Hermínio Bello de Carvalho é um ser que não se enquadra. Está em diversas artes sem ser nenhuma. Para Gonzaguinha, Hermínio era bahiano de voz e violão, um pai que lhe levou a aprender violão. Para outros ele é um poeta, ou um compositor junto com grandes nomes como Cartola, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus. Para outros ele é músico e produtor musical. Ele é mais do que tudo isto, e posssui uma importância incalculável. Criador do show Rosa de Ouro, fundador e boêmio do Zicartola, um dos maiores divuldadores do samba carioca. Hermínio tem um acervo virtual com milhares de arquivos de fotos, aúdios, partituras, e outras raridades da música brasileira, não deixe de conhecer. Abaixo colocamos a entrevista inteira feita para a Revista Veredas em 2002.
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Você foi importante para o bom momento que o samba viveu nos anos 60. Entre outras coisas, dirigiu o show Rosa de ouro, ajudou a movimentar o Zicartola e promoveu a volta à cena de cantores e compositores que andavam esquecidos. Nos últimos anos, com o samba ganhando divulgação um pouco melhor, sendo lançados mais discos, Zé Kéti e Elton Medeiros ganhando o Prêmio Shell, craques como Walter Alfaiate, Nelson Sargento, Casquinha e Guilherme de Brito conseguindo gravar e ser reconhecidos, você acha que também é um grande momento para o samba?
Meu parceiro Elton Medeiros, que esteve aqui em casa assistindo a um ensaio do O samba é minha nobreza e se mostrou entusiasmado com nosso trabalho, acha que está por chegar o grande momento para a boa música em geral e, por extensão, para o samba de boa qualidade. O samba foi quase excluído das grades de programação das rádios e televisões. A resistência ainda está nas mãos de Dona Ivone Lara, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola e alguns outros poucos que não aderiram ao processo de desqualificação a que foi submetido o samba. O sambista saiu do estereótipo do malandro de camisa listrada e adotou a sunga e o short para explorar motivos temáticos ridículos que lhe foram, possivelmente, impostos pelo feitor que o mantém na senzala e que lhe dá o troco em forma de discos de ouro ou platina e efêmeros lugares nas paradas de sucesso, pagas a peso de ouro. Essa é uma forma de desqualificar o samba e quem o faz.
Mesmo num momento melhor para o samba, os sambistas tendem a continuar se queixando da falta de espaço para cantar, gravar, tocar em rádios, vendo a arte que fazem ser jogada para escanteio em prol dos fenômenos pop. Você acha que é rançoso esse discurso do samba marginalizado?
O discurso pode se tornar rançoso se ficar nessa lengalenga de não se aprofundar a questão ideológica. Há alguns meses fui a São Paulo a convite de meu amigo Sergio Mamberti, fizeram uma homenagem à Clementina e ao Rosa de ouro, e os remanescentes do grupo foram lá: Paulinho, Elton, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e eu. Foi um delírio, num Memorial da América Latina lotado de jovens que cantavam aqueles sambas apresentados pelo Quinteto em Branco e Preto, meninos antenadíssimos. E onde aprenderam aqueles sambas, que só poderiam ter conhecido através dos discos do Rosa? Me pediram para falar alguma coisa e expliquei que o que mantinha medianamente vivo o nosso trabalho é o fato de que ele guardava uma ideologia, e sempre se trabalhou com a qualidade. Nenhum dos componentes se vendeu ao sistema. A marginalização se dá quando não existe um conceito ideológico guiando as coisas. Mas se você for hoje na Lapa, vai encontrar jovens intérpretes e compositores com a mesma postura de meus colegas do Rosa. Hoje, quando leio os livros sobre música popular e vejo excluídos o Rosa, o Opinião e sobretudo a Clementina, sinto que o preconceito e a exclusão permanecem, pelo menos na memória de alguns jovens historiadores que só conhecem a nossa música a partir da Bossa Nova e do Tropicalismo.
Você está ensaiando o musical O samba é minha nobreza, que deverá estrear em março e também ser lançado em disco. Como surgiu a idéia desse projeto?
O samba é minha nobreza tem esse conteúdo ideológico de que eu falei. Foi Cristina Buarque e sua íntegra carreira a inspiração para esse trabalho. Além da grande sambista que é, na linha de grandeza da Aracy de Almeida, ela pesquisa o samba sem se deixar rotular de pesquisadora. Ela abre clareiras em seu espaço para jovens como Teresa Cristina, Pedro Miranda, Mariana Bernardes, Pedro Paulo Malta e outros cantores que têm uma postura muito clara em relação ao que entendem como carreira artística: gravar música de alta qualidade, sobretudo de compositores hoje excluídos do sistema e que continuam inéditos porque não divulgados. Wilson Batista, por exemplo, continua sendo um inédito. Fiz um disco para a Cristina que se tornou cult, só com sambas do Wilson: Ganha-se pouco mas é divertido. Nunca tocou em rádio. Porque nunca você vai ver a Cristina descer um degrau ou fazer uma concessão para mostrar seu trabalho sem as condições mínimas que não a desrespeitem ou a desqualifiquem diante do público. É com esse combustível que movo minha vida, com pessoas iguais a ela. Diria que O samba é minha nobreza é um trabalho na mesma linha do Rosa.
A maravilhosa caixa Clementina de Jesus, 100 anos, produzida por você em 2001, foi usada como brinde de fim de ano mas ainda não está disponível para o público, Ela estará no futuro? O melhor não seria lançar os oito discos separadamente?
A eterna desculpa que me apresentavam para não reeditar Clementina e Elizeth era a mesma: “Elas não vendem”. Hoje, praticamente toda a discografia de Elizeth está na rua, infelizmente toda pulverizada em “antologias” montadas por neófitos que não a conhecem e desrespeitam o conceito de cada disco que gravou. Recebi uma correspondência vastíssima a respeito. O jovem quer conhecer Clementina, mas a EMI já anunciou diversas vezes que não pretende reeditar os discos daquela caixa. Poderiam fazê-lo. Mas é mais barato adulterar produtos do que apresentá-los condignamente. E ainda, cinicamente, exploram o slogan “disco é cultura”.
Você sempre diz que Mário de Andrade é seu guru. Que tipo de ensinamentos e norte ele lhe deu?
A frase “É preciso abrasileirar o brasileiro” cunhou a minha vida, tanto quanto o aforismo de Salomão que adaptei como exercício de vida: “A mentira é a verdade provisória.” Mário pensou o Brasil de uma forma generosa, investigando-o e descobrindo-o para nós, com sua lupa mágica, despreconceituosa, irradiante e delirantemente brasileira. Do seu quintal, divisava o mundo, sem nunca ter posto os pés na Europa, cuja cultura, no entanto, conhecia em profundidade. Esse olhar brasileiro ele o cedeu a todos nós através de seus livros e da vasta correspondência com Manuel Bandeira, Drummond, Portinari, Moacir Werneck de Castro, Fernando Sabino, Murilo Miranda, Henriqueta Lisboa, Anita Malfatti, Alvaro Lins… Sua paixão por Chico Antonio, por exemplo, é similar à que tenho por Clementina. Foi através dos ensinamentos de Mário que pude ganhar textura perceptiva para entender Clementina. E é essa rosa-dos-ventos que me guia, inclusive no processo de agitação cultural. Sou um frustrado educador. Infelizmente, sou muito ignorante. Por isso, proíbo que me pespeguem rótulos de pesquisador. Odeio rótulos.
A sua aversão a ser chamado de pesquisador é recente ou você sempre fugiu desse termo?
Minha aversão é antiga. Depois que editaram O canto do pajé: Villa-Lobos e a música popular e o livro passou a ser uma referência para alguns estudiosos, essa aversão aumentou. Foi o desconforto de saber que poderia ter feito um trabalho melhor. Porque o que fiz, na verdade, foi desengavetar uma série de artigos e palestras que, a pedido de Mindinha, viúva de Villa-Lobos, eu fazia, mas sem compromisso com um livro, na sua forma mais tradicional. E essa aversão deixa claro meu respeito por uma atividade que exige uma metodologia que desconheço, por uma lupa que não possuo, e por respeitar estudiosos iguais a Sérgio Cabral, Tinhorão, Ary Vasconcellos, João Máximo, Marilia Barboza, Jairo Severiano, Zuza Homem de Mello e tantos outros – estes sim, capacitados para esse exercício. Sou apenas um desengavetador de determinados aspectos antes não abordados da forma específica como o fiz.
Criticam muito você por pôr letra posteriormente em choros. Você interpreta essa crítica como pessoal ou como ao fato em si?
Ela chega a ser pessoal, quando ignora que eu não detonei nenhum processo nem inaugurei qualquer modismo. Sempre se letrou choro. Ademilde Fonseca canta choros letrados há meio século. Acho má-fé quando concentram em mim essa crítica, até porque letrei choros a pedido de Pixinguinha – e não vejo autoridade em ninguém para criticar Pixinguinha ou mesmo Jacob, que chegou a letrar o “Ingênuo”.
Quando você olha para trás e revê o Hermínio menino, você acha que ele imaginava conhecer tantas pessoas importantes e geniais? Que tipo de sonhos você tinha quando criança e que se realizaram?
Quando eu era criança, tinha muitos sonhos, e a Rádio Nacional os alimentava bastante. Também os musicais americanos. Um filme medíocre abalou minha vida, o À noite sonhamos, sobre a vida de Chopin. Vi e revi não sei quantas vezes. Com nove anos eu já me virava trazendo dinheirinho pra casa, lavando vidraças, encerando chão dos vizinhos, entregando encomendas. Aos 16 anos fui ser repórter de uma revistinha muito chinfrim, e aí conheci a Linda e a Dircinha Batista, fiquei amigo de Heleninha Costa, Aracy de Almeida etc. Então aconteceram o Rosa e Elizeth, e no meio disso tudo uma ruptura de conceitos muito grande, já ensaiada na casa do pintor Walter Wendausen e depois solidificada através de Clementina e tudo o que ela representou. Eu era apaixonado por Ingrid Bergman, e, quando a conheci em Londres, o menino que eu fui saiu dançando pela neve que começava a cair. Quando Sarah Vaughan cantou em minha casa, o impacto foi igual ao da visita da Elis, da chegada do Caymmi, do Herivelto, da Dalva, do Lupicínio, do Gonzagão – tanta gente! Eles pareciam saltar dos álbuns em que eu colecionava suas fotos. Não perdi até agora essa condição de mitômano.
Olhando o índice de seu livro Sessão passatempo, percebe-se que muitos daqueles personagens já morreram. Embora inevitável, como está sendo para você conviver com esse acúmulo de saudades?
Conviver com ausências é muito difícil, sobretudo quando se teve o privilégio de conviver com pessoas iguais a Aracy, Clementina, Elizeth, Pixinga. Dizem que eu, nos meus livros, ao narrar fatos acontecidos com esses mitos, acabo falando de mim mesmo. E é verdade. O Sérgio Cabral me instiga muito a escrever minhas memórias. Acho que eu não saberia fazê-lo. Mas escrever sobre Aracy, por exemplo, é voltar à Taberna da Glória, à sua casa do Encantado, ela aqui em casa afagando o Francisco Lano, meu cachorro de estimação, cantando o “Quando tu passas por mim”, me levando às lágrimas. É muito difícil, creia. O sorriso de Carminha Rica, por exemplo, está pregado nas paredes.
Você planeja, no futuro, dar a seu acervo algum destino que o torne público?
Essa é minha pedra no caminho, meu obstáculo, minha grande indagação. Acho que meu grande acervo não está comigo: são as centenas de programas que, por exemplo, produzi para a Rádio MEC e para a TVE. Estou tentando recuperar esse material, porque produzi programas incríveis com gente que estava à margem do sistema. Não consigo muito ter diálogo com os poderes, porque vivemos uma época de muita mediocridade, em que a palavra cultura virou uma espécie de gazua para negócios escusos. Quem me vê brigando pelo (Des)projeto Jacob sem bandolim há de me julgar um doido de pedra, se não conhecer a fundo meu caráter, meu sentido ético e esse eterno brigador que continuo sendo. Mas com uma característica: brigo a favor. Às vezes perco meu tempo denunciando arapucas pseudoculturais que recebem benesses financeiras do governo. Algumas pessoas poderosas se dizem minhas admiradoras, e até acredito que sejam. Mas, objetivamente, continuo ou trabalhando de graça ou pagando para trabalhar. Quanto ao destino de meu material, gostaria que olhos atentos mergulhassem em algumas preciosidades que possuo. E que alguma instituição organizasse esse material, como fizeram com o de Mozart de Araújo. Visitando a Fundação Casa de Rui Barbosa, encontrei minhas cartas ao Drummond docemente arquivadas por ele. Poderia fazer um livro com nossa correspondência passiva e ativa. Mas, agora? Pareceria oportunismo. Deixe que passem os 100 anos dele, ou então que chegue meu centenário (não tão distante assim…). Costumo dizer aos meus amigos que já não sou um homem, mas uma lápide ambulante.
Você diz que tem um lado brigão ativo, como ficou claro no “Depoimento” que circula na internet. Mas, para se manter amigo de tanta gente, é preciso uma boa dose de suavidade e até lirismo. Onde termina o lírico e começa o brigão, ou eles estão sempre misturados?
O Aldir Blanc, na orelha do Sessão passatempo, fala desse lado melhor do que eu falaria. Mas uma coisa maravilhosa que esse “Depoimento” acabou me trazendo foram dezenas de mensagens lindíssimas, vindas de gente muito jovem. Sou uma dama, um doce de coco, sou de chorar em novela das oito. Mas brigo quando me afrontam ou me fazem injustiças.
E essas internações freqüentes, como têm modificado sua vida?
Sou hiper-hipertenso, já tive uma isquemia há uns cinco anos, volta e meia estou numa emergência de hospital, e a perda de um amigo, por exemplo, é uma parcela de mim que vai embora. Mas enfrento. Vivo à base de tranqüilizantes, só durmo com remédios, e já estou com prazo vencido. O homem brasileiro não vive em média 65 anos? Pois é. Já vou para os 67.
Herminio e a violonista Maria Luiza Anido, em Paqueta-RJ
A cantora Olívia Hime (centro), Marília Batista (violão), Manoel (Mão de Vaca) da Conceição e Hermínio Bello de Carvalho, durante gravação de programa na TVE.
O jogador de futebol Garrincha, Hermínio Bello de Carvalho e a cantora Elza Soares, em Madri (Espanha).
Foto de Aracy de Almeida com Hermínio no sempre presente Zicartola
O então presidente Getúlio Vargas se despede da cantora Linda Batista que parte para Paris. O Jovem Hermínio acompanha a cerimônia