não há possibilidade de espanto, nem tampouco tempo para o escândalo.

Decretamos o fim: o colapso do humanismo, a morte da democracia e a erosão dos direitos humanos. No presente nada que diga respeito ao futuro importa. No lugar da democracia, celebramos o poder da aceleração e a política do pior”

AÇÃO DOS QUE NÃO PROTESTAM

Pilar del Río:

“Ao não me mover, ajudei a abrir as portas do fanatismo que hoje me envergonha. Não estava sozinho, comigo havia outros, meu irmão e meu vizinho entre eles, cada um com seu fardo, todos conduzidos de maneira tão sutil que quando nos demos conta da existência do monstro, parecia um monumento erguido com nossas próprias mãos, as minhas, a de gente de minha rua ou de trabalho que nunca questionou as regras do jogo, a honestidade dos guardiões do sistema ou o próprio sistema.

Agora, já tarde demais, sabemos que não criamos o monstro, ele estava disfarçado com outro rosto e com outros agentes porque adota oportunamente a forma mais adequada a seus interesses, e por isso proclama em nossos dias que foi convocado por mim, pela História, pela Civilização e por Deus, e com tanta força o proclama que nos paralisa, retornamos ao silêncio, aceitamos com resignação que já não somos quem éramos e com essa conclusão grosseira tratamos de mitigar a tristeza. Mas hoje não: com um fio de pensamento que se desmancha, porque perdi o hábito de pensar, quero proclamar meu desespero e meu desamparo, minha condição humana.”

UM DIA ANTES

Em 28/05/2020, foi a vez da escritora Maria Valéria Rezende e dos escritores Gustavo Felicíssimo e Urariano Mota. Houve momentos de história, humor e memória. Na próxima semana, eu conto.

CRÉDITOS DO EPISÓDIO

Enquanto as emoções seguintes não vêm, aconselho que adiantem a maratona antifascista com a leitura total do livro Antifascistas. À venda aqui: Editora Mondrongo  https://www.mondrongo.com.br/index2.php?pg=noticia&id=233

RESUMO DA SÉRIE

Cada antifascista é um leitor. Cada leitor é um antifascista.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/o-terceiro-episodio-do-livro-antifascistas/?fbclid=IwAR0yq1vjCyp7U9W9qIo_HIufQQ6PwXiorVIKphbePeYfxWInfoODe3h5bj8

BOLSONARISMO E DESTRUIÇÃO DA CULTURA: “A UM PASSO DO FASCISMO”, ALERTA INÁ CAMARGO

Maio 28, 2020
ENTREVISTA

Filósofa rastreia o termo marxismo cultural e identifica as armas usadas pelo fascismo do século passado no Brasil hoje

Nara Lacerda
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 

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Bolsonaro participa de mais um dos “protestos da morte”, contra o isolamento social, o Congresso e o STF. – Sergio Lima/AFP

Em um dos trechos de sua mais recente obra, Dialética do Marxismo Cultural, a pesquisadora e filósofa, Iná Camargo Costa, afirma que “a combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo” foi diretamente responsável pelo crescimento e reforço dos entusiastas de Hitler e, consequentemente, do nazismo. A fórmula, que parece se repetir no Brasil de hoje, teve na destruição da cultura um dos principais pontos de apoio.

No livro, a autora faz uma caminhada histórica às origens do termo “marxismo cultural”, usado ostensivamente pela direita conservadora atual para pregar a destruição de uma produção artística que teria origem na esquerda e seria supostamente doutrinadora.

“É uma operação violentíssima do ponto de vista intelectual e do ponto de vista físico. Porque eles vão para o ataque com todas as armas. As armas deles são as armas dos selvagens, porque eles não têm referências e eles são intelectualmente muito deficientes”, afirma a autora sobre a aplicação irrestrita do termo para definir inclusive representantes do liberalismo e conservadorismo.

As semelhanças entre o bolsonarismo e o fascismo do século passado para calar as artes são, no mínimo, estarrecedoras. “Nós estamos a um passo do maio de 33 de Hitler, que é o poder absoluto nas mãos do chefe do executivo. A oficialização do regime fascista no nosso caso tem um ou dois meses ainda para acontecer, mas está posto e é isso que o titular do cargo de presidente quer”, diz Costa.

:: Primeiros a parar na pandemia, profissionais da cultura relatam abandono do governo ::

Ela aponta que essa trajetória teve inicio em 2013 após os protestos de junho e começou a se concretizar em 2015 com as articulações para a derrubada da presidenta Dilma Rousseff.

“O caminho começou em 2013. O caldo para um regime fascista no Brasil está dado oficialmente desde 2015, só não vê quem não quer. Em 2015 eu disse que, uma vez consolidado o impedimento da ex-presidenta Dilma Rouseff, nós já teríamos um regime fascista.  O Michel Temer já é o início disso”, aponta.

:: Artigo | A cultura é de ordem ordinária e precisa estar à mesa ::

Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e assessora da Coordenação de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fala sobre as conclusões da obra e convoca a sociedade para um combate, que passa necessariamente pela apropriação do termo marxismo cultural.

Confira a entrevista completa com Iná Camargo Costa

Brasil de Fato: Marxismo cultural é uma expressão que ficou recentemente conhecida pela boca de políticos conservadores, que usam a expressão com interesse de identificar alvos que devem ser eliminados, como vírus, de universidades, do meio cultural, etc. Mas qual é a origem histórica do conceito? Ele faz sentido para aqueles que defendem a democracia, a liberdade e o socialismo?

Iná Camargo: É por essa pergunta que eu intitulei meu trabalho de Dialética do Marxismo Cultural. Ao mesmo tempo, eu quero identificar o DNA da expressão e mostrar que os marxistas podem perfeitamente ter algo a dizer, por causa da nossa longa experiência, que vem desde o começo do século XIX com as questões culturais. 

Na verdade a expressão era bolchevismo cultural. O inimigo era o nazismo que, como todo mundo sabe, é inimigo da humanidade, não é só do judeu e do marxista. Então, eu fui fazer um rastreamento, porque eu vi como a operação se deu já na obra do Hitler e nos trabalho dos asseclas dele. É uma cambada e o mais conhecido é o Joseph Goebbels, ministro da cultura nazista. 

Aquele caldo de cultura, que deu origem à expressão bolchevismo cultural, era ódio. Não somente da classe trabalhadora organizada, portanto dos marxistas, mas também um ódio do Ocidente, porque a Alemanha perdeu a primeira guerra mundial. É essa Alemanha e os veteranos dessa derrota que começaram com essa história de culpar, de um lado judeus e de outro marxistas. 

Para pegar agora o nosso fio: a social democracia tinha um programa ambiciosíssimo na frente cultural. Patrocinava as atividades mais diversas e interessantes no campo cultural. Em 1917, com a Revolução Comunista, os nazistas então bateram no liquidificador a tradição marxista e tradição bolchevique e forjaram a expressão bolchevismo cultural que, na opinião deles, era um vírus a ser combatido. 

 Aquele caldo de cultura, que deu origem à expressão bolchevismo cultural, era ódio. Não somente da classe trabalhadora organizada, portanto dos marxistas, mas também um ódio do Ocidente, porque a Alemanha perdeu a primeira guerra mundial. É essa Alemanha e os veteranos dessa derrota que começaram com essa história de culpar, de um lado judeus e de outros marxistas.

 

Assemelha-se ao que temos visto hoje no Brasil, quando o bolsonarismo ataca qualquer cultura que não seja a pregada por ele e chama isso de doutrinação do marxismo cultural?

É por isso que é importante não esquecer. Assim como os nazistas na Alemanha e os fascistas na Itália eram inimigos da humanidade, os seus herdeiros hoje também são inimigos da humanidade. Por que eles atacam o marxismo? Porque eles reconhecem no marxismo uma força política e organizativa que pode destruir o sistema que eles defendem. 

Estou falando de luta de classes entre os inimigos do capitalismo – que se reúnem sob a bandeira do marxismo – e os que defendem o capitalismo com todas as armas, inclusive a desonestidade intelectual. Dialeticamente, identificada a origem da expressão marxismo cultural, é preciso resgatar a nossa verdadeira tradição de luta no campo cultural. 

Eles nos chamam de marxistas culturais? Somos sim! Vamos, então, desenvolver as pautas marxistas no plano da cultura! Essa é a dialética!

 Assim como os nazistas na Alemanha e os fascistas na Itália eram inimigos da humanidade, os seus herdeiros hoje também são inimigos da humanidade. Por que eles atacam o marxismo? Porque eles reconhecem no marxismo uma força política e organizativa que pode destruir o sistema que eles defendem. 

 

Podemos dizer que seu livro traz uma atitude dialética ao rastrear na história os momentos em que essa expressão apareceu e, a partir daí, reorganizar o campo da tradição revolucionária, dos que lutaram pelo socialismo e pela liberdade?

Esse é o nosso desafio. Por que é importante passar pela tradição estadunidense? Florestan Fernandes foi o primeiro a dizer que a história do século XX pode ser escrita sobre rubrica da contrarrevolução permanente. O inimigo mais feroz do comunismo e de tudo o que se seguiu e que constitui a nossa tradição está nos Estados Unidos.

A guerra ao comunismo e, mais recentemente, ao marxismo cultural começou nos Estados Unidos em 1917. É de lá que vem todo esse lixo que o bando bolsonarista bateu no liquidificador e passou a usar desde o programa da campanha presidencial.

Em seu ensaio você afirma que “o pesadelo e objeto de fúria e do ódio do líder nazista são as experiências culturais desenvolvidas por socialdemocratas e bolcheviques na Alemanha” e, mais adiante, você constata que “uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo cultural ou arte degenerada”. Atualmente, quais experiências de organização política e cultural você acredita que estão sob ameaça diante do avanço da extrema direita?

A nossa situação é ainda mais grave do que foi na Alemanha, porque eles tinham nome, endereço e telefone dos inimigos, que eram os artistas de esquerda. O que a direita americana fez e a brasileira herdou? Eles não se limitam à esquerda. Eles ampliaram os conceitos, de modo a pegar inclusive os liberais e as instituições que, a duríssimas penas o Brasil foi construindo. 

A criação da escola pública e todos esses aparelhos de produção cultural e educação. Havia uma perspectiva de democratização do acesso à cultura no Brasil até a década de 1950, começando por alfabetização e escolarização. A ditadura destruiu o projeto e, agora, o bolsonarismo está destruindo as próprias instituições. 

Qual é o objetivo? É destruição, não só da cultura de esquerda, é a destruição da cultura como um todo. Não tenha dúvida, é a versão brasileira do fascismo. No entanto, de um modo geral, quando nós imitamos os outros procedimentos, a gente cai na farsa. O tom é sempre farsesco. Para quem trabalha com cultura, precisamos nos especializar nos recursos críticos da sátira e da farsa, porque é nesta língua que nós podemos destruí-los culturalmente. 

 A nossa situação é ainda mais grave do que foi na Alemanha, porque eles tinham nome, endereço e telefone dos inimigos, que eram os artistas de esquerda. O que a direita americana fez e a brasileira herdou? Eles não se limitam à esquerda. Eles ampliaram os conceitos, de modo a pegar inclusive os liberais e as instituições que, a duríssimas penas o Brasil foi construindo. 

 

O segundo episódio do fantasma do marxismo cultural, abordado no ensaio ocorre, nos Estados Unidos. Você menciona que com o início da Guerra Fria é feito um acordo que envolve agentes da Indústria Cultural, o Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals [Aliança do Cinema para Preservação dos Ideais Americanos] com algumas diretrizes como por um lado “não caluniar” o sistema de livre iniciativa, os empresários, a riqueza, a busca do lucro e, por outro, “não divinizar” os pobres; e “não glorificar” o coletivo. Podemos afirmar que esses pilares ainda hoje estão presentes?

Isso foi enunciado! Eu me limitei a traduzir uma parte, porque a lista é grande. Desde 1945 a ideologia está explicitada. Virou programa político da indústria cultural. É consciente, é deliberado. Não é mais uma discussão sobre ideologia. É programa político ideológico explícito por escrito. Portanto, é esse o nosso alvo. É isso que nós temos que combater. Virou programa político da indústria cultural. É consciente, é deliberado. Não é mais uma discussão sobre ideologia. É programa político ideológico explícito por escrito. Portanto, é esse o nosso alvo. É isso que nós temos que combater. O programa é o mesmo. A gente não pode se enganar. O nosso inimigo é poderoso e sabe o que está fazendo. 

 O programa é o mesmo. A gente não pode se enganar. O nosso inimigo é poderoso e sabe o que está fazendo. 

 

No ensaio você aponta que representantes do terceiro momento de perseguição apologética ao marxismo cultural nos EUA estão conectados ao uso dessa expressão como arma de ataque contra a esquerda. Você cita que é um movimento que “não passa de extensão à neocolônia da pauta metropolitana” e conta com a ação de figuras como Olavo de Carvalho.

Outra frente de ataque aponta parte da igreja católica, no combate ao que chamam de ideologia de gênero, que ataca por consequência pautas como o feminismo, a luta LGBT. Fale um pouco mais sobre essas alianças entre as extremas direitas católica, evangélica e a política neofacista no Brasil. Esses entes estão no mesmo barco de maneira consciente?

Inicialmente, a gente precisa lembrar que toda essa pauta chamada identitária provêm do campo liberal. E aqui existe um campo misturado, que tem progressismo e tem tática diversionista também, porque a gente sabe que a pauta liberal é muito limitada. Mas de qualquer maneira, esses movimentos desenvolveram uma luta muito importante nos Estados Unidos, especialmente o feminismo e o LGBT. 

A operação do inimigo é colocar a pauta liberal no pacote do marxismo cultural. E aí agora vem a minha proposta: eles puseram tudo no mesmo balaio? Então vamos realmente consolidar a nossa aliança com todos esses tipos de oprimidos. Vamos organizar esse balaio e incorporar as nossas pautas da luta de classes. Já que estamos levando a fama, vamos deitar na cama. Foram eles que criaram. De novo a dialética: eles empurraram para o nosso colo os liberais de esquerda? Ok, vamos acolher!

Agora respondendo diretamente à pergunta: as pessoas se esquecem, por exemplo, que o papa Bento XVI foi o principal dirigente do santo ofício. É a extrema direita da igreja católica. Uma das especialidades deles foi perseguir padres progressistas. É daí que surgiu a expressão ideologia de gênero. Foram eles que forjaram essa expressão, supostamente em nome da família. A ironia é que os casos mais graves de pedofilia estão na igreja católica. Veja como a coisa é complexa e muito perversa! 

Pois bem, o Brasil tem versões diversas dessa extrema direita católica. É uma coisa lamentável. É um problema da igreja católica, que se aliou ao que tem de pior na extrema direita evangélica e neopentecostal. Tem coisas horrendas e é tudo muito hipócrita. Eles desprezam os arranjos familiares contemporâneos, que geralmente decorrem de opções das mulheres, que tem que se virar para viver. Eles desqualificam. Eles estão contra o processo histórico objetivo. 

Nós temos uma história tremenda de lutas. Temos o que defender. Temos que ir ao ataque. Temos que defender todas as formas de família. É a vida! Eles não valorizam a vida a ponto de condenar o aborto? Assegurar a continuidade da vida também é um desafio e nós fazemos isso. 

 Eles puseram tudo no mesmo balaio? Então vamos realmente consolidar a nossa aliança com todos esses tipos de oprimidos. Vamos organizar esse balaio e incorporar as nossas pautas da luta de classes. Já que estamos levando a fama, vamos deitar na cama. Foram eles que criaram. De novo a dialética: eles empurraram para o nosso colo os liberais de esquerda? Ok, vamos acolher!

 

Sobre a atualidade do problema: você diz em seu ensaio que “a combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo” produz o caldeirão onde germinará o entusiasmo dos fanáticos por Hitler (…)”. Esse caldeirão está fervendo novamente? Num país como o Brasil, em que o racismo tem o lastro estrutural da escravidão e do colonialismo, em que o anticomunismo não deixou de ser parte da doutrina dos cursos militares depois da redemocratização, temos um contexto com chão histórico semelhante ao que deu origem ao nazi-fascismo na Alemanha? A inspiração do ex-secretário de cultura Roberto Alvim, no discurso a la Goebbels – que acabou por o defenestrar do cargo –  é indício de que o fascismo vigora em nosso meio, de forma estrutural, ou você considera aquela imitação textual, de cenário e figurino apenas uma questão de imitação de estilo?

Quando eu escrevi falando dos nazistas eu estava pensando nas cenas que eu vi de pessoas indo para manifestações na avenida paulista em 2015. Eu perdi a conta dos pequenos burgueses, essa classe média que tem uma lojinha. Por que eles foram para as ruas? Porque estavam a um passo da falência. O que eles não compreendem é que os desastres pessoais deles são decorrentes da regra do sistema capitalista: quem pode mais chora menos. Eles não compreendem isso por limitação objetiva. Eles pensam que a ameaça do comunismo produz o pavor da falência neles. 

Eu vi esse processo de organização das pessoas. Pessoas fracassadas, ameaçadas de fracasso, de falência, frustradas, gente que não conseguiu ser o que queria ser da vida, porque o capitalismo no Brasil é o que é. Essas pessoas abraçaram a causa bolsonarista. 

Nós Estamos a um passo do momento maio de 33 de Hitler, que é o poder absoluto nas mãos do chefe do executivo. O caminho começou em 2013. O caldo para um regime fascista no Brasil está dado oficialmente desde 2015, só não vê quem não quer. Em 2015 eu disse que, uma vez consolidado o impedimento da ex-presidenta Dilma Rouseff, nós já teríamos um regime fascista.  O Michel Temer já é o início disso. 

Toda a discussão, desvio de assunto, não olha diretamente o que tem que olhar, contribuiu para retardar a percepção. Simplificando estupidamente: a frustração com o PT levou ao golpe e à instalação do primeiro capítulo do regime fascista no Brasil, que foi o Temer. Como no caso Mussolini e no caso Hitler, a coisa tem um ritmo variado, conforme as circunstâncias. A oficialização do regime fascista no nosso caso tem um ou dois meses ainda para acontecer, mas está posto e é isso que o titular do cargo de presidente quer.

 Eu vi esse processo de organização das pessoas. Pessoas fracassadas, ameaçadas de fracasso, de falência, frustradas, gente que não conseguiu ser o que queria ser da vida, porque o capitalismo no Brasil é o que é. Essas pessoas abraçaram a causa bolsonarista. 

 

A terceira parte de seu ensaio se destina a apresentar as armas da esquerda. O que significa o “marxismo ocidental”? De onde surge essa tradição crítica e como ela se organiza? Quais são as principais obras e autores de referência para quem quer tomar contato com esses estudos?

É importante falar do marxismo ocidental, porque esse foi o peão no tabuleiro estadunidense. É um setor do marximo configurado como um grupo de filósofos e outros intelectuais que preservaram – no todo ou em partes – o marxismo. Todos têm vínculos intelectuais com o marxismo. 

A escola de Frankfurt é o primeiro capitulo do marxismo ocidental. A marca fundamental do marxismo ocidental é que ele é praticado por pessoas desvinculadas de organizações políticas. São intelectuais, na universidade, na esfera pública. Adorno e Horkheimer foram para os Estados Unidos e lá fizeram pesquisas sobre o fascismo dos Estados Unidos. Então, o que a extrema direita americana fez? Identificou a escola de Frankfurt como o principal pilar do marxismo ocidental. 

É um caldeirão de bruxas. Bobeou é marxista. É uma tática também deliberada. Eles colocam o rótulo comunista até nos liberais. Os canais de televisão como CNN e NBC, para a extrema direita são todos comunistas. O que explica aqui no Brasil chamarem a Globo de comunista. Eles aplicam o rótulo sem mediações. É uma operação violentíssima do ponto de vista intelectual e do ponto de vista físico. Porque eles vão para o ataque com todas as armas. As armas deles são as armas dos selvagens, porque eles não têm referências e eles são intelectualmente muito deficientes. 

 É um caldeirão de bruxas. Bobeou é marxista. É uma tática também deliberada. Eles colocam o rótulo comunista até nos liberais.

 

O fenômeno das redes sociais impõe novos desafios para a construção de uma cultura política revolucionária? Você acredita que precisamos nos inserir e disputar por dentro desses meios ou manter ou criar frentes de resistência que não os tornem centrais?

Eu acredito em tudo isso. Eu só não acredito em disputa liberal. Não basta abrir um canal. A coisa tem que ser organizada e, num primeiro momento, ter função de organizar os que já são simpatizantes. Na vida real e nas redes, para fortalecer o processo. É o equivalente às propostas do Lenin, que tinha objetivo de formar militantes que não precisassem de ordem. Que fossem capazes de, em uma determinada situação, formular a questão básica. O programa do partido tinha teses básicas e, em cada situação, o militante devidamente preparado sabia o que fazer. 

Saber o que fazer! Você usa o recurso de comunicação para ampliar o alcance da sua proposta. Aqui entra a rede social, mas sem ilusões, porque nós sabemos que todas são controladas pelo grandíssimo capital. Veja o nível de organização e acumulação do grande capital. 

 Você usa o recurso de comunicação para ampliar o alcance da sua proposta. Aqui entra a rede social, mas sem ilusões, porque nós sabemos que todas são controladas pelo grandíssimo capital. 

 

Que papel a relação entre arte e política podem cumprir num contexto de ataque como o que vivemos?

Acredito totalmente nessa possibilidade. A questão é o que fazer? Afirmar a nossa identidade política, que é marxista! Afirmando todos os que nos precederam em todas as frentes, inclusive e, sobretudo, a cultural. A arte pode desempenhar um papel esclarecedor de extrema importância. 

Temos que afirmar nossa pauta de lutas, porque somos marxistas culturais. Temos que colocar a nossa percepção do que é marxismo cultural. Nada mais é do que a atuação marxista na frente cultural. A cultura popular, por exemplo, é uma referência fundamental para nós. No Brasil, ela é a melhor expressão da resistência do povo oprimido à classe dominante. 

 A arte pode desempenhar um papel esclarecedor de extrema importância (…) A cultura popular, por exemplo, é uma referência fundamental para nós. No Brasil, ela é a melhor expressão da resistência do povo oprimido à classe dominante. 

 

Autores recomendados por Iná Camargo Costa: 

Terry Anderson: “O Marxismo Ocidental é uma obra preciosa e que produz os elementos que a gente precisa para entender a operação dos nossos inimigos selvagens.”

Theodor Adorno e Max Horkheimer: “Toda a obra deles é extremamente relevante para entender o fascismo do pós guerra, a começar pela Dialética do Iluminismo

Vladimir Lenin e Leon Trótski: “Continuam atualíssimos e colocam caminhos, programas e métodos para a luta contra o capitalismo.”

Rosa Luxemburgo: “Contribui para entender a mentalidade do pequeno burguês desesperado. Aquele que acredita no capitalismo, mas que é derrotado pelo próprio capitalismo.”
 

Edição: Leandro Melito

MESTRES DO MARACATU FAZEM LIVES E CAMPANHAS PARA AJUDAR OS FOLGAZÕES

Maio 27, 2020

Por conta da pandemia, eventos tradicionais de maracatu foram cancelados. Foto: Héliia Scheppa/Fotos Públicas

POR CONTA DA PANDEMIA, EVENTOS TRADICIONAIS DE MARACATU FORAM CANCELADOS. FOTO: HÉLIIA SCHEPPA/FOTOS PÚBLICAS

Na capital da festa popular de Pernambuco, nova geração vê carnaval ameaçado

Mestres Bi e Mestre Anderson Miguel são muito considerados em Nazaré da Mata, em Pernambuco. Eles fazem parte da nova geração que comandam nações de maracatu rural ou maracatu de baque solto na capital de uma das mais importantes manifestações populares do Nordeste.

Bi comanda o Estrela Brilhante e Anderson Miguel, o Águia Misteriosa. Atrás desses grupos vão os foliões ou folgazões, formados por pessoas de diferentes classes sociais. 

Cada nação dessa chega a reunir até 150 folgazões, espalhados nas diversas divisões do grupo, incluindo terno (percussão), orquestra (instrumentos de sopro), mestre (canta a poesia), porta-bandeira, burra, mateu, catita, calunga, lampiões, arreamar, caboclos e yabás (baianas). 

Caboclos e yabás

“O maracatu é uma brincadeira sofrida. O Estrela Brilhante tem 130 componentes. Tem desde empresários a gente que não tem nada”, conta Mestre Bi. As classes mais baixas de uma nação em geral desfilam como caboclos e yabás.

Pois nessas duas alas que estão pessoas que Bi tenta ajudar na pandemia do novo coronavírus. Uma live, com apoio de um site de notícias da região da Mata Norte em Pernambuco, foi organizada por Bi com a presença de vários outros mestres, como o renomado Barachinha, para arrecadar alimentos a estes folgazões. 

Nesta sua primeira live conseguiu-se arrecadar mais de 40 cestas básicas, ou feiras básicas como é conhecido por lá, para doação a famílias necessitadas nesses tempos difíceis.

live do Mestre Anderson Miguel realizada num domingo conseguiu levantar quase 1,5 toneladas de alimentos. O cantor também circula pelos gêneros do forró e sertanejo e chegou a ir em outras cidades para cantar nas redes sociais.

“A situação na Mata Norte é bem complicada. A gente mapeou e viu que algumas pessoas estavam precisando”, conta Mestre Bi. 

“Não tem só o pessoal do maracatu, mas aqueles que trabalham no canavial”, cita Mestre Anderson. “De uma semana para cá começamos a perder amigos e as pessoas começaram a enxergar agora que o vírus é perigoso”. 

O plano deles é continuar outras lives para arrecadar mais alimentos às comunidades de Nazaré da Mata. 

Por causa da pandemia é possível que não tenha nem carnaval ano que vem, prevê Mestre Bi. A quarentena já atingiu os festejos na Páscoa, quando o maracatu faz uma confraternização entre seus folgazões. 

“A gente tem medo de até quando isso vai durar, de investir e lá na frente não ter carnaval”, diz Mestre Anderson.

Esse ano não está tendo editais e festivais, oportunidades de as nações de maracatu fazerem apresentações ao longo do ano em diferentes lugares e levantar dinheiro para montar o carnaval. Até as sambadas pé-de-parede, onde dois maracatus se encontram e os mestres se ‘duelam’ em versos até o amanhecer, atraindo grande público, estão suspensas.

Nazaré da Mata é o berço do maracatu. Há 18 nações em atividade hoje, mas já teve 24, tanto na cidade quanto na zona rural.

Existe maracatu só de mulheres, outro de crianças. O Cambinda Brasileira de Engenho Cumbe, onde Mestre Anderson teve sua iniciação no meio, tem mais de 100 anos. As apresentações das nações são tradicionais tanto no interior como no Recife durante o carnaval. 

Ciranda

O Dia da Ciranda, em 10 de maio, também não teve festa, como sempre ocorre. Compostos muitas vezes por pessoas que também tocam no maracatu, embora o ritmo e métrica sejam outra, e sem improviso, os cirandeiros são muito presentes nas festas juninas e de santos no interior pernambucano.

Por conta da pandemia, no entanto, está tudo cancelado. Mestre Bi explica que esses eventos são fontes de renda de muitos músicos. 

Bi espera a pós-pandemia passar pelo menos para gravar o seu terceiro álbum, com ciranda, coco, maracatu entre outros ritmos.

Mestre Anderson Miguel já lançou um trabalho de ciranda, três de maracatu e um com produção do cantor e compositor pernambucano Siba. Após a pandemia pretende gravar novo álbum com seu grupo de ciranda.

APROVADA A “LEI ALDIR BLANC” QUE DESTINA R$ 3,6 BILHÕES DA UNIÃO A TRABALHADORES DA CULTURA DE TODO O PAÍS

Maio 26, 2020
26 DE MAIO DE 2020.

A relatoria do projeto reuniu de maneira coletiva centenas de artistas, produtores e empreendedores do setor cultural de todo o país, das mais diversas áreas, por meio de audiências virtuais

Foto: Instituto Vladimir Herzog
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Foi aprovado pela Câmara dos Deputados, na tarde desta terça-feira (26), a Lei de Emergência Cultural, batizada pela sua relatora, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), como a “Lei Aldir Blanc”, em homenagem ao compositor morto este mês em decorrência da Covid-19. A lei prevê a destinação de R$ 3,6 bilhões da União para estados, Distrito Federal e municípios, na aplicação de ações emergenciais de apoio ao setor cultural durante o período de isolamento decorrente da pandemia do novo coronavírus.

A relatoria do projeto reuniu de maneira coletiva centenas de artistas, produtores e empreendedores do setor cultural de todo o país, das mais diversas áreas, por meio de audiências virtuais.

O líder do governo na Câmara, Vitor Hugo (PSL-GO) fez acordo de sanção com a relatoria, o que garante a a aprovação pelo presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido-SP). O projeto agora segue para o Senado e a expectativa é que seja aprovado rapidamente.

O projeto prorroga por um ano a aplicação de recursos oriundos do Poder Executivo para atividades culturais já aprovadas. Também concede moratória de débitos tributários com a União por seis meses a pequenas empresas do setor cultural. Os débitos deverão ser pagos em 12 meses a partir do fim da moratória, com correção monetária.

A proposta prevê que os recursos do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e de outros programas federais de apoio ao setor devem priorizar atividades que possam ser transmitidas pela internet. Para viabilizar as despesas, o projeto prevê uso de recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC) e de 3% da arrecadação das loterias federais.

Renda emergencial

O projeto garante uma renda emergencial de R$ 600, retroativo a 1º de maio para os trabalhadores informais do setor cultural com rendimentos médios comprovados de janeiro de 2019 a fevereiro de 2020 de até três salários mínimos (por família). A proposta abrange artistas, produtores, técnicos, curadores, oficineiros e professores de escolas de arte.

Para receber o benefício, o trabalhador precisa comprovar a realização de atividades culturais no período e a falta de outra de fonte de renda, incluídos benefícios como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O benefício será pago em dobro para mães solteiras (R$1.200).

Espaços culturais

O texto prevê subsídios para manutenção de espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social. O valor destinado será definido pelo gestor local e pode variar entre R$ 3 mil e R$ 10 mil por mês.

A proposta inclui os seguintes espaços: pontos e pontões de cultura; teatros independentes; escolas de música, de dança, de capoeira e de artes; circos; cineclubes; centros culturais, casas de cultura e centros de tradição regionais; museus comunitários, centros de memória e patrimônio; bibliotecas comunitárias; espaços culturais em comunidades indígenas; centros artísticos e culturais afrodescendentes; comunidades quilombolas; espaços de povos e comunidades tradicionais; festas populares de caráter regional, inclusive a cadeia produtiva do carnaval; teatro de rua, e demais expressões artísticas e culturais realizadas em espaços públicos; livrarias, editoras e sebos; empresas de diversões e produção de espetáculos; estúdios de fotografia; produtoras de cinema e audiovisual; ateliês de pintura, moda, design e artesanato; galerias de arte e de fotografias; feiras de arte e artesanato; espaços de apresentação musical.

Como contrapartida, esses espaços deverão garantir, após o reinício de suas atividades, a realização de uma atividade cultural mensal destinada, prioritariamente, aos alunos de escolas públicas ou em espaços públicos de sua comunidade. Essas atividades deverão ser realizadas gratuitamente, pelo mesmo período em que receber o benefício.

Linhas de crédito

O projeto prevê ainda linhas de crédito para trabalhadores do setor cultural e às pessoas jurídicas que tenham finalidade cultural. O empréstimo será destinado ao fomento de atividades e aquisição de equipamentos, e terá condições especiais para renegociação de débitos.

Fazedores de cultura

Segundo a relatora da proposta (Lei de Emergência Cultural), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), a medida é fundamental para os profissionais do setor cultural do país. Com as medidas de isolamento social, a área está com atividades restritas. Parte dos artistas nacionais têm realizado apresentações via internet, inclusive para arrecadar doações tanto para comunidades carentes quanto para as próprias equipes.

“Todo mundo sabe da importância da arte e da cultura nas nossas vidas. Mas, nesse momento de pandemia, os fazedores de cultura tiveram total impacto econômico, da mesma forma que muitos outros trabalhos. Nesse momento, sejam os que estão na boca de cena ou na coxia, na frente das câmeras ou atrás delas, precisam muito que nós olhemos para essa dimensão do seu trabalho”, defende a deputada.

Segundo a parlamentar, as medidas terão impacto para todo setor, incluindo os artistas e os espaços culturais. “São iniciativas importantes, não só para os fazedores (de cultura), mas também para os espaços culturais e para os editais de fomento para as atividades. Muitos têm feito isso voluntariamente, mas temos que ver isso como um trabalho e a dimensão econômica desse setor”, argumenta Jandira.

Com informações da Agência Brasil

MANIFESTO PELO RESGATE DA CINEMATECA BRASILEIRA

Maio 26, 2020

Instituição deixou de receber recursos e, em breve, não conseguirá manter o funcionamento básico. Conservação do maior acervo audiovisual da América do Sul está comprometido, advertem personalidades da cultura e do cinema

MAIS
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A Cinemateca Brasileira, maior arquivo de filmes do país, cuja trajetória é reconhecida internacionalmente, enfrenta uma situação limite. Em meados de maio não recebeu ainda nenhuma parcela do orçamento anual, cujo montante é da ordem de R$ 12 milhões.

Após sofrer uma intervenção do Ministério da Cultura em 2013, que destituiu sua diretoria e retirou-lhe a autonomia operacional, vem enfrentando um processo contínuo de enfraquecimento institucional que culmina na atual ameaça de total paralisia.

A Cinemateca tem sob sua guarda o maior acervo audiovisual da América do Sul, cuja preservação demanda cuidados permanentes de técnicos especializados e manutenção de estritos parâmetros de conservação em baixa temperatura e umidade relativa.

Estão sob sua custódia coleções públicas e privadas que constituem a memória audiovisual do país. Além do seu intrínseco valor cultural, as obras dos produtores nacionais agregam valor econômico; são fonte de renda industrial que mantém a dinâmica do setor. A ameaça que paira sobre a Cinemateca não é a destruição de valores apenas simbólicos, mas igualmente tangíveis.

O contrato do Governo Federal com a Organização Social que a administra – Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto (ACERP) – foi encerrado por iniciativa do MEC. A atual Secretaria Especial da Cultura, responsável pela Cinemateca, tem seus vínculos administrativos divididos entre os ministérios da Cidadania e do Turismo.

Essa situação esquizofrênica dificulta a atuação do governo com a urgência necessária para impedir a falência da Cinemateca, enquanto a administração pública se dedica a desenhar uma solução de longo prazo. Se o orçamento da Cinemateca não for imediatamente repassado a ACERP, assegurando a manutenção do quadro mínimo de contratados e as condições físicas de conservação, não haverá necessidade de uma perspectiva de fôlego, pois já teremos alcançado a solução final.

O descaso da Secretaria do Audiovisual do extinto Ministério da Cultura para com a Cinemateca acarretou o incêndio de fevereiro de 2016 – o quarto sofrido pela instituição em sua história – em que se perderam definitivamente mil rolos de filmes antigos, fato que na ocasião foi relegado pelas autoridades, que não tomaram nenhuma providência de reparação ou de prevenção de novos acidentes.

Em fevereiro deste ano, as instalações da Cinemateca na Vila Leopoldina (São Paulo), que abrigavam parte do acervo, foram atingidas por uma enchente. Novamente a Secretaria do Audiovisual se absteve de suas responsabilidades, não esclareceu eventuais perdas, nem adotou medidas para proteger as coleções em perigo.

Se a indiferença com o futuro do patrimônio audiovisual brasileiro persistir, as consequências serão ainda mais graves. Sem os cuidados dos técnicos e as condições de conservação todo o acervo se deteriorará de modo irreversível.

Nesse caso, quando chegar o socorro de Brasília, as imagens do nosso passado terão se tornado espectros de nossa falência como nação.

São Paulo, 15 de maio de 2020

Assinam:

LYGIA FAGUNDES TELLES, ex-presidente do Conselho da Cinemateca Brasileira
ISMAIL XAVIER, ex-presidente do Conselho da Cinemateca
CARLOS AUGUSTO CALIL, ex-diretor executivo da Cinemateca, ex-Secretário Municipal de Cultura de São Paulo
RICARDO OHTAKE, ex-diretor executivo da Cinemateca, ex-Secretário de Cultura do Estado de São Paulo
DORA MOURÃO, ex-membro do Conselho, ex-presidente da CILECT – The International Association of Film and Television Schools
UGO GIORGETTI, ex-membro do Conselho da Cinemateca
JOÃO BATISTA DE ANDRADE, ex-membro do Conselho da Cinemateca, ex-secretário de Cultura do Estado de São Paulo
MARCELO ARAÚJO, ex-membro do Conselho da Cinemateca, ex-Secretário de Cultura do Estado de São Paulo
EDUARDO MORETTIN, ex-membro do Conselho da Cinemateca
SÉRGIO MUNIZ, ex-membro do Conselho da Cinemateca
WALTER SALLES, ex-membro do Conselho da Cinemateca
JEAN-CLAUDE BERNARDET, ator, cineasta, crítico, professor, ex-membro do Conselho da Cinemateca

Professores do CTR – Departamento de Cinema, Televisão e Rádio / Universidade de São Paulo

ALMIR ALMAS
ESTHER HAMBURGER
RUBENS REWALD
PATRICIA MORAN
GILSON SCHWARTZ
LUIS FERNANDO ANGERAMI
CECÍLIA MELLO
JOÃO GODOY
FERNANDO SCAVONE
MATEUS ARAÚJO
ARLINDO MACHADO
ROBERTO MOREIRA
LUIS DANTAS
HENRI GERVAISEAU
THIAGO ANDRÉ
EDUARDO VICENTE
CRISTIAN BORGES
EDUARDO SANTOS MENDES
JOÃO PAULO AMARAL SCHLITTLER SILVA
RUBENS MACHADO JUNIOR

APACI – Associação Paulista de Cineastas
ABRACI – Associação Brasileira de Cineastas
ABC – Associação Brasileira de Cinematografia – MARCELO TROTTA, presidente
API – Associação de Produtoras Independentes
ABPA – Associação Brasileira de Preservação
ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema
FÓRUM DOS FESTIVAIS – Fórum Nacional dos Organizadores de Festivais de Cinema – ANTONIO LEAL, presidente
FORCINE – Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual – ALESSANDRA MELEIRO, presidente
Festival de Documentários É TUDO VERDADE – AMIR LABAKI, diretor

FIAF – International Federation of Film Archives – CHRISTOPHE DUPIN, em nome do Comitê Executivo
Cinémathèque Française – COSTA-GRAVAS, presidente
Institut Lumière – THIERRY FREMAUX, diretor
Cinemateca do Museu de Arte Moderna – Rio de Janeiro
RICARDO COTA, curador
HERNANI HEFFNER, conservador chefe
Cineteca Nacional de Chile – MÓNICA VILLARROEL, diretora
Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema – TIAGO BATISTA, diretor do centro de conservação

DAVID OUBIÑA, professor da Universidad de Buenos Aires – CONICET
JACK LANG, ex ministro de Cultura da França, diretor do Instituto do Mundo Árabe, Paris
JAMES GREEN, professor da Brown University
JEAN-LOUIS COMOLLI, crítico e professor
LEYLA PERRONE-MOISÉS, professora emérita da FFLCH-USP
LUIS PÉREZ-ORAMAS, curador e historiador de arte
MARCIO SELIGMANN-SILVA, professor Unicamp
NÉSTOR GARCIA CANCLINI, professor-investigador distinguido de la Universidad Autónoma Metropolitana e investigador emérito del Sistema Nacional de Investigadores de México
RAÚL ANTELO, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
RENATO JANINE RIBEIRO, professor titular da Universidade de São Paulo
ROBERTO SCHWARZ, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas e escritor
SILVIANO SANTIAGO, professor da Universidade Federal Fluminense e escritor
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO, professora emérita da FFLCH-USP

JOSÉ SERRA, senador
HUMBERTO COSTA, senador

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DOCUMENTÁRIO: EPISÓDIO 3 – SONHOS QUE SE APAGARAM

Maio 26, 2020

FILÓSOFO VICTOR LEANDRO*: A QUARENTENA DE UM ESCRITOR

Maio 25, 2020
 por Victor Leandro
25/05/2020

Tomar as palavras como se fossem móveis. Não funciona. É preciso procurar a essência da matéria. O que está descrito entre paredes e longos solilóquios de ausência. Um tema lírico, ou talvez não. Apenas a ideia concebível de meros relatos de erros. O distante barulho onde veloz corre, no que perdura o instante.

Todos os dias. Do modo que se deve colocar-se a escrever e a rabiscar o papel. Porém, as folhas reais não mais existem. Nem as boas histórias, é o que dizem. Tudo junto na fraude da tecnologia. Resisto ao anacronismo. É então que vejo o jornal e são cenas tristes, ou ainda uma comédia infeliz. A mesma esquerda, a mesma direita, a coisa faltante a se chamar o que progride. Contudo, sou histriônico. Sigo, com o verbo a rasgar as notícias ao meio.

Então vem a tentação do eu. Só posso falar de mim ou mim, de uma subjetividade insatisfeita. Perverso tema de declínio. A tarefa de emoldurar-se é ilusão ingênua. Melhor será contar mentiras sobre a passagem do exército vermelho.

A certa altura, reflito. Não, não tem nada a ver com o tema. Tudo é linguagem e seu trato benigno. Coloque os verbetes na ordem e o mais irá bem. Advérbios, adjetivos. Longa dialética do supérfluo como aporia. Livre paradoxo da forma. A efusão da frase supera qualquer carecimento.

Apago tudo, ligo a TV. Esqueço-me. Dou-me por perdido. Horas depois, cá estou eu de novo. A escrita não é mais do que um deletério vício.

Do outro lado da janela, a chuva e os dias passam. É assim que fico.

*Victor Leandro é filósofo, contista, analista-político, doutor e professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

BRASIL PARARELO: A MÁQUINA DO NEOFASCISMO CULTURAL

Maio 25, 2020

Com obras de apelo à comoção e ao negacionismo, produtora peleja “arena cultural” para impor ataque ao Estado – e ocupá-lo. Bebem de Olavo de Carvalho para desmontar educação, e já transitam nos corredores do MEC em ataque à ciência

Por Diego Martins Dória Paulo, no Le Monde Diplomatique Brasil

Nos anos 1950, tornou-se famosa a análise semiológica de uma capa de Paris-Match por Roland Barthes. A edição em questão mostra um soldado negro, vestindo uniforme francês, saudando a bandeira tricolor. A conclusão do semiólogo aponta ali a existência de um discurso mítico: o colonialismo francês está presente na cor da pele do militar, mas seu sentido social está deformado, na medida em que a mensagem faz passar por harmônico o que era conflituoso1. É essa a função do mito para Barthes. Sem esconder nada, usaria das propriedades da linguagem para enganar. 

Antropólogos então já debatiam o problema sob outra perspectiva. Procurava-se entender o real subjacente ao discurso mítico. Por trabalhos de autores como Malinowski e Eliade se entrevê o mito como expressão de uma verdade cuja definição não está em si, mas nas relações sociais que são sua força criativa efetiva2. É claro que, formalmente, ele se refere fabulosamente a uma história ocorrida em tempos primordiais. Não importa tanto, porém, se o evento narrado ocorreu ou não. Ela é real na medida em que ganha força modeladora do presente e do futuro.

Nesse sentido bastante restrito, as interpretações acima se aproximam. O mito como discurso mobilizador foi mais propriamente analisado em sua dimensão política por Georges Sorel, um dos responsáveis por entender a dimensão irracional das disputas sociais3. Ele sabia que o futuro não é objeto de conhecimento científico. Ainda que linhas tendenciais possam ser divisadas, o porvir é sempre incógnito, posto ser resultante de interesses antagônicos. Reside nesses princípios a força do mito em sua obra. Ele não finca suas raízes no sistema racional, mas nas emoções que desperta – instrumento por excelência da passagem dos princípios à ação. 

A reflexão sobre a irracionalidade como motor da ação política – que encontra no mito uma de suas expressões consagradas – ganha especial relevância com o surgimento da produtora de extrema-direita Brasil Paralelo. A empresa do olavismo cultural falsifica o debate acadêmico e apela aos instintos mais primitivos do público que tenta alcançar. Nesta quarentena, um turbilhão de mensagens publicitárias convocava os “patriotas” a apoiarem a iniciativa em sua cruzada contra a educação brasileira. Considerá-la como produtora de mitos evidencia não apenas os mecanismos de sua atuação, mas também a função que ela cumpre no arco maior de forças que são coligidas no pacto bolsonarista-olavista, do qual faz parte. 

O mito liberal

Em entrevista ao Boletim da Liberdade, Filipe Valerim, “rosto” da empresa, constrói a narrativa fundante da Brasil Paralelo. Segundo ele, a produtora criada em Porto Alegre seria resultado dos esforços de um grupo de jovens comuns que, na conjuntura da reeleição de Dilma Rousseff, toma emprestado duas câmeras, algum dinheiro a juros e uma sala de 6 metros quadrados para produzir conteúdo em defesa de um novo modo de fazer política e de uma nova forma de contar a história do Brasil. Dois anos e, imagina-se, muito trabalho depois, surgia a produtora que, de acordo com Valerim, viabiliza-se com a venda de cadastro de membros e acesso exclusivo a seus produtos educativos. 

Um olhar mais de perto mostra que as coisas não são bem assim. Em 2016, ano de seu lançamento, o site da produtora anuncia a venda de 68 palestras por R$ 360 à vista ou 12x de R$ 36,14. Dentre os luminares da República que deveriam fazer o público literalmente pagar para ver estavam o então ministro da Educação Mendonça Filho, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o clã Bolsonaro, além, claro, de Olavo de Carvalho. Deixando de lado juízo de valores sobre o gosto peculiar da audiência, há de se reconhecer a capacidade de alcançar figuras importantes, como deputados, senadores e três ministros – personalidades pouco acessíveis a pessoas comuns.  

O lucro resultante da venda de horas de entrevistas com parte significativa da fauna reacionária brasileira teria sido grande o bastante para, um ano depois, com pompa e circunstância, a produtora ter condições de lançar seu filme sobre o impeachment de Dilma Rousseff no Cinemark de um dos maiores shoppings de Porto Alegre. No que talvez tenha sido o maior case de sucesso da história, a produtora dos jovens empreendedores teria alcançado os cinemas – e não qualquer sala, mas o grande circuito – em apenas doze meses. Não localizei informações sobre o orçamento da empreitada. Para fins de comparação, o documentário sobre a eleição de Jair Bolsonaro produzido por Josias Teófilo (que colaborou com a Brasil Paralelo) foi autorizado pela Ancine a captar R$ 530 mil da iniciativa privada. Se os valores forem minimamente parecidos, alguém achou a galinha dos ovos de ouro.

Alguns dados merecem ser adicionados à conta. Em 2019, a Brasil Paralelo lançou crowndfunding para transformar em filme uma de suas séries “documentais”, desta feita sobre a História do Brasil. A arrecadação coletiva em favor de “Brasil: a última cruzada” mirava alcançar R$ 2 milhões4, em um plano de ação cuja meta final era a produção do documentário e distribuição de assinaturas nas escolas brasileiras. A vaquinha virtual conseguiu pouco mais de R$ 400 mil, como o próprio Filipe Valerim admite em vídeo no YouTube. Segundo ele, suficiente para a realização da película, mas não para sua chegada às unidades escolares brasileiras. Menos mal para os liberais orgulhosos de “nunca terem recebido dinheiro público” que, em dezembro, a TV Escola, canal financiado pelo MEC, tenha garantido o objetivo de ampliar acesso ao conteúdo ao fechar contrato para divulgação da série. 

Ainda em 2019, teve início a produção de “Pátria Educadora” – documentário orçado em R$ 2 milhões. A propaganda maciça sugere cifras astronômicas para uma pequena produtora que vive de membresia. No Facebook, o recorte dos anúncios da nova série tem um alcance ambicioso. No filtro da publicidade, o público-alvo inclui pessoas com mais de 18 anos cuja localização é o Brasil e tenham demonstrado mínimo interesse em educação ou política. Parece muita gente. Segundo a rede social, anúncios desta magnitude podem custar até US$ 50 mil por semana, embora os valores variem de acordo com a escolha do anunciante. Difícil imaginar, contudo, uma firma com amplo amparo publicitário que não saiba usar a ferramenta de target, de sorte que a amplitude do público-alvo é um indício eloquente do montante investido.

Testemunhamos, assim, a entificação da narrativa liberal clássica. O grupo de jovens comuns, que tem de tomar recursos emprestados para realizar o sonho, triunfa por oferecer ao mercado um produto que atenda necessidades dos consumidores. A encarnação do mito é a própria empresa, e a mensagem é clara: acredite no autofinanciamento, defenda a iniciativa privada contra o Estado – aquela é eficiente em detectar as necessidades dos consumidores; este, estruturalmente ineficiente e corrupto. Pouco importa se o orçamento sugira suporte financeiro muito maior do que o arrecadado pelo supor de cidadãos comuns5. Os empreendedores seguem renovando as apostas, declarando não receber qualquer receita fora do círculo de membros.

Por essa razão, durante a reprodução de Pátria Educadora, o espectador é bombardeado por inúmeros anúncios da importância de filiação à empresa – que estaria ameaçada de fechar as portas caso uma meta (de “novos” 20 mil membros) não fosse alcançada. Spoiler alert: as portas não fecharão, mesmo que a meta não seja batida. A função do apelo é retórica: trata-se de anunciar um objetivo na prática já alcançado, para depois sua conquista ser usada como prova da viabilidade da alternativa à educação gerida pelo Estado. Já há propostas nesse sentido sendo divulgadas como conteúdo “extra” ao Pátria Educadora, e o carro-chefe do momento parece ser o homeschooling. A empresa seria a evidência de que podemos fazer diferente, daí a importância da construção mítica de sua história – uma trajetória de crítica imanente ao “sistema”.

O mito da revolta contra o sistema

A série documental Pátria Educadora se propõe a fazer a “maior denúncia da história” contra a educação brasileira. Dividido em três episódios que somados perduram quase três horas, o material conta, no primeiro, uma visão ficcional da história da educação e do “Ocidente”6. O argumento da narrativa opera um corte importante entre a educação “para elevação do ser”, supostamente vigente na Antiguidade e na Idade Média, e a educação para fins terrenos, utilitários, imposta pelo Estado a partir da Reforma Protestante. O modelo de educação tocado por preceptores e tutores, de larga vigência na Antiguidade, chega a ser elogiado por permitir que os mais ricos “paguem pelos melhores professores” sem intervenção de qualquer autoridade pública. A crítica, claro, reside precisamente na regulação estatal da educação – e as palavras “educação compulsória” chegam a ser ditas, a fim de tornar violento o ato consensualmente entendido como direito. 

Na segunda parte, a mixórdia narrativa aponta para a importância de se considerar a obra de Paulo Freire a reverberação nacional de transformações mundiais ocorridas na década de 1960, como a Revolução Cultural Chinesa, o Maio de 1968 e uma suposta guinada no “movimento socialista internacional” que, entendendo a “cultura” como a “verdadeira infraestrutura da sociedade”, teria movido suas atenções para a “revolução cultural”. No Brasil, o documentário sugere que os militares da ditadura teriam sido espécie de “parteiros paradoxais” porque, ao não expurgarem adequadamente as instituições de ensino, teriam deixado por lá o “ovo da serpente” que permitiria o retorno da “hegemonia da esquerda” a partir dos anos 1970.

Novamente, o que vale é a comoção provocada pelo discurso. Não importa que a tese da descoberta de uma “verdadeira infraestrutura” flerte com o grotesco, especialmente quando situada em uma conjuntura de franca ascensão dos pós-estruturalismos. A produção da Brasil Paralelo nunca teve qualquer apreço pela descrição do real, haja vista o uso, em outro trabalho, de fotografias de Sebastião Salgado, tiradas em Serra Pelada, como evidências da Guerrilha do Araguaia – em processo que acabou na Justiça, vencido pelo fotógrafo. A intenção é chocar para mobilizar. Sobre isso, o tratamento que a obra freireana recebe no documentário é particularmente elucidativo. 

Escrito na metade final dos anos 1960, Pedagogia do oprimido seria traduzido para mais de quarenta línguas, tornando-se um dos grandes documentos do século XX. Em síntese, a obra denunciou o que Freire chamava de “ordem opressiva” cujos elementos constituintes despertavam nos subalternos o desejo de ser opressor. Como solução, o pedagogo propõe a união entre ação e reflexão em uma práxis transformadora, responsável por mudar condições objetivas e subjetivas rumo à emergência de uma “ordem ética”. Nela, mesmo os dominantes de outrora sairiam favorecidos, porque se tornariam livres das cadeias cíclicas da dominação das pessoas sobre as pessoas7.

Não é preciso, por conseguinte, ir muito além das primeiras palavras do texto clássico para constatar que a dicotomia opressor-oprimido de que fala Paulo Freire radica seus sentidos no conjunto da sociabilidade capitalista. Reduzi-la a uma relação professor-aluno, insinuando ser o autor crítico à autoridade do educador, é mentira deslavada8. No entanto, é assim que o professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Ricardo da Costa, balbucia sua visão sobre o tema:

“A educação paulo-freireana não aceita que você diga, por exemplo, que o rapaz que fala framengo tá errado, né. Você não pode porque você tá impondo a sua cultura classista. Isso…Isso é… a pedagogia do oprimido, né… o oprimido é… ora… ora… se há um oprimido tem um opressor. Quem é o opressor? O professor”9

As reiteradas distorções seguem com a avaliação de Olavo de Carvalho. Diz o autointitulado filósofo, contrariando os apontamentos mais elementares da obra do patrono da educação brasileira. 

“Então você não tem meios de você se desaculturar. Você fica preso. (…) O Paulo Freire cria uma estratificação social invencível. Se você nasceu filho de pedreiro é para você ficar pedreiro o resto de sua vida. E se inscreve no Partido Comunista e continua pedreiro.”10

Como se, na Pedagogia do oprimido e na prática em todos outros lugares, Paulo Freire não defendesse o exato oposto. Pode-se, claro, criticar as reflexões do pedagogo. Há quem as entenda como pendentes para o idealismo; há os que, defendendo uma neutralidade axiológica impossível, nela atacam sua evidente politização – estes são não surpreendentemente os conservadores, os que sentem arrepio na espinha a qualquer desafio à ordem capitalista. Mas chega a ser difícil de acreditar que se arremeta contra a criação de uma “estratificação social invencível” em seus trabalhos. Logo os de Paulo Freire, que dedicou inúmeras páginas contra os fatalismos que esterilizavam na vida seu impulso renovador. 

O sentido desta narrativa finca raízes no mito da revolta contra a ordem, insígnia que mobiliza a Brasil Paralelo em sua aliança estratégica com o bolsonarismo. Na narrativa em tela, Paulo Freire seria a origem de um “sistema educacional” subvertido pelo esquerdismo. Daí a importância da violência sanitária expressa na fala do autor do libelo reacionário “Desconstruindo Paulo Freire”.

Se fôssemos um país saudável, eu reitero isso, Paulo Freire não seria debatido. Debateríamos entendimentos sobre sistemas pedagógicos, sobre o papel do Estado na educação, enfim, debates elevados, sobre temas elevados. Ele é debatido porque somos um país socialmente doente11

A tese da sociedade adoecida também por causa da “hegemonia cultural esquerdista” é lapidada na fala de Abrahan Weintraub, responsável por sintetizar a importância do ataque “ao sistema educacional” brasileiro. Professor da Unifesp aprovado em seleção suspeita de favorecimento, o ministro da Educação ataca os concursos públicos, denunciando um suposto funcionamento sob o prisma do “esquerdismo”, tornando-se mecanismos de aparelhamento do MEC e, posteriormente, arma de subversão moral na guerra cultural desencadeada pela esquerda. 

Para que o “Novo Brasil” seja possível, não bastaria reformar o ministério. Embora esta seja uma etapa importante, não bastaria expurgar seus quadros12. O “esquerdismo” atravessaria a integralidade de suas práticas, e só uma política de devastação poderia responder adequadamente ao problema. Mas a destruição é também construção. Do seio da antiga ordem há de nascer uma nova cultura, na qual uma nova história será narrada. Eduardo Bolsonaro partilhou no Facebook depoimento de Rafael Nogueira, novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, sobre a importância de tomar dos “doutores em História” a prerrogativa de narrar a História do Brasil, dando a ela um tratamento mais adequado. 

É por esta dinâmica destrutiva-construtiva que se pode melhor divisar a ofensiva em curso, diferenciando-a, inclusive, dos ataques conservadores mais recentes – que defendiam um arremedo de pedagogia tecnicista. A discussão contra o Estado recobre o esforço de construção de uma nova ordem, com a qual a Brasil Paralelo contribui no front cultural.

O mito fascista

Em 2016, Leandro Ruschel, outro dos jovens ligados à iniciativa aqui em análise, entrevistou Olavo de Carvalho em sua casa. Ouviu do astrólogo conjecturas sobre a trama política nacional e previsões sobre como um golpe de Estado poderia triunfar no país13. A mobilização popular seria a chave do sucesso. Também em 2016 surgia a Brasil Paralelo.

A ideia de “pôr o povo na rua” não representa, em si mesma, filiação a nenhuma corrente política. Se compreendermos a Brasil Paralelo como um componente da aliança olavista-bolsonarista vigente, teremos de avaliar seu papel à luz da divisão de tarefas de uma frente que se lança ao ataque em diversas áreas. A produtora seduz os militares, com uma visão revisionista de 1964. Em suas redes sociais, o guru da extrema-direita e, como vimos, presença cativa nos produtos da Brasil Paralelo, lança apoio à baixa oficialidade e à tropa das Forças Armadas. O braço armado da aliança, claro, conta ainda com setores das polícias, tornadas freikorps pela prática miliciana, cuja aparição na greve do Ceará, em fevereiro último, foi singular demonstração de força mesmo fora do Rio de Janeiro, seu principal covil. Eis o cerne mesmo do bolsonarismo.

Aos peões olavistas, como a produtora gaúcha, convém pelejar na “arena cultural”. Para tanto, convém ocupar postos de Estado para implodi-los por dentro, conferindo-lhes novo sentido social. Já temos um negacionista do racismo na Fundação Palmares; uma trupe de palhaços no MEC; e agora a molecada ligada à Brasil Paralelo chega à Fundação Biblioteca Nacional, armando suas tendas na presidência e em outros cargos da instituição. Por meio desses espaços, gesta-se a nova cultura de que falou certa feita Roberto Alvim, ex-secretário especial da Cultura, acusado de apologia ao nazismo. 

Os movimentos fascistas se caracterizaram historicamente por esta preocupação. A mobilização constante de setores de apoio, especialmente das camadas médias urbanas, é o que o diferencia de outras correntes de direita. Na empreitada, “mitos” que comovam cumprem um papel importante, não apenas de definir alvos a serem atacados – os petistas e comunistas hoje, sabe-se lá quem mais amanhã, como ensinou Brecht. Os mitos também mobilizam em direção a objetivos a serem conquistados, rumo a uma nova era em preparação.

Diego Martins Dória Paulo é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e membro do GTO, grupo de pesquisas coordenado pela Prof. Dra. Virginia Fontes.

1  BARTHES, Roland. O mito, hoje. In: Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p 142-148. 

2 Ver, dentre outros: ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972; MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1988.

3  SOREL, Georges. Reflexões sobre a violência. 1ª ed. b. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

4 O valor é anunciado nas introduções aos episódios da série, disponíveis gratuitamente no YouTube. Também há esta informação aqui: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/trilogia-sobre-educacao-mostra-nova-trincheira-do-bolsonarismo-contra-esquerda.shtml.
5 Ao contrário, o orçamento sugere apoio empresarial, que é visível, pelo menos, em apoio e publicidade nas redes sociais. Alguns dos apoiadores são conhecidos: Luciano Hang, o novo bilionário do pedaço, Winston Ling e Flávio Rocha, este publicando artigos laudatórios à Brasil Paralelo em seu site oficial, como pode ser visto aqui: http://www.flaviorocha.com.br/brasil-paralelo-ideia-da-mudanca/.

6 Em um dos falseamentos mais aviltantes aos olhos do historiador, há a sugestão de que, após Boécio, o aristotelismo teria encontrado em São Tomás de Aquino apogeu de seu tratamento na Idade Média Ocidental, constituindo, assim, um dos pilares do Ocidente então gestado. Para além do anacronismo com a ideia de “Ocidente”, o panegírico oculta que, entre um e outro, a saber, Boécio e Tomás de Aquino, passam-se quase sete séculos, durante os quais o aristotelismo, se sobreviveu na Europa, conseguiu fazê-lo apenas marginalmente, tendo sido os muçulmanos que habitavam a Península Ibérica os responsáveis pela sua segunda grande difusão pelo continente. Fatos que não podem ser narrados sem prejuízo à imagem idílica e delirante que os seguidores de Olavo de Carvalho têm do Ocidente – imagem que une “civilização” e “cultura” de uma forma que causaria orgulho e vergonha em Spengler: o primeiro pelo tributo às ideias mais gerais, a segunda pela qualidade medonha do produto final.

7 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

8 Quanto mais por ser Paulo Freire autor de reflexões sobre a importância da autoridade contra a licenciosidade na sala de aula. Ver. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 105.

9 A fala ocorre, mais ou menos, aos 46min30seg do documentário disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UPDjFGGN2w0
10 Ver aproximadamente aos 46min50seg do mesmo link: https://www.youtube.com/watch?v=UPDjFGGN2w0

11 A fala é de Thomas Giulliano e ocorre aproximadamente 1h07min do documentário disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UPDjFGGN2w0

12 A bandeira chegou a dar origem a um projeto de “Lava-jato da Educação”, posteriormente formalmente abandonado pelo governo. Ver: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-02/mec-instala-lava-jato-da-educacao-diz-bolsonaro

13 A partir de 13min30seg do vídeo disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=AcEoTtTel0g